ELEIÇÕES 2002
“Teias do impessoal”, copyright Jornal do Brasil, 10/09/02
Não há quem não tenha passado pela terrível experiência de se ver refém da tecnologia sem ter a quem recorrer. Números de telefones que remetem a menus eletrônicos, que por sua vez vão remetendo a outros iguais, formando uma irritante teia de impessoalidade. Poucas sensações são mais frustrantes, mais estressantes, do que esperar simplesmente por uma voz humana, por um atendimento minimamente personalizado, que sabemos que nunca virá.
O problema é que, na quase totalidade dos casos, essa ciranda eletrônica não leva a resultado algum. Não soluciona os problemas concretos do consumidor e cria outros, bem mais graves do que o original. O consumidor reage menos mal à deficiência de um equipamento ou serviço do que à falta de alguém que lhe diga, concretamente, o que fazer.
A maioria das desistências de compras ou de assinaturas de serviços, sabe-se hoje, deve-se bem menos à falta de qualidade dos produtos oferecidos do que à impessoalidade com que o cliente está sendo tratado. Milhares de dólares gastos durante anos em marketing e publicidade com cada um desses clientes vão para o pó em questão de segundos, no momento em que um yuppie desastrado decide instalar um sistema eletrônico de atendimento que não atende a nada – simplesmente porque o consumidor sente-se lesado em seu direito elementar de saber o que foi feito com seu dinheiro.
O que se depreende da ineficiência dessa mecânica é que, para colocar de forma simples, o consumidor não compra ou assina apenas eficiência: ele compra cumplicidade com seus problemas. E mais: que a cumplicidade do fabricante é mais importante do que o funcionamento do produto. Porque o produto, todo mundo sabe, um dia vai falhar. Mas a solidariedade com o problema que isso causa, essa não pode faltar em momento algum.
Quem faz televisão sabe o que é a noção de cumplicidade do espectador. Nas suas cartas, mais do que elogios ou queixas, está embutido um profundo sentimento de solidariedade contra a ?concorrência?, que às vezes não se manifesta nem em quem está fazendo os programas. O espectador admira o que lhe parece igual. Cria um time com o produto – e ai de quem não se der conta disso.
Vendo os programas eleitorais, nos deparamos com candidatos vendendo eficiência, honestidade, desprendimento. E no entanto, é difícil para o povo sentir-se cúmplice de algum deles. Quando o ser humano aparece, é quase sempre por acaso, e de forma desastrada – como o candidato a vice chamando a secretária de governo de ?mulherzinha mal- amada?. É a falta do ser humano, do cúmplice, que faz com que as preferências do eleitor oscilem tanto – como se ele estivesse procurando em vão por um número no menu eletrônico capaz de lhe trazer traços de humanidade em quem está pedindo o seu voto.
Na tela, essa cumplicidade é bem mais visível do que rachaduras no cenário. E no entanto, construir cenários bem-acabados é, assim como sistemas de atendimento eletrônico, uma questão que se resolve com tecnologia. O companheirismo de que o povo precisa, o time que está esperando para formar, esse nenhum marqueteiro conseguiu ainda construir.”
“Um debate só para três”, copyright Jornal do Brasil, 5/09/02
“Reunidos para debates na TV, os supostos adversários vêm conferindo a Luiz Inácio Lula da Silva tratamento de tal forma reverencial que o candidato do PT à Presidência ameaça transformar-se em mediador dos próximos encontros. No mais recente, promovido pela Record, já se mostrou tão à vontade quanto um paraninfo de turma. Como ocorre nas festas de formatura, de vez em quando algum participante incide em gestos malcriados. Mas nada que subtraia ao rosto emoldurado pela barba o sorriso indulgente de homenageado.
Lula não parecia mais um entre quatro candidatos: parecia o líder e vocalista de um quarteto que, sem tal atração, nem seria convidado para o programa. Na dianteira em todas as pesquisas divulgadas até agora, fez questão de lembrar tal fato, e a condição estelar dele derivada, ao moderador Boris Casoy. ?Sou o primeiro líder das pesquisas que aceita participar de debates?, incensou-se. ?E tem sido elogiado por essa conduta?, avalizou Casoy.
?Palmas para o Lula, que ele merece!?, ordenaria Chacrinha se a apresentação do quarteto ocorresse num programa de auditório à caça de atrações que garantem audiência. Não é o caso. Seja qual for a posição ocupada em pesquisas, candidatos comparecem a debates do gênero para cumprir o dever de expor-se aos eleitores. Os brasileiros precisam conhecê-los de fato, para escolher com segurança o futuro ocupante da Presidência.
No estúdio, insista-se, não havia artistas atraídos por gordos cachês. Havia homens públicos obrigados a dizer o que pensam, o que querem e como conseguirão consumar tantos planos e promessas. O país continua a esperar que, antes de 6 de outubro, troquem a desconversa pela clareza. (Talvez seja o caso de esperar sentado, mas esta é outra história).
Ciro Gomes e Anthony Garotinho limitaram-se a tabelar com Lula para chutar de bico contra o governo Fernando Henrique e avançar em bloco contra José Serra, candidato apoiado pelo Planalto. Serra distribuiu caneladas, mas também ele tratou de poupar o adversário do PT. Num raro ataque frontal a Lula, quis saber por que a bancada do PT no Congresso se opôs à aprovação de medidas hoje defendidas pelo candidato. A privatização de empresas estatais, por exemplo. Em meio à resposta, Lula disse algo sobre ?a evolução dessa espécie que é o parlamentar?. Ninguém fez cara de espanto.
