CASO DAVID KELLY
“Único compromisso: a verdade”, copyright O Estado de S. Paulo / The Sunday Times, 21/07/03
“Encontrei-me com David Kelly pela primeira vez há seis anos, entre uma e outra de suas freqüentes viagens ao Iraque como inspetor de armas das Nações Unidas. Ele podia parecer austero ao apertar sua mão e olhá-lo como um pesquisador que estudasse um peludo animal de laboratório.
Mas havia algo caloroso, instantaneamente sedutor, em seu sorriso e sua personalidade.
Ele me disse: ?Então, sobre o que você quer saber? Toxina botulínica?
Antraz? VX? Sarin?? Havia um brilho em seus olhos e uma suave alegria em sua voz. Logo fui cativado por seu entusiasmo.
Kelly era um acadêmico que se orgulhava de ter escapado por pouco dos entediantes limites da academia. Depois de ocupar um cargo de pesquisa na Universidade de Oxford, ele ingressou em Porton Down, o centro de biodefesa da Grã-Bretanha, onde se tornou chefe de microbiologia. A Guerra do Golfo, em 1991, mudaria tudo. ?Quando o Iraque invadiu o Kuwait, em agosto de 1990, eu não sabia que Saddam Hussein ditaria o curso dos próximos dez anos de minha vida?, disse Kelly. De 1991 a 1998, ele fez 37 viagens ao Iraque, muitas como o principal inspetor britânico na equipe da ONU.
Ele era tão agradável na conversação quando determinado em seu trabalho.
Suas histórias favoritas me foram contadas no pub Waggon & Horses, diante de sua casa em Southmoor, perto de Oxford. Kelly era bom de anedotas sobre os principais cientistas de Saddam, muitos dos quais estudaram na Grã-Bretanha.
?Eles são surpreendentemente polidos?, costumava dizer-me. ?Eles adoram a Inglaterra e falam de suas universidades de um modo que nos faz esquecer que estão projetando armas para exterminar milhares de pessoas.? Kelly os entrevistava repetidamente, transcrevendo suas respostas com cuidado e retornando metodicamente ao mesmo lugar para checar a consistência das informações. Seu adversário favorito era Rihab Taha, a diretora do programa de armas biológicas de Saddam. Foi Kelly quem a apelidou de ?Doutora Germe?.
A reação de Taha às perguntas de Kelly era lançar-se numa discussão aos gritos ou derramar-se em lágrimas. Outros inspetores da ONU ficavam desconcertados com essas reações. Kelly, com a paciência de um pesquisador envolvido num longo experimento, esperava a explosão de raiva passar e então retomava o interrogatório.
Ele se apaixonara pelo Iraque. Apesar do calor, da sujeira e do desconforto de suas viagens, havia algo na paisagem e na cultura que o fazia retornar.
Seu maior medo, quando estourou o escândalo sobre a reportagem da BBC, era de não poder retomar seu trabalho no Iraque. ?Só espero que não me ponham de castigo indefinidamente.?
Para um funcionário civil ele era notavelmente franco, embora sempre resistisse à publicidade. Kelly me disse, pouco antes de morrer, que vinha falando com a imprensa havia dez anos e nunca tivera uma má experiência. ?Se algum jornalista abusa de sua confiança, você simplesmente não o atende mais.?
O especialista acreditava prestar um serviço apresentando complexos assuntos científicos em linguagem simples e compreensível. Ele costumava parafrasear Einstein (pelo menos é o que ele me contou), que dizia: ?Qualquer cientista que não consegue explicar a teoria mais complicada a uma criança de 8 anos é um charlatão.? Mas sua franqueza era também sua vulnerabilidade. Teria sido fácil distorcer suas palavras. Ele era um cientista, cujo compromisso era com o que ele acreditava ser certo ou errado, verdadeiro ou falso.
Nas últimas semanas, Kelly passara por uma mudança, e levou tempo para que eu entendesse o porquê. Telefonei-lhe no mês passado, quando ele estava no Catar, preparando-se para entrar em território iraquiano pela primeira vez desde 1998. Em vez de excitado, ele parecia ansioso. Voou para Bagdá e passou algum tempo trabalhando com o Grupo de Inspeção do Iraque, uma equipe de mais de mil cientistas, entre eles cerca de cem britânicos, procurando armas de destruição em massa.
