QUALIDADE NA TV
ASPAS
CRÍTICA / ESTRELA GUIA
"Sonhos perfumados a incenso", copyright Valor Econômico, 16/03/01
"Hippies são arqueologia, exceto pela sobrevivência teimosa de duas ou três tribos em São Tomé das Letras e em Canoa Quebrada. Neo-hippies se entrincheiram agora na última fronteira da ficção. Precedidos aos finais de tarde pelo emblemático ?Imagine?, de John Lennon, eles exsudam na TV uma jovialidade irrigada por sonhos, cânticos de mãos dadas e banhos de cachoeira. ?Estrela Guia? é um acervo de nostalgia para quem, a julgar pelo horário das seis, não tem idade para padecer de tais achaques.
Vocês verão como são cândidos os hippies do estereótipo vespertino, criaturas bobinhas, uma coisa assim meio Eduardo Suplicy com cabelos até os ombros, pueris na crença de que bons propósitos podem salvar o mundo. A irmandade justa. O desprezo pelos valores materiais. A comunhão com a natureza. O panteísmo telúrico. O figurino desestruturado. As lavouras coletivas. A dieta saudável. Ritos escapistas de felicidade. O pé no chão. Os olhos caleidoscópicos. E a cabeça na lua.
Na realidade, os lírios e as rosas do Flower Power – os da Globo se situam nos anos 80 e em Pirenópolis, Goiás – são egressos da geração rebelde e politizada dos 60, aquela que lia Herbert Marcuse e que pretendeu fazer a revolução sem os operários. O antibelicismo pragmático da primeira leva desaguou na apatia zen da seguinte, com sua convicção de que o único ataque ao ?sistema? e ao ?establishment? (palavras da época) consistia em recitar mantras e em engolir a gororoba macrobiótica. Tão pacíficos eram esses epígonos de Woodstock que se chegou a desconfiar serem eles vítimas iludidas de uma conspiração urdida por grifes de jeans e manufaturas de algodão indiano, em conluio com a butique Bibba de Londres.
Houve pensadores sérios que chegaram a se inquietar com o perigo de que a máquina produtiva do capitalismo americano estancasse, incapaz de recrutar como peças de reposição para o mercado de trabalho aqueles jovens esfumaçados em seus devaneios – e essa fumaça literal, de efeito extático, não provinha, percebeu-se, de nenhum incenso. O filósofo e diplomata José Guilherme Merquior foi dos que se ocuparam do assunto. O diretor do FBI, J. Edgard Hoover, também.
O capitalismo sobreviveu e se modernizou, sem as arcaicas engrenagens tayloristas, mas com uma fúria competitiva que levou de roldão as consciências libertárias da fauna dos 60. O ódio à sociedade de consumo se diluiu, em contradição narcisista, no consumo voraz de gurus, cultos alternativos e terapias fajutas. De início, o espírito hippie propunha um padrão de valores. Sucesso, carreira, dinheiro, egoísmo, vaidade incorporavam o mal (?tomei deles!? foi a frase de abertura de ?Estrela Guia?, dita no pregão da Bolsa por um Guilherme Fontes perigosamente autobiográfico).
Por ironia, essa gente se preocupou tanto consigo mesma que a meditação transcendental só serviu para lustrar os egos e o graal do paraíso anárquico desandou em ânsia de autoridade. O sonho sucumbiu na voragem das tentações yuppies, mas, enfim, quem não dormiu num ?sleeping bag? nem sequer sonhou. Podes crer."
"?Estrela Guia? subestima público jovem", copyright O Estado de S. Paulo, 17/03/01
"Nós éramos felizes e sabíamos naquela era de aquarius, da paz e amor, do amor livre e das experiências alucinógenas. Só que isso foi nos anos 70 e não nos 80, como quer fazer crer Estrela Guia, que acaba de lançar a cantora Sandy como a ?namoradinha do Brasil do terceiro milênio?.
