REFORMA DA PREVIDÊNCIA
Ciro Coutinho (*)
Quem observou com atenção as matérias dos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo do domingo (11/5/2003), notou abordagens completamente diferentes no que diz respeito ao projeto de reforma da previdência proposto pelo governo federal. Utilizando quase os mesmos números, ambos abordaram de modo distinto a questão da cobrança dos “inativos”, talvez a parte mais polêmica do projeto que está para ser votado no Congresso Nacional.
Segundo matéria da Folha, a possível taxação dos “inativos” (acima de R$ 1.058) atingiria, de acordo com cálculo do Ministério do Planejamento, 67% dos servidores públicos. Tal percentual não é o cerne da argumentação do texto, que especula sobre a possibilidade da existência de vários pisos de tributação.
Já no Estadão, os números são a vedete da manchete dominical: “Taxação de inativos atinge só 2% da população”. Ou seja, o jornal faz o cálculo sobre toda a população brasileira (!), o que certamente inclui crianças e desempregados. Além disso, classifica os “inativos” como uma elite de 3,5 milhões de pessoas, frisando que 90% deles estão entre os 20% mais ricos do país. O que o texto pretende provar, portanto, é que não há por que haver polêmica sobre tal cobrança, que seria justa e necessária.
Dimensão humana
Além das diferenças gritantes de enfoque, ou seja, na Folha tomam-se números oficiais sobre o número de aposentados que podem ser efetivamente atingidos pela medida, enquanto no Estadão se considera todo o conjunto da população brasileira, há a questão do termo “inativos”, utilizado comumente pelos dois veículos.
No contexto de tal discussão, a utilização do termo “inativos” para designar os aposentados pode levar a uma idéia equivocada por parte de parte dos leitores dos jornais, passando a impressão de que são pessoas que nada fazem ou fizeram para merecer receber o benefício. A imprensa esquece-se de frisar que tal “elite” não apenas trabalhou por décadas como também o fez em funções públicas, servindo a toda a sociedade. O termo “inativos” é pejorativo e contribui para minar ainda mais a imagem dos servidores públicos do país.
O que estas matérias mostram é que a questão da reforma da Previdência, que poderia estar sendo tratada do ponto de vista da inclusão social (já que boa parte dos trabalhadores informais não contribui com o INSS) e das incertas conseqüências futuras para a maioria da população, que hoje está excluída do sistema, tornou-se mera questão contábil/fiscal na abordagem dos meios de comunicação em geral.
Na guerra de argumentos “factuais”, que têm nas estatísticas seu maior aliado, esconde-se o problema social envolvido na questão da reforma da Previdência (a garantia de uma renda àqueles que já trabalharam por décadas) e a própria dimensão humana de que deveria ser feito o jornalismo. Os números (manipulados conforme o gosto do freguês) são a notícia, e os percentuais, a representação “viva” da impessoalidade com que os meios de comunicação tratam hoje todos os indivíduos.
(*) Especialista em jornalismo político pela PUC-SP