Telefonei de novo quando ele voltou para receber informações sobre sua missão. Kelly estava atipicamente taciturno. ?Preciso manter meu nome fora dos jornais no momento?, afirmou. Não era difícil adivinhar o que acontecia.
Mas, quando lhe perguntei, à queima-roupa, ele negou ter falado com Andrew Gilligan.
Kelly recusou meu convite para almoçar, o que normalmente teria aceitado com muito prazer. Quando sua mulher, Janice, me contou que ele havia adiado seu retorno ao Iraque, marcado para o início deste mês, fui para sua casa e o encontrei no jardim.
Kelly acabara de receber ordem do Ministério da Defesa para não falar, mas conversou comigo e me disse que estava em dificuldades. Ele parecia abatido e seus olhos haviam perdido o brilho. Foi a última vez que o vi vivo.”
“BBC luta para salvar sua credibilidade”, copyright O Estado de S. Paulo / The Times, 22/07/03
“A BBC está lutando para salvar sua credibilidade, após finalmente revelar que David Kelly, o especialista em armas que cometeu suicídio na semana passada, foi a principal fonte das declarações de que Downing Street havia esquentado o dossiê sobre as armas iraquianas.
A BBC caiu na maior crise de sua história desde o pós-guerra, enfrentando acusações de que causou a morte do dr. Kelly ao não admitir antes o que os formadores de opinião em Westminster (o Parlamento) e Whitehall (os ministérios) suspeitavam fazia tempo.
Houve pedidos de parlamentares para que cabeças rolassem na BBC, embora os ministros tenham respeitado o apelo de Tony Blair por moderação. A BBC lançou sua bomba na manhã de domingo, sabendo que não poderia mais segurar a informação – transmitida aos chefes da empresa por Andrew Gilligan, seu especialista em defesa, há pelo menos três semanas – de que o dr. Kelly foi a fonte de sua reportagem sobre o dossiê das armas.
Inevitavelmente, esses detalhes seriam revelados no inquérito sobre as circunstâncias da morte do cientista, a ser conduzido por lorde Hutton, cujos termos foram anunciados ontem e incluirão o papel da BBC no caso.
A confissão levanta novas dúvidas sobre a reportagem que resultou na batalha com Downing Street porque o dr. Kelly disse a um comitê na Câmara dos Comuns, na semana passada, que ele não entendia como podia ser a fonte de Gilligan com base em suas conversas porque trazia visões que ele não havia expressado. ?Acredito que não sou a principal fonte?, disse ele.
E isso pôs em xeque Richard Sambrook, diretor de notícias da BBC, e Greg Dyke, o diretor-geral. Sambrook disse, no dia 26, que a matéria era baseada em ?uma alta e confiável fonte dos serviços de inteligência?. Dyke teria convencido o conselho de direção da BBC a confirmar a história no dia 6, quando divulgaram uma declaração dizendo que os jornalistas podiam usar fontes individuais se a informação vinha de ?alta inteligência?.
O dr. Kelly, especialista em armas, não era membro de nenhuma agência de inteligência e não podia, segundo o ministro da Defesa, ser considerado corretamente uma fonte do setor de inteligência. A BBC continuou alegando que ?interpretou e reportou corretamente? a informação factual que obteve durante entrevistas com o dr. Kelly. Na noite de domingo, Gilligan divulgou uma declaração dizendo: ?Fui fiel às citações e à apresentação do dr. Kelly.?
Para Blair e seu porta-voz, Alastair Campbell, a confissão da BBC trouxe algum alívio. Parlamentares disseram que ela justificou a tentativa arriscada de Downing Street de obter um pedido de desculpas dos autores de alegações de que Campbell – contrariando o desejo dos serviços de inteligência, que não achavam a informação confiável – havia inserido uma afirmação sobre a capacidade de o Iraque disparar armas químicas ou biológicas em 45 minutos.
No entanto, Blair, o secretário de Defesa, Geoff Hoon, e o governo têm pela frente algumas semanas críticas, enquanto o inquérito examina as circunstâncias em que o dr. Kelly surgiu como fonte e como seu nome veio a público. Na última entrevista, o cientista, encontrado morto com um pulso cortado na sexta-feira, falou de ?vários atores sombrios fazendo jogadas?.
