ARMAZÉM LITERÁRIO
Autores, idéias e tudo o que cabe num livro
ENTREVISTA / ROGER CHARTIER
"Dentro de poucos dias, quando chegar ao Brasil para o seminário ?Os desafios do texto: do leitor ao navegador? – que acontece no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio entre os dias 22 e 25 de maio – Roger Chartier terá um desafio que já está se tornando comum em sua rotina: mostrar que a realidade virtual é apenas mais um passo na história da escrita e não o sinônimo do fim do livro ou da literatura. O historiador e professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales parte de um princípio simples: a comparação da revolução virtual com as outras revoluções – como a que aposentou o manuscrito para a utilização da impressão. Aí pode estar a chave para entender as transformações aceleradas das novas tecnologias.
Em entrevista a no., Chartier explica porque o livro eletrônico ainda é uma utopia, prevê o inferno de uma biblioteca infinita e aponta as vantagens do mundo virtual para o jornalismo. ?Em alguns lugares, a publicação eletrônica é vista apenas como mais um espaço. Seria uma idéia equivocada de ter menos custos para fazer a informação chegar mais rápido ao leitor. Não pode ser só isso?, diz ele em fluente espanhol, língua em que fará as conferências no Brasil.
Como é o trabalho do historiador que estuda tecnologia? É melhor estar próximo, envolvido com ela, ou manter um distanciamento para compreendê-la?
Roger Chartier: Não devemos pensar que essa revolução se vincula unicamente e mecanicamente às transformações dos aparatos, se liga também a transformações culturais, políticas, sociais. Em seu famoso ensaio sobre a reprodução mecânica das imagens, Walter Benjamim afirma que as técnicas não têm um sentido em si mesmas. Suas significações dependem do uso que podem as sociedades podem fazer delas. Isso é mais importante que qualquer determinismo tecnicista. Aí está o papel do historiador: determinar e analisar essas significações.
O senhor lê na internet?
R. C. – Leio. Mas tudo vai depender do tipo de texto. O problema fundamental é a adequação dos diversos tipos de gêneros aos suportes. Os textos que têm como característica essencial o caráter enciclopédico, como o dicionário e a própria enciclopédia, se adequam perfeitamente a essa leitura fragmentada, descontínua, porque você procura a partir de um tópico. Já há enciclopédias que têm como única forma a eletrônica. Enquanto isso, há textos que pedem uma leitura contínua, que exigem a percepção de uma obra como uma unidade. Esses textos se encontram em posição menos cômoda na tecnologia eletrônica. A percepção aqui do que é a obra como um todo não é tão fácil. No impresso, o livro como objeto corresponde à obra como entidade textual. No eletrônico, a leitura de um fragmento pode ser dissociada de qualquer percepção da obra. Isso ainda é assim, não digo que isso será indefinidamente. Os editores que têm acesso à técnica eletrônica – pois não devemos nos iludir, é uma minoria dentro de uma minoria – distribuem os textos na realidade virtual de acordo com a natureza desses textos.
O senhor publicaria um livro apenas no suporte eletrônico?
R. C. – Há um problema de público. Se um livro de história existe para ajudar as pessoas a pensar de uma maneira mais crítica a sociedade, sua posição no mundo, devemos pensar que o que pode assegurar uma circulação ampla é o melhor. Desta maneira me parece que não há contradição em publicar o mesmo texto numa forma eletrônica – que vai permitir uma minoria de leitores de ter uma relação com o texto absolutamente original e submetê-lo à sua própria necessidade – e, por outro lado, publicá-lo também na forma impressa. Esta é a forma que, até agora, assegura uma circulação grande e não limita o acesso. Na época de transição do manuscrito para o impresso, havia circulação das duas formas, para atingir os dois públicos diferentes. No caso da publicação impressa e eletrônica, trata-se do mesmo livro, mas não da mesma leitura. E até agora, infelizmente, também não se trata do mesmo público. É um grande perigo pensar que se há um realidade virtual, uma universalização da comunicação escrita, essa realidade é já acabada. Há um analfabetismo virtual de uma grande parcela da sociedade, seja por motivos econômicos ou sociais. Este é um elemento que aqueles que publicam na internet não devem esquecer.
