CORREIO BRAZILIENSE
Gilson Caroni Filho (*)
Em pleno ano eleitoral, o governo submerge em sérios escândalos na área econômica. O presidente do Banco Central, Armínio Fraga, e o diretor de Política Monetária da mesma instituição, Luiz Fernando Figueiredo, são acusados pelo presidente interino da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) de fazer lobby em favor das empresas de telefonia. Ambos teriam entregue à Câmara de Política Econômica, instância governamental, um texto preparado pela BCP, empresa que opera na banda B de telefonia celular em São Paulo. No documento são recomendados aumentos de tarifas, mudanças contratuais beneficiando as operadoras e redução dos impostos que incidem sobre as contas dos consumidores.
Tem mais. Há sérias suspeitas de que técnicos de alto escalão do BNDES, do Tesouro Nacional, do Banco do Brasil e do Ministério da Fazenda fizeram uso de informações privilegiadas para compra e venda de ações do Banco do Brasil. São pessoas que trabalham nas mesmas instituições que desenharam o projeto de venda de 16,3% do capital do BB. O ministro Malan mandou a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investigar as acusações. O problema é que o órgão fiscalizador abriu sindicância para apurar denúncias de irregularidades de funcionários em processo de cisão nas áreas de petroquímica e de papel e celulose. Em suma, em tempos de neoliberalismo o melhor a fazer é chamar a guarda municipal de São Gonçalo.
O que revelam os parágrafos acima? Um cenário tétrico. Um governo corrompido em setores-chave de formulação e execução de sua política econômica. O resultado lógico de instituições que se redefiniram para melhor servir ao receituário neoliberal. Não há acidentes de percurso. A banca internacional e a degradação interna de autoridades e órgãos que lhes são úteis não são obra do acaso. A segunda é um desdobramento lógico da primeira. E não atinge apenas instâncias econômicas; leva de roldão uma imprensa que a tudo silencia. Não por conivência principista, mas por ser sócia do jogo.
Os fatos aqui relatados não são fruto de uma exaustiva investigação pessoal. Muito menos resultam da apuração de partidos oposicionistas ou imprensa alternativa. A rigor, para os que lêem o Correio Braziliense, não se constituem, sequer, novidade. Em carta enviada a este Observatório (edição n?170, de 1?/5), a leitora-colaboradora Vera Silva reclama, com total razão, das análises que desconsideram o jornal brasiliense como objeto. Sem dúvida, fora do eixo Rio-São Paulo, o principal veículo do Distrito Federal dá uma aula de imprensa. Mostra como é possível, sem deixar de ter suporte comercial, fazer um jornalismo a serviço do interesse público. Tão próximo do poder, tão longe de qualquer concessão que abale a sua credibilidade. Um jornal que não se verga aos poderes distritais (Roriz desejaria vê-lo falido) e não dá sossego ao governo federal. O elogio ao Correio não é gratuito. O seu fazer jornalístico denuncia a "ação entre amigos" que se observa nos jornalões do Sudeste. No jornal "candango" convivem autonomia editorial, prática investigativa e cobertura analítica. A tríade, miragem na grande mídia, é realidade no maior jornal do Planalto Central. Brasília é uma corte incompleta. Se lá estão o príncipe, sua consorte e demais assessores, os "bobos" são os que se fiam em redações sediadas no Rio e em São Paulo.
A política não é vista a partir de meros registros pontuais. A cobertura leva em conta a dinâmica dos principais atores e os interesses que norteiam seus movimentos. Ao não separar institucionalidade e economia, mostra ambas como totalidades que interagem e se definem. O jornalismo do Correio não é seduzido por facilidades, não trabalha com segmentações sem sentido.
Como demonstra o trecho abaixo, escrito por Ricardo Noblat, analisando a cobertura da imprensa francesa no primeiro turno das eleições presidenciais, os fatos devem ser vistos como processo, e o jornalismo não pode ficar a reboque do artificialismo de pesquisas encomendadas ou ao sabor da última declaração de um marqueteiro:
"A imprensa francesa não entrou de férias enquanto durou a campanha eleitoral. Mas preferiu cobri-la por meio de pesquisas, a reboque das ações de marketing dos candidatos e da promoção de debates. Na França, como os franceses. E eles amam a retórica. O jornalismo declaratório ocupou larga parte do noticiário dos jornais e das emissoras de rádio e televisão.