A novela que substituiu a deliciosa O Cravo e a Rosa na faixa das 6 da Globo é explicitamente voltada para os adolescentes. E talvez por confiar na desinformação dos teenagers, pelo simples fato de não serem nascidos na época do movimento flower power, Ana Maria Morethzon compõe uma espécie de hino do bicho grilo doido para justificar a origem da pureza da alma de sua heroína Cristal (Sandy). Imagine, de John Lennon, Como Nossos Pais, com Elis Regina, e Amor de Índio, de Beto Guedes, são carimbadas na trilha sonora para datar a época em que começa da história.
Assim, a autora ambienta sua versão do musical Hair nos yuppies anos 80 para justificar o encontro de Tony (Marcos Winter), desiludido operador da bolsa de valores carioca, com a hippie Catherine (Maitê Proença) em São Francisco (EUA). Eles são os pais que cuidam, nos anos 2000, de Cristal dentro de uma comunidade que comunga com a natureza (ilustrada por placas com dizeres do tipo ?nenhum ser deve ser aprisionado?, ?paz?, ?alegria?), despreza os valores materiais e cultiva as coisas do espírito. Lá, a menina vive um conto de fadas, com roupas de princesa, colhendo flores no campo, brincando com borboletas e dormindo em quarto de Bela Adormecida, com dossel de organza-rosa e tudo mais.
A contraposição ao nirvana está logo no outro lado da cerca da fazenda, na figura da perua Daphne (Lilia Cabral), que trama para botar a mão nas esmeraldas encravadas no terreiro dos hipongos. Ela e o filho, Carlos Charles, (Rodrigo Santoro) estão na história para acabar com a alegria de Cristal e seus amigos. No Rio, para onde Cristal é enviada – sua mãe lê nas estrelas que o destino dela ?está cruzado com o de Bob (Guilherme Fontes)?, seu padrinho e futuro par romântico -, encontra-se a outra vilã, a noiva de Bob, interpretada por Carolina Ferraz, que também vai infernizar a vida da mocinha.
A novelinha das 6, no entanto, subestima a capacidade da moçada de entender algo menos tatibitate. Pior: dá a sensação de que, para colocar Sandy em cena, qualquer coisa serve, afinal o público jovem está mesmo a fim de vê-la todos os dias sem se importar com o resto. O que é mais constrangedor, porém, não é a trama da carochinha que se delineia, mas os toques de contemporaneidade usados para reforçar a diferença entre a vida pura no campo e a corrupta na cidade. A rave freqüentada pelos jovens do núcleo é pintada com cores fellinianas: figuras estranhas, malabarismos, truques circenses, reforçando uma pseudomodernidade. Até aí, tudo bem. Mas dois personagens jovens enlouquecerem por duas ?popozudas? e correr atrás para se dar bem, é misturar as estações e reforçar estereótipos que até então estavam restritos às apresentações de grupos funk. (Leila Reis escreve aos sábados neste espaço. E-mail: leilareis@terra.com.br)"
"Sem grilo, bicho", copyright no. (www.no.com.br), 16/03/01
"O bem e o mal no Brasil já foram representados pela Marlene e a Emilinha, embora nunca tivesse ficado bem claro quem defendia as cores de quem. Depois vieram a Arena ou MDB, Protesto ou Bossa-Nova, Rio ou São Paulo, e ficou um pouco mais fácil tomar partido. Agora, com a charada proposta por Estrela-Guia, a coisa degringolou novamente. Parece que as cores do bem estariam sendo defendidas pela mini-cantora Sandy, travestida da riponga Cristal. Vive no campo, claro. Diante de uma árvore machucada por uma motocicleta má, Cristal vai e, snif!, faz carinho no caule. É capaz também de abrir a gaiola de um vizinho mau e, magoou!, soltar os passarinhos.