Como será o bibliófilo do futuro?
R. C. – Essa é uma questão importante, que parece exemplificar toda a complexidade da utilização dessa tecnologia. Até agora havia um vínculo muito estreita entre o objeto do livro (o texto), o autor, e, eventualmente, a relação do leitor com esse objeto textual. Aí há a possibilidade de diferenciação entre os textos e os objetos. A construção das coleções se fundamentaram ou pela visão enciclopédica, ou pela paixão por gêneros textuais particulares. E há ainda o aspecto da condição material: a paginação, os caracteres. A técnica digital burla essas diferenças. A tela de um computador não corresponde mais a um texto particular, é um veículo para transmitir todos os gêneros, não há mais essa noção de uma identidade própria do conteúdo pela sua forma material. Na verdade, isso vai depender da decisão do leitor. Ele pode utilizar a fonte e a paginação que julgar melhor. Isso muda o conceito tradicional de coleção ou bibliofilia. A forma específica do texto não está fechada, tem a intervenção do leitor, ele pode escolher como vai ficar sua biblioteca virtual. É um exemplo interessante para mostrar que não há continuidade pensável entre o mundo de texto impresso e o digital.
Como fica a questão afetiva do leitor com o objeto no caso da leitura virtual?
R. C. – É paradoxal. Os textos eletrônicos, que não estão protegidos, são textos que permitem a presença do leitor muito mais fácil que qualquer impresso ou manuscrito. Antes, escrevia-se nos espaços em branco com a mão, agora o leitor pode cortar, colar, compor, introduzir coisas. Por outro lado, no virtual há uma distância física. O texto não toca mais no corpo do leitor, ele supõe essa distância através do teclado. Mas essa distância física pode ser compensada algumas vezes por uma presença virtual, é um diagnóstico ambíguo permanente.
Quais são as vantagens de uma biblioteca virtual? E as desvantagens?
R. C. – A vantagem e a desvantagem vêm de um mesmo ponto. Trata-se de uma biblioteca praticamente infinita. Ela está de acordo com a universalidade do saber, com o sonho da biblioteca de Alexandria, de abarcar todos os livros que foram escritos. Ao mesmo tempo, essa universalidade a torna ilegível porque não há limites. Tem um número de páginas infinito, é um livro perigoso, aterrorizante. Por um lado, o desafio de uma biblioteca infinita, de outro lado, uma realidade indomável, incontrolável.
Numa revista virtual, que não tem uma versão impressa, dá para perceber na prática a diferença que isso pode causar no conteúdo do texto. O que muda no texto jornalístico feito para esse veículo?
R. C. – As revistas que utilizam as possibilidades de vínculos múltiplos transformam o ato da composição estética. Parece-me que a consciência das possibilidades de textualidades diferentes podem transformar a argumentação e a demonstração científica. É importante não pensar que os textos são os mesmos quando se muda o suporte. Se há uma revista eletrônica, ela deve fazer o possível para publicar de uma maneira nova, não pode ficar restrita a uma lógica antiga. Se há possibilidade de estabelecer uma relação diferenciada com o leitor, no jornalismo isso é ainda mais interessante de ser estimulado. É preciso utilizar a mobilidade do texto para corrigir, transformar e finalmente, graças aos vínculos textuais, organizar de uma maneira radicalmente nova a argumentação. A participação efetiva do leitor e o acréscimo de outros materiais como vídeos e fotos transformam as condições da produção e, dessa maneira, a originalidade da imprensa eletrônica. Em alguns lugares, a publicação eletrônica é vista apenas como mais um espaço, diante de uma lógica tradicional da publicação impressa. Seria uma idéia equivocada de ter menos custos para fazer a informação chegar mais rápido ao leitor. Não pode ser só isso. É preciso haver uma reflexão, estudar as possibilidades novas com a nova tecnologia e como elas podem enriquecer o diálogo com o leitor."
