Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Nirlando Beirão

11 DE SETEMBRO

"O luto como espetáculo", copyright Carta Capital, 18/09/02

"Quem passou – como o sobrescrito – a quarta-feira inteira diante da CNN, guardará algumas impressões atordoantes.

Os norte-americanos ainda estão fora de si. A democracia na América está mais para título de livro antigo do que para a realidade dos fatos. A histeria bélica intoxicou as mentalidades com o vírus da vingança às cegas e possivelmente suicida. O presidente não eleito pelas urnas continua se legitimando graças aos terroristas de turbante e à dor que eles disseminaram. A mídia é cúmplice da retórica do poder e a tevê, em especial, abençoa a ditadura da imagem e do áudio, impermeável a todo e qualquer juízo crítico.

O 11 de setembro era para ser dia de pranto. Pela tevê, virou a data universal da truculência neocolonial. Deus salve a América – e a nós todos.

Você não precisa ser um antropólogo nas Ilhas Trobriand para saber que os ritos de uma sociedade têm um quê de espetáculo. E que, não por acaso, os mais imponentes de todos os congraçamentos coletivos são os que vêm do luto e da dor.

Do Levante a Portugal, do México ao Japão, as cerimônias fúnebres se superam em ostentação lacrimosa. Já que a morte é inevitável e, para quem fica, dolorida, que seja transformada em teatro.

A América golpeada pelo atentado de um ano atrás está aí para provar – ao contrário do que supõe a mídia submergente – que nada mudou, desde então. Eis de volta, faustosa e imperativa em sua exibição de clichês, a velha América que é o império da fachada e o principado da instantaneidade, a América Hollywood, a América Broadway, a América Las Vegas, a América do show business e das celebridades solúveis.

Um 11 de setembro à frente da tevê – veículo por excelência da espetacularização dos sentimentos humanos – é compartilhar a tristeza de quem perdeu pais, filhos, irmãos e amigos, mas ao preço de uma xaropada guerreira, overdose de botas e de hinos, uma enxurrada de palavras da qual exala o cheiro suspeito da intencionalidade estudada: ?tristeza?, ?esperança?, ?amor?, ?compaixão?, ?solidariedade?, ?bravura?, ?determinação?.

A América insiste na execração catártica do ?Mal? – quer dizer, ?eles?, os outros (e eis, a propósito, que aparece entre os fervorosos do Pentágono a cara politicamente correta da superxerife Condoleezza Rice, águia entre falcões). Cabe ao patético Bush, retemperado pela ira midiática, cumprir a ?missão? – mais uma palavra a recrutar emoções acerbas, a escorrer como fel da boca marilynesca de Paula Zahn, o bilu-bilu das manhãs da CNN.

Ao lado da sexy Paula, Aaron Brown adverte que imagens da tragédia serão exibidas ao longo do dia, com dor na alma, ?mas não muitas vezes? – artifício mercadológico para fisgar a audiência.

Se do vídeo cruel seremos poupados, do blablablá marcial, não, ele irá se repetir ao infinito, em mil vozes, de uma Christiane Amanpour já mobilizada no Afeganistão, com uniforme de combate que parece assinado por Donatella Versace, ao soturno Larry King, revezando-se com os âncoras domesticados naquela que foi a cobertura mais chapa-branca de que se tem notícia na história da tevê mundial desde os clipes domingueiros de Silvio Santos com elogios aos generais da ditadura – a nossa.

Há que se dar o desconto para um dia de nervos à flor da pele, mas ninguém parou para se perguntar: vale a pena acionar os tambores da guerra? Não é estranho o súbito isolamento político do autoproclamado Império do Bem? (Tony Blair não vale, ele é só um clown).

A câmera lambe, reverente, o trote coreográfico de Bush pelos santuários do 11 de setembro. Ele caminha como um John Wayne em Dodge City. O que há de verdade na atitude dele e o que é mera encenação? Era para ser um momento de delicada sensibilidade e, no entanto, o que se assiste é ao show mais insensível do mundo: a celebração de uma fé tosca e punitiva, que prega a idéia de disseminar a mortandade mundo afora.

O espetáculo não dispensou sequer o decrépito Henry Kissinger, herói de outro 11 de setembro – aquele em que os rangers do Texas para cima depuseram o presidente eleito pelo povo do Chile para instalar a ditadura que matou muito mais pessoas do que as que tombaram junto com as torres gêmeas.

Um vento soprava pelos sítios do culto antiterror, de Manhattan a Shanksville, esvoaçando em Washington os rarefeitos cabelos do ex-secretário de Estado e deixando-o visivelmente desconfortável. Era um vento sibilino, dramático, que propunha um dueto aos soluços em meio ao silêncio. Com todo respeito, cheguei a supor que o vento também era truque de musical."