E os jornalistas se esqueceram de ir às ruas ouvir as pessoas comuns, auscultar seus sentimentos, perceber a evolução de suas vontades. Porque é possível fazer isso sim, senhor. Jornalistas bem formados são capazes. Só não o fazem ou só não poderão fazê-lo se ficarem presos às redações ou ao jornalismo preguiçoso das pesquisas e do ?disse-me-disse? dos políticos" (Correio Braziliense, 28/4).
Sábias palavras que deveriam nortear a ação de editores dos jornais de maior circulação. Não que eles não saibam disso mas, face à simbiose de interesses entre o campo jornalístico e os consórcios empresariais dos quais fazem parte, é de se acreditar que os manuais de redação tenham sido substituídos por livros de "Introdução à Teoria Administrativa". O texto de Noblat não apenas corrobora a inteireza moral de uma trajetória que de há muito acompanhamos, mas denuncia o posicionamento ético-político de jornalistas que pontificam em outras redações. As lições não param por aí. Quando trata da crise argentina inverte a lógica da concorrência. Com texto elegante e boa analise conjuntural, não incrimina a vítima. Não se rende às falsas evidências de um fundamentalismo de mercado, nefasto tanto para a práxis política quanto para a jornalística. Em texto didático, assim é analisada a desdita do país vizinho:
"Uma sina perversa parece ter-se abatido sobre a Argentina: a de ser sempre cobaia das experiências econômicas e monetárias extremas no mundo globalizado. Nos anos 90, o país vizinho implantou no grau mais radical a receita neoliberal para os países emergentes ? privatização, abertura comercial acelerada, desmonte do Estado e submissão aos mercados globais, a ponto de renunciar ao comando sobre a própria moeda. Agora, a Argentina sofre longa agonia diante da impiedosa indiferença dos países ricos, reféns da doutrina isolacionista imposta pelo governo republicano dos Estados Unidos.
Até quando o mundo desenvolvido vai sustentar a falácia de que não tem nada a ver com o que acontece em Buenos Aires? É verdade que muitos dos pecados que afligem a nação argentina são fruto de mazelas históricas internas. O abismo de confiança que se cavou entre o povo argentino e sua classe dirigente é problema que só será resolvido com a reconstrução das instituições políticas do país ? e essa é tarefa que cabe por inteiro aos próprios argentinos.
Mas é igualmente verdade que, por ignorância, incompetência ou irresponsabilidade, o Fundo Monetário Internacional, cão de guarda dos interesses econômicos dos países do G-7, incentivou e apoiou até o fim a manutenção da desastrosa paridade cambial mantida ao longo da última década pelo então ministro Domingo Cavallo. E nenhuma iniciativa política interna destinada a restaurar as condições de autogoverno do país será bem- sucedida sem o apoio financeiro dos países ricos à indispensável reestruturação do sistema bancário". (26/4)".
Entendeu, Míriam Leitão? Compreendeu, Luís Nassif? Dá para fazer algo semelhante, Joelmir Betting? Lamentavelmente é possível antecipar as respostas deste diálogo imaginário.
Em suas várias editorias, o jornal nada deixa a desejar. Da política ao esporte, os temas são tratados com a seriedade que se espera de uma imprensa séria e soberana. O suplemento Pensar é bem superior a certas "idéias" que circulam em jornais concorrentes e dá um banho em "prosa e verso" em conhecido jornal carioca. É a confirmação da justeza dos reclamos de Vera Silva.
Sem dúvida, é uma publicação que deve servir de referência aos que desejam a imprensa que confronta o poder em defesa dos interesses da cidadania. Certamente deve ser extremamente desagradável ao governo vê-lo circular enquanto o candidato José Serra, confirmando as pesquisas (que, repetimos, não devem servir de norte para análises mais sérias) é vaiado no Rio e em São Paulo. Quando a banca internacional, com anuência interna, faz do terrorismo econômico a arma predileta para derrubar o candidato do PT, a primeira página de 30/4, estampando a manchete "E a história de Lula se repete", soa como ato de soberania de um jornal engajado com a verdadeira história de seu país.
Com o Correio, Brasília consegue um triste equilíbrio perfeito: abriga um governo de segunda categoria e um jornal de primeira. Aos brasilienses resta o consolo de que somente o segundo é totalmente produzido lá. E a nós? Talvez na foto publicada na coluna de Márcia Peltier, no Jornal do Brasil (28/4), esteja a resposta. Nela aparecem um candidato à presidência, dois parlamentares da base de apoio do governo, a principal colunista política do jornal e um ministro do STF. A legenda diz "Reunião de poderes: Michel Temer, José Serra, Aécio Neves, Dora Kramer e Marco Aurélio Mello." Que inveja do leitor do Cerrado.
(*) Professor-titular das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro