Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Nelson de Sá

EUA EM GUERRA

"Novo espetáculo tem novo protagonista, Al Jazeera", copyright Folha de S. Paulo, 8/10/01

"George W. Bush e assessores anunciaram, desde os primeiros dias após os atentados, que esta guerra não seria como as outras. Não seria um espetáculo de TV, por exemplo, como a Guerra do Golfo.

Pelo que se viu no primeiro ataque ao Afeganistão, porém, o que não vai faltar é espetáculo. A CNN entrou desde logo com cenas ao vivo de Cabul. Com imagens bem ruins, noturnas, mas imagens de guerra não muito diversas daquelas da Guerra do Golfo.

A diferença foi o estabelecimento de um novo protagonista na cobertura mundial, o canal do Qatar, Al Jazeera. Um protagonista ao qual a CNN se juntou sem constrangimento. O novo âncora estrela do canal americano, Aaron Brown, declarou logo ao assumir a transmissão:

– Nós temos um relacionamento interessante e exclusivo com o Al Jazeera.

E assim o melhor ou o mais espetacular da CNN -e dos outros canais pelo mundo- foi gerado do Qatar. A cobertura vinha toda ela sob controle, sincronizada, até os discursos de Bush e Tony Blair. Mas aí o Al Jazeera surgiu com o atordoante outro lado.

A gravação com Bin Laden, de uniforme e pose de guerrilheiro, metralhadora ao lado, deixou Aaron Brown sem fôlego, dizendo ter sido ?arrepiante?. Feitas antes do ataque de ontem, mas depois do dia 11, as imagens foram aparentemente preparadas para divulgação logo após uma reação americana.

Entre as frases de Bin Laden, coisas como ?(os EUA) receberam o que fizeram por merecer?. Faltou bem pouco para afirmar que os atentados de Nova York foram obra sua.

O tal ?relacionamento interessante e exclusivo? da CNN era o direito de usar as imagens do Al Jazeera por seis horas, até serem liberadas para outras emissoras, que haviam sido avisadas do embargo anteontem.

Mas as cenas eram fortes demais para serem tratadas assim -e as concorrentes diretas da CNN, Fox News e MSNBC, além de redes como a ABC não demoraram a jogar Bin Laden no ar. Do porta-voz da ABC:

– Mostrar essas imagens ao povo americano pesou mais do que qualquer interesse comercial que a CNN estivesse tentando tirar desta crise.

As imagens de Bin Laden foram tão teatralmente chocantes que horas depois o âncora da CNN ainda se sentia na obrigação de comentar a reação que haviam provocado e defender o registro do outro lado.

Não pararam aí as transmissões do Al Jazeera, reproduzidas na CNN e no resto. Foi ouvido o vice-ministro da defesa do Taleban, dizendo desafiador que não iria ?contar os segredos?. Um correspondente em Cabul relatou, sempre em árabe, com tradução, como as bombas explodiam perto de onde estava.

E o ministro do exterior do Taleban disse, ao vivo:

– Nós é que somos precisos. Nós é que derrubamos um dos aviões deles. Que Deus nos ajude a derrubar outro avião.

A cobertura ligada ao canal do Qatar se concentrou no meio da tarde. Depois voltaram a imperar na ?guerra de propaganda?, expressão usada na própria TV, as vozes pró-americanas, de Jacques Chirac a Henry Kissinger. Mas o estrago já estava feito.

Osama bin Laden conseguiu se sobrepor, como espetáculo, até mesmo a George W. Bush -ele que desta vez se preparou bem, falou da Casa Branca, cortinas das janelas abertas, num discurso perfeito, capaz de agradar ao mundo inteiro."


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"No burburinho", copyright Folha de S. Paulo, 5/10/01

"Enquanto a ?guerra? não vem, se é que vem mesmo, o pânico se instala nas manchetes de televisão.

Um avião civil russo explodiu em pleno ar, segundo a BBC, com o testemunho de um piloto armênio. Mas não, segundo a CNN, ?fontes confiáveis? do governo americano dizem que foi um míssil ucraniano que derrubou o avião.

A Globo foi atrás e anunciou que a queda e a morte de 77 pessoas podem ter acontecido por mero ?engano?.

O ruído de informação resultante é como tantos outros que vêm sendo sentidos nos últimos dias -e até antes, como no episódio da explosão no shopping francês, finalmente aceita como um atentado.

