Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

No calor da hora

GAVETA 11 DE SETEMBRO

A capa da edição n? 138 do Observatório
da Imprensa
, de 12/9/01, foi substituída 3 horas antes
de o conteúdo da publicação estar disponível
na rede (18h de terça, 11/9/01). Enquanto a equipe fazia
os ajustes finais nos textos e nas artes, a TV mostrava ao vivo
os ataques terroristas ao World Trade Center e ao Pentágono
a extensão do drama que se seguiu. Abaixo, a capa "derrubada"
de última hora e a solução "all type"
a que se chegou, visto não ter havido tempo hábil,
naquela terça-feira, para conceber e publicar algo sobre
aquilo que nosso olhar atônito acompanhava na TV e na internet.
O OI é um veículo semanal e a operação
editorial de semanários tem características próprias.
Optou-se, então, por acompanhar os desdobramentos dos atentados
e tratar do assunto na edição subseqüente.

A seguir, republica-se uma coleção de artigos veiculados neste Observatório nas semanas seguintes aos atentados de 11 de setembro de 2001. Outras matérias e coleções de artigos da rubrica Entre Aspas podem encontrados clicando no botão Edições Anteriores, na página principal do OI: procure pelas edições a partir