Ninguém parece espantar-se com muita coisa espantosa que Lula anda dizendo e fazendo. Durante o debate, Serra, que exibe cada dia vivido no exílio como uma espécie de estação do calvário, não tentou induzir o candidato do PT a dizer com mais clareza o que pensa do governo Emilio Médici, a explicar melhor esses espasmos de admiração pelos planejadores do Brasil Grande. Lula afirmou recentemente que houve avanços em algumas áreas, e houve. Mas também ocorreram equívocos monumentais. Sobretudo, nada justifica o assassinato da liberdade.
No recente encontro com intelectuais, Lula recordou com humor o tempo em que usava expressões como ?menas?. Melhorou em Português. Alguns dos presentes poderiam oferecer-lhe um curso intensivo de História do Brasil. O candidato é homem que aprende com rapidez. Ele precisa saber ao menos o que houve desde o ano em que nasceu.”
“Que venham os quatro”, copyright O Globo, 8/09/02
“Se você é daqueles que ainda não se decidiram, mesmo depois do debate da Record, ou por isso mesmo, calma, não se desespere: vem aí o encontro dos candidatos com os colunistas do GLOBO e todas as suas dúvidas e grilos serão desfeitos. O perigo é, depois de tudo, você continuar rejeitando os quatro e acabar votando no João Ubaldo, que não vai desmerecer o seu voto e, como se pode imaginar, tem tudo para ser um grande presidente da República.
Como fui escalado para mediar a entrevista do Serra, não consigo dormir direito, pensando no que farei se houver um bate-boca entre ele o Verissimo, que adora discutir e é estourado – língua solta e pavio curto. Que providências devo tomar se o candidato do PSDB ficar pedindo direito de resposta por achar que foi injuriado pelo cronista, que na quarta-feira o acusou, sem provas, de não saber dançar, de ser, sambando, ?a coisa mais lamentável dessa campanha eleitoral?. Imagine, tudo isso por escrito, publicamente.
?O Serra samba pior do que o príncipe Charles!?, exagerou na comparação, cometendo uma injustiça gritante, ainda mais que compromete seriamente uma das propostas mais originais do candidato: dos quatro, ele foi o único até agora a usar os pés (para sambar, bem entendido). Em que medida a acusação ameaça tirar-lhe votos? É uma questão que pode vir até a exigir perícia técnica. Que tal convidar como juiz o Carlinhos de Jesus, se o ofendido quiser responder às aleivosias como uma demonstração na hora?
Aliás, não sei se o Rodolfo Fernandes vai estabelecer regras muito rígidas para esses encontros-entrevistas. Como se deve tratar os candidatos: por ?senhor?? ?V. Excia.?? ?Candidato?? ?Presidenciável?? Seria engraçado ver o Ancelmo, esforçando-se para ser cerimonioso, perguntando: ?O senhor acha, seu Lula, que…? E o Vidor argumentando: ?mas seu Garotinho?. De minha parte, vou fazer uma exigência: o Serra está proibido de dizer ? rúim ?. Toda vez que disser, vou corrigi-lo: ?Ruím? , por favor, acento tônico na última sílaba, candidato, ou seu Serra?. Vou sugerir a Teresa Cruvinel que faça o mesmo com Ciro: sempre que ele pronunciar ? interésse? , ela deve ser enérgica, interromper a fala e corrigir: ?interesse?, com ?e? fechado, candidato; é a última vez que aviso.
Acho que, além de um padrão mínimo de correção fonética e vocabular, a gente deveria estender o rigor ao campo semântico. Por exemplo: fica interditado o uso, como xingamento, da palavra ?mentira?, talvez a mais pronunciada no debate da TV Record. Acredito que todos se acusaram de mentiroso. Chegou a ponto de Garotinho afirmar: ?Nesse debate, se alguém está mentindo, não é só um?. Mas aí também ficou-se sem saber se ele estava falando a verdade.
Houve um tempo em que chamar alguém de mentiroso, sem prova em cartório com firma reconhecida, era processo certo por calúnia e difamação. Hoje, ninguém parece se sentir ofendido por isso. Proponho que sejam restabelecidos os velhos circunlóquios e os respeitosos eufemismos: ?faltou com a verdade?, ?distorceu os fatos?, ?não está sendo fiel ao acontecido?. Tolerância zero para agressões do tipo: ?Você é um mentiroso?.
As relações dos políticos ou dos parlamentares entre si eram melhores quando se respeitava a liturgia, mesmo na hora de xingar: ?Com todo o respeito, Vossa Excelência é o que se poderia chamar de um canalha?. O condicional, além de mais elegante, servia como atenuante na Justiça: ?Eu não chamei de canalha. Apenas disse que se poderia chamar?. Considerando que o tiroteio de fato começou nesta semana e que, como em toda guerra, a primeira vítima é a verdade, todas as precauções devem ser tomadas, inclusive porque daqui para a frente e até o segundo turno a virulência tende a aumentar. Quem sobrar verá. Lula, que na Record esteve muito tranqüilo, divertindo-se com a troca de desaforos entre Ciro e Serra, não perde por esperar: em breve ele será a bola da vez.
Estou ansioso para ver de perto os candidatos. Quero saber, para depois usar, o que o Serra está passando para esconder suas olheiras e para tirar os reflexos da careca, que no meu caso é o lugar onde está concentrado todo o meu brilho. Também quero constatar se Lula está mesmo pintando a barba de branco e se as duas covinhas no rosto são de fato verdadeiras. Danuza Leão foi a primeira a reparar nisso, antes mesmo de surgir ?o Lulinha paz e amor?: há meses, ela revelou que o candidato tinha mudado tanto sua imagem, tinha ficado tão light, que duas charmosas covinhas haviam nascido em seu rosto. Será que elas não existiam no tempo em que ele tropeçava em anacolutos e dizia ?menas laranjas?? Mistérios há de haver. Mas estaremos atentos e a postos para esclarecê-los.”