ARMAZÉM LITERÁRIO
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RESENHA
Leneide Duarte
A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira, de Joel Zito Araújo. Editora Senac, São Paulo, 323 páginas, R$ 28
Uma brasileira moradora de uma cidade dinamarquesa enviou, em 1993, a Roberto Pompeu de Toledo ? a propósito de uma artigo seu da revista Veja sobre a predominância de louras nos anúncios da TV brasileira ? vários recortes de anúncios que refletiam a propaganda e os programas de TV na Dinamarca, para provar que existem mais negros, mulatos e japoneses na TV daquele país do que na brasileira.
Esse episódio é narrado por Joel Zito Araújo em seu livro A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira, no qual pretende mostrar que o enfoque da televisão brasileira em relação aos negros é resultado da incorporação do mito da democracia racial brasileira, da ideologia do branqueamento e do desejo de euro-norte-americanização de nossas elites.
Mas a TV é apenas o espelho do preconceito e do que Joel chama "a negação do Brasil", um país que nega sua própria realidade. A ausência do negro na TV ou sua imagem subalterna, quando aparece, são conseqüências de um preconceito racial gerado pela exclusão social das populações negras do país, as mais marginalizadas e que apresentam os indicadores sociais mais desfavoráveis ? apesar de o Brasil ser um país miscigenado, com predominância negra. Joel afirma que tal como se apresenta atualmente a sociedade brasileira no início do século 21, negros e índios "continuam vivendo as mesmas compulsões desagregadoras de uma auto-imagem depreciativa, gerada por uma identidade racial negativa e reforçada pela indústria cultural brasileira, a qual insiste simbolicamente no ideal de branqueamento".
O trabalho de Joel Zito Araújo ? cineasta e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, onde participa do Núcleo de Pesquisas sobre Telenovelas ? foi originalmente sua tese de doutoramento na ECA. Sua obra visa fundamentalmente a mostrar que apesar de representar parcela expressiva da população e da cultura brasileiras, os negros têm sido ignorados na ficção ou vêm sendo retratados de modo negativo ou estereotipado, quase sempre como pessoas subalternas. Apesar de ter constatado que a memória das telenovelas produzidas nos anos 60 estava irremediavelmente prejudicada, o autor resolveu estudar o período que vai de 1963 a 1997. Entremeando depoimentos de atores negros, dados de pesquisas e levantamentos feitos em livros e arquivos das televisões brasileiras, o autor traça um dos mais completos retratos da presença do negro na ficção seriada brasileira.
Dados irrefutáveis
O fato mais eloqüente entre os muitos narrados pelo autor para mostrar o preconceito que ainda havia em relação ao trabalho do negro, na TV brasileira, na década de 60, diz respeito à escolha do ator que fez o papel principal na novela da Rede Globo A cabana do Pai Tomás. O ano era 1969 e o ator escolhido foi Sérgio Cardoso, branco de lábios finos e nariz afilado. Para poder interpretar o negro Pai Tomás, Sérgio foi pintado de preto e usava rolhas no nariz e atrás dos lábios. Em depoimento de 1995, a atriz Ruth de Souza, que trabalhou naquela novela, dizia: "Os autores vêem o negro como serviçal. (…) As histórias se desenvolvem em cima dos personagens brancos e o negro não tem vez. (…) O ator negro tem que se impor, senão ele fica fazendo eternamente o serviçal".
Segundo o livro, a primeira família de classe média negra na TV brasileira foi retratada, em 1969, na novela Vidas em conflito, de Teixeira Filho, na TV Excelsior, tendo no elenco Leila Diniz, Natália Thimberg e Zózimo Bulbul. Mas nem tudo foram flores: o enredo foi alterado para eliminar, aos poucos, os personagens negros. Somente em 1975, na novela Pecado Capital, de Janete Clair, um negro voltou a ter destaque. O ator Milton Gonçalves ganhou de presente da autora, de quem se tornara amigo, o papel de um psiquiatra formado em Harvard. Segundo Joel Araújo, esse foi o primeiro sucesso de crítica e de público para um personagem negro de classe média.
Mas o negro não é o único discriminado na televisão brasileira. Araújo lembra que em Aritana, de 1979, o personagem principal, um índio, foi interpretado pelo ator Carlos Alberto Ricelli. Da mesma forma, acrescenta, as personagens mulatas dos romances de Jorge Amado, quando protagonistas, são sistematicamente representadas por atrizes brancas.
Nas décadas de 80 e 90 a situação mudou, o espaço para atores negros e mulatos (afro-brasileiros e afro-descendentes no vocabulário politicamente correto) aumentou mas ainda está longe do ideal. Nesse período, de 98 novelas produzidas pela Rede Globo (excluindo as que tiveram como temática a escravidão) não foi encontrado nenhum personagem afro-brasileiro ou afro-descendente em 28 delas. E em apenas 29 produções o número de atores negros ultrapassava 10% do total do elenco.
Os dados apresentados no livro são irrefutáveis. Gráficos, quadros e dados estatísticos provam que a telenovela brasileira ainda não dá visibilidade à composição racial do país, praticando, assim, uma negação da diversidade racial brasileira. E, para concluir, Joel Zito Araújo pergunta: "Será que nos próximos anos a telenovela brasileira estará assimilando, com mais naturalidade e regularidade, o talento, a personalidade e a aparência física do ator negro, assegurando para as estrelas afro-brasileiras um lugar semelhante ao que Denzel Washington, Angela Bassett, Morgan Freeman e Whoopi Goldberg já conquistaram na indústria cinematográfica norte-americana?"
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