O parlamentar que representa a região de Kelly, o conservador Robert Jackson, disse que o presidente da BBC, Gavyn Davies, deveria renunciar. Mas Davies está preparando uma robusta defesa de seus executivos e jornalistas, acreditando não ter sido enganado por eles. Fontes da BBC disseram que ele não pretende renunciar nem pedir a renúncia de ninguém.”
“Blair e BBC sob fogo cerrado”, copyright O Globo, 21/07/03
“As tensões políticas entre o governo britânico e a BBC se agravaram ontem com a confirmação da emissora de que o cientista David Kelly foi a ?principal fonte? da reportagem que acusa o Gabinete do primeiro-ministro Tony Blair de exagerar nas informações sobre a ameaça que o Iraque representaria para o mundo. Tanto Blair quanto a BBC estão sob forte pressão após o aparente suicídio de Kelly, que teria se matado por sua vida ter se tornado intolerável, de acordo com sua família.
Em entrevista à rede de televisão ?Sky News?, o premier afirmou que se responsabiliza por todas as ações do governo e disse que não renunciaria. No dia anterior, Blair não respondera a uma pergunta direta sobre a possibilidade de pedir demissão do cargo.
O clima de tensão entre governo e BBC ficou claro numa declaração de um porta-voz de Blair, que ontem esteve na Coréia do Sul:
– Sejam quais forem as diferenças, ninguém desejava que ocorresse esta tragédia. Sei que todos, incluindo a BBC, ficaram chocados com o que aconteceu.
Num dia de ataques e contra-ataques, a BBC intensificou as pressões sobre o governo para salvar sua reputação. Num comunicado, a emissora disse que omitiu o nome da fonte para protegê-la, e que só teria adiado a divulgação do nome para ontem devido a um pedido da família.
Numa demonstração de que está disposto a lutar para não perder a liderança de seu partido e a indicação para concorrer ao terceiro mandato nas eleições de 2006, Blair confirmou que prestará depoimento no inquérito aberto para averiguar as circunstâncias que levaram à morte de Kelly.
Perguntado se culpava Alastair Campbell, diretor de Comunicação do governo, acusado pelo jornalista Andrew Gilligan (autor da reportagem da BBC) de ter autorizado a manipulação das informações, Blair assumiu a responsabilidade:
– O governo é responsabilidade minha e posso assegurar que a Justiça terá acesso aos fatos, às pessoas e aos documentos que quiser.
Deputado exige demissões na BBC
No contra-ataque, a BBC (que é pública) também prometeu cooperar com o inquérito e reproduziu, durante todo o dia, a entrevista da deputada trabalhista Glenda Jackson, que na véspera pedira a renúncia de Blair. Do mesmo modo, para manter a imparcialidade em seus noticiários e reconhecendo estar sob fogo cerrado, a BBC também transmitiu a entrevista do deputado Robert Jackson, do Partido Conservador, que a acusou pela morte do cientista.
– Acredito que a BBC é responsável pela morte de Kelly. Tanto Gilligan como o presidente da emissora (Gavyn Davies) deveriam renunciar – atacou Jackson.
Segundo críticos, se Kelly era um cientista que não pertencia aos quadros da inteligência, por que Gilligan o citou como uma ?alta fonte da inteligência?? Para o amigo Tom Mangold, que é jornalista, Kelly confidenciou que acreditava ter contribuído com 60% da reportagem da BBC.
– A partir da conversa que tive com ele (Gilligan), não vejo como ele pode fazer uma declaração com tanta propriedade tomando como base os meus comentários – disse o cientista, duas semanas atrás, no Parlamento.
Porém, segundo nota divulgada ontem pela BBC, Kelly não teria sido a única fonte da reportagem. E Gilligan, também em nota oficial, disse que ?não mudou declarações ou interpretou de maneira errada? as palavras do cientista morto.
O governo Blair, igualmente, deve explicações aos britânicos. A pergunta que se faz é como o Ministério da Defesa descobriu que a fonte da BBC era Kello Geoff Hoon, ministro da Defesa, chegou a escrever para um dos diretores da rede dando o nome da fonte. No Parlamento, especula-se que os telefones da casa de Kelly teriam sido grampeados pela inteligência.”