Preenchendo as manchetes dos telejornais, no momento, é possível sentir choques sem fim, vagamente relacionados aos atentados.

Por exemplo, ?ataque a motorista de ônibus provoca acidente e mata seis pessoas nos EUA? ou ?alarme falso de sequestro chama a atenção do mundo inteiro na Ásia?.

No burburinho, entraram histórias ainda mais gritantes, ontem. Na Flórida, um caso de envenenamento por anthrax foi anunciado pela própria Casa Branca, causando alvoroço pelo temor de ataque com armas químicas.

Na mesma linha, mas do outro lado do mundo, anunciou-se do nada, em plena fronteira do Paquistão com o Afeganistão, uma epidemia do vírus ?assassino? Ebola.

A televisão, diante disso tudo, só faz transferir seu pânico para o telespectador. Na expectativa da ?guerra? anunciada, é o que tem para vender.

A preparação de ?corações e mentes? para ações militares prossegue, dia após dia.

O primeiro-ministro inglês Tony Blair saiu distribuindo ontem um ?dossiê? com as provas do envolvimento de Osama bin Ladin nos atentados.

Nas palavras de Blair, na BBC, as provas ?não deixam dúvida?, as evidências são ?irrefutáveis? etc.

E FHC também recebeu suas provas, segundo a Globo, diretamente dos EUA.

O americano já está preparado para voltar a consumir entretenimento hollywoodiano, definitivamente.

O seriado de televisão ?The West Wing?, que trata do cotidiano da Casa Branca, com um presidente e tudo, liderou a audiência, anteontem nos EUA, com um episódio especial sobre os atentados."

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"Uma só voz", copyright Folha de S. Paulo, 3/10/01

"A televisão saiu dizendo que Tony Blair e George W. Bush falaram ontem com ?uma só voz em lados opostos do Atlântico?.

Foi uma frase da ABC, para quem Blair falou e Bush ?ecoou?. Para a CBS, foram as palavras de Bush que foram ?ecoadas? por Blair.

Quem ecoa quem não importa muito. Certo é que as redes de televisão, tanto nos EUA como fora, como aqui no Brasil, como ontem na Globo, também falam ?uma só voz?.

Ontem, reproduziam todas os pronunciamentos ?duros? de Blair e Bush -que, à primeira vista, pouco ou nada somaram aos seus discursos anteriores. E reproduziam todas que a Otan disse ter se convencido com as ?provas? americanas de ligação de Bin Ladin com os ataques. E assim por diante.

A TV, numa só voz, ecoa.

Aquele que destoa dessa voz única sai pedindo desculpas. É o que o italiano Silvio Berlusconi vem fazendo desde que declarou a superioridade cristã diante do islamismo.

Ontem, segundo a BBC, ele foi ao encontro de uma delegação de muçulmanos, não sem antes dar uma entrevista a um jornal árabe publicado em Londres, ?Asharq Al-Awsat?.

Garantiu não ter dito ?nada? do que foi apregoado:

– É coisa de algumas pessoas da imprensa esquerdista, para destruir as minhas relações de longa data com os muçulmanos.

Se a televisão ocidental ?ecoa? por toda parte, com o ?inimigo? a coisa é pior. Um registro da BBC, sobre a mídia afegã hoje, mostrou que a única rádio que sobreviveu afirma com orgulho, no ar, que é a única emissora do mundo que baniu qualquer tipo de música.

A BBC aproveitou a notícia para dizer que uma pesquisa sua, feita antes dos atentados, revelou que, no Afeganistão, 72% dos que falam pashto e 62% dos que falam persa ouvem diariamente o serviço mundial da rádio BBC.

No ?fio da navalha? em sua retórica, sem deixar claro se apoiaria ou não a ação militar americana, o presidente FHC se perdeu pelo muro.

A Jovem Pan relatou que o jornal ?The Wall Street Journal? deu ontem, nos EUA, o seguinte título: ?Presidente do Brasil não vai apoiar ação militar contra o Afeganistão?.

As declarações eram aquelas mesmas, vagas, de anteontem, mas lá entenderam outra coisa.

Saiu o custo da dedicação nacionalista da televisão dos EUA, aberta e paga, na semana seguinte aos atentados. Para a empresa de acompanhamento publicitário CMR, foram US$ 312 milhões."

    
    
                     
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