Do outro lado do ringue, a vida na cidade. Tony, o sujeito estressado é feito na medida e nada mais por Guilherme Fontes, metido na vida real com trapalhadas na malversação de fundos públicos. Ele sai correndo (calma, Tony, ainda não são os homens do Ministério Público) de uma reunião com um lap-top embaixo do braço e um sanduíche na mão. No núcleo da cidade, só se pensa em dinheiro e derrubar o alheio. Ô gente feia!! E o amor, onde fica? ?Tá bom posso até perder a depilação amanhã, mas vou ficar um pouco com a minha filha?, diz uma das dondocas de Estrela-Guia.
É tudo tão estereotipado e ingênuo que colocaram a canção Imagine na abertura, sem perceber que cantada hoje, aquela xaropeira do não há países, parece mais o anúncio da globalização neoliberal (a propósito, Paulo Ricardo, o cantor, ou está com sérios problemas nas cordas vocais ou está abrindo todos os canais sensíveis d’alma para incorporar um Rod Stewart de frente). Fica difícil aturar quase todas as tomadas de Sandy com lentes que transformam qualquer fundo d’água em estrelinhas. O clima é de desenho animado. A moça dá bom-dia aos pássaros, conversa com borboletas. Já os vilões são tão barbados, tão suados, que matariam de medo os teletubbies, de novo, de novo, de tão gente feia que eles são.
Estrela-Guia conta a história de Cristal, filha de Bob (Marcos Winter), um especulador da Bolsa de Valores, que larga tudo, vai para (be sure to wear some flowers in your hair) São Francisco e pira quando encontra Kalinda, vivida por Maitê Proença com um sotaque que é um dos maiores micos da história da telenovela. Cristal, Bob e Kalinda vivem numa comunidade hippie ao norte de Mato-Grosso, ouvem muito Beto Guedes, Elis Regina cantando Como Nossos Pais, e tem no olhar aquela platitude muito linda de quem só quer o bem, mel, pão integral e uns mergulhos na cachoeira. Fala-se em energia, vibração, curtição e na vida sem grilos. São hippies, mas light, sem cogumelo estagado, globais. A costeleta de Bob, que muda o nome para Hanuman quando assume a religião shanias, parece ter acabado de sair do barbeiro do Copacabana Palace. Ah, sim, e Hanuman usa uma touca vermelha com uma estrela, exato, igualzinha àquela do Che.
No capítulo de quarta-feira, um fazendeiro mau incendiou a plantação dos paz-e-arroz, detonando os conflitos que vão levar Cristal para a cidade e detonar, pelo menos até o último capítulo, a esperança do living life in peace do Lennon. Enfim, você já viu algo parecido em Branca de Neve, quando a luz divinal se projeta sobre Sandy e os bichinhos da floresta. No núcleo da cidade, se você andou passando os olhos nos jornais dos últimos anos, já sabe exatamente a confusão que vai dar quando o bad-boy Carlos Charles (Rodrigo Santoro) começa a dar tiros de paint-ball nos mendigos de Brasília. São 18 horas, não é hora mesmo de acontecer algo de novo na televisão. Os clichês estão soltos, como andavam as abelhinhas na comunidade dos Novos Baianos nos 70 de Jacarepaguá. A Globo sabe disso e usa de toda sua eficiência ao apresentar o produto. Está no ar novamente uma novela com núcleo urbano e rural, oportunidade de vender produtos nas duas faixas. Os adolescentes curtem uma de suas rainhas que, por não ter tempo para gravações exaustivas, quase não tem texto para decorar e só aparece em situações típicas dos videoclipes – caminhando, banhando-se no lago e muita música no fundo. Os mais velhos viajam nostálgicos com o papo cabeça dos hippies e seu museu de cartas de tarô, camisetas de estamparias indianas, tatuagens de estrelinhas, pirâmides e músicas de James Taylor. Espera-se a volta de alguns modismos como as batas femininas. Mas sem radicalismo, se Deus e Ravi Shankar permitirem. Papai Xororô não vai deixar, por mais riponga que seja a Cristal, que Sandy espante as cocotas com o sovaquinho cabeludo."
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