 

"O dia em que a Terra parou", copyright O Estado de S. Paulo, 11/09/02

"Robert Wise já era famoso antes de passar à direção por ter sido um dos montadores do clássico Cidadão Kane, de Orson Welles. Já como diretor, ainda nos anos 1940, obteve repercussão com Punhos de Campeão, um dos mais famosos filmes de boxe da história de Hollywood, colhendo, depois, novos êxitos de público e crítica nos anos 50 e 60. Wise sempre teve uma preferência especial pela ficção científica, gênero que freqüentou em filmes como O Dia em Que a Terra Parou, O Enigma de Andrômeda e Jornada nas Estrelas, o Filme. O primeiro fornece o título ao especial que a Band mostra hoje, para lembrar o trágico 11 de setembro do ano passado.

Para fazer o especial, o repórter Roberto Cabrini, ex-Globo e SBT, foi a Nova York para investigar as conseqüências do ataque do terror ao World Trade Center. Ele visitou o local da tragédia, entrevistou pessoas e hoje vai coordenar no estúdio um debate com especialistas sobre terrorismo. É o tipo do programa ao qual vale prestar atenção. Vem somar-se à edição especial que o Estado publica hoje, analisando os efeitos daquele dia que redesenhou o mapa da geopolítica mundial e cujas conseqüências estão longe de haver-se esgotado.

?Klaatu barata nikto.? Se você é cinéfilo, já sabe do que se trata e, se ainda não sabe, poderá descobrir esta noite. Cabrini não é louco de ter ido buscar inspiração no filme de Wise sem fazer nenhuma espécie de referência ao seu significado. No começo dos anos 1950, ele causou forte impacto com sua história do alienígena que desembarca em Washington com um ultimato para os terráqueos. É preciso resolver os litígios que não ameaçam só a paz na Terra. Colocam em risco a própria sobrevivência do universo, também.

Na época, Wise pensava no risco representado pelo perigo atômico. Hoje, o dia em que a Terra parou, o apocalíptico 11 de setembro, presta-se a outro tipo de reflexão que não exclui o perigo atômico. A frase citada, com seu valor de advertência ou ameaça, serve para advertir sobre (e contra) os fundamentalismos que continuam ameaçando destruir o mundo. Só que esse fundamentalismo não funciona numa mão só – o terror. Cada vez mais, pensadores como Susan Sontag e o cineasta Michael Moore, de Bowling for Columbine, que fez sensação em Cannes, este ano, acreditam que os EUA usam o ataque do terror (e a guerra como metáfora) para encobrir uma nova era de expansionismo em sua política externa. Sem desarmamento dos espíritos, a violência vai continuar. Era a advertência de Wise, que sempre achou que a ficção científica oferece mais possibilidades do que qualquer outro gênero para refletir a loucura do mundo em que vivemos."

 

"Depois de 11/9, TV sofre ataque multimídia", copyright Folha de S. Paulo, 13/09/02

"Durante a última semana, as emissoras do mundo inteiro transmitiram, retransmitiram e ainda transmitem uma verdadeira inundação de imagens que ilustram as formas específicas de propagação de um gênero de performance contemporânea: o ataque multimídia.

No oceano de informações que marca a passagem de um ano dos atentados, o documentário da MTV americana, exibido no Brasil na quarta, se diferencia. O painel sobre a interferência do evento na indústria cultural americana reforça a sensação de eficácia das táticas simbólicas da guerrilha.

David Letterman, entre outros apresentadores nos EUA, tiveram seus programas diários suspensos, no ano passado, em razão dos ataques. É como se ficássemos dias sem novela na TV.

O ?Repórter Record Especial? transmitiu imagens ao vivo das cerimônias americanas. A Bandeirantes documentou homenagens oficiais brasileiras. O SBT exibiu documentário enlatado com bombeiros, que ganharam vozes e cacoetes que estamos acostumados a ver em dramas de ficção. Além de documentário, o Discovery mostrou um clipe provavelmente exibido nos países onde o canal a cabo atua, homenageando sua funcionária vítima.

Devido à celeuma que provocou há seis meses nos EUA, o destaque ficou com o documentário ?11/09?, da CBS, exibido pela Globo e pela GNT. Baseado em material dos irmãos Gaudet, aprendizes na arte cinematográfica, o trabalho exibe imagens raras do interior dos edifícios em chamas.

Mas, além do impressionante barulho causado pelo impacto no chão dos corpos que caíam, há pouco detalhe, porque -justifica a voz de Robert de Niro, o narrador em off- não é possível filmar o irrepresentável.

Não houve sangue na cobertura do 11/9, nem agora, nem há um ano. Tragédias de Terceiro Mundo em geral merecem tratamento sensacional. Isso não vale para os males do Primeiro. É possível que a reação defensiva enseje novas técnicas narrativas."