HARPER?S / WILLIE MORRIS
"Minha jovem jornalista,
Passando pelo Texas, não pude deixar de comprar a revista ?Texas Monthly?. Todo o resto dos Estados Unidos acha q ela é uma revista provinciana q só interessa aos texanos.
Todo resto dos Estados Unidos acha que entre as botas e o chapéu de um texano vive um ser papudo (o estado da estrela solitária, como o Botafogo, é uma espécie de Itu dos EUA) e não muito abençoado pela inteligência. Um dia, fui, em Fort Worth, a Barretos texana, àquele que se autodenomina o ?maior bar do mundo?. Levado pelo velho mestre, evidentemente.
Bem, não vou entrar nesse bobo – mas, às vezes, engraçado – folclore regionalista. Devo dizer, contudo (contudo? Estou ficando cada vez pior) q uma das coisas que mais apreciei no Texas foi o humor e a auto-ironia. Um Cartão Postal, q não tem nada a ver com esses meus CPs, mostrava um exibicionista, de costas, abrindo o seu sobretudo e mostrando o membro para um ônibus cheio de velhinhas. Uma das velhinhas lamenta: ?E me disseram que tudo era muito grande no Texas?.
?Texas Monthly? é uma revista duca. Design de primeiríssima.
Matérias, palavra proibida pelo manual da Folha, excelentes. No número q pego, Barry. L. King escreve um perfil, sem melodramas e sem esconder o lado sombrio, de seu amigo Willie Morris, morto em 99.
Vc não sabe quem é Morris. Poucos jornalistas brasileiros sabem. Mas ele foi uma espécie de ?fodão do bairro Peixoto? no período mais importante de uma das revistas mais importantes dos EUA, a ?Harper?s?. Eu já te disse q o jornalismo tem ciclos de altíssima criatividade e ciclos de repetições de fórmulas. Nós, infelizmente, estamos vivendo no ciclo de repetição de fórmulas. Mas, a década de 60 foi uma das mais fascinantes do jornalismo e Willie Morris brilhou nela. Muita gente boa, nessa época, achava ?Esquire?, ?The New Yorker? e ?The Atlantic Review? ótimas revistas, mas considerava a ?Harper?s? de Willie Morris ainda ?mais ótima? do que elas.
Morris revelou-se para o mundo jornalístico no Texas. Em 63, foi para Nova York editar a ?Harper?s?. Fez sucesso, era conhecido até pelos presidentes da República. Ganhou reputação de grande escritor. Contratou para seu staff, entre outros, Norman Mailer e William Styron. Estava no topo e achou q nunca cairia (coisa q acontece muito no jornalismo; minha querida, já vi caras talentosos se acharem indestrutíveis e, quando se dão conta, o mundo abriu a seus pés.Nunca se esqueça q o poder é do jornal e da revista e não dos q escrevem neles). Caiu. O q é pior, era alcoólatra.
Jamais voltaria a ser o GRANDE Willie Morris.
?O Willie Morris privado – o taciturno, o solitário, o homem que se perdia no sono porque o despertar era muito dolorido, o homem que chamava o telefone de um instrumento de tortura e o colocava na geladeira para abafar a sua campainha, o homem que no final era tão turrão quanto qualquer mula que William Faulkner jamais teve, o homem que ficou conhecido em pura linguagem suja, como um farrapo humano – bem, o contencioso e complexo companheiro é um Willie Morris que o seu adorado público jamais viu.?
Esse era o Willie Morris que o seu amigo, o também jornalista e escritor Larry B. King conheceu. O que nós conhecemos (e eu, muito tardiamente) era outra coisa: nada mais nada menos do que um dos grandes entre os grandes jornalistas, um herói da minha profissão.
Beijo,
M., de Morris
PS: Uma das maiores tristezas de Morris foi a morte de seu lab preto, Pete. Ele também escreveu um lindo livro chamado ?My Dog Skip?. Morris foi mais bem tratado pelos cães do que pelos homens."
Armazém Literário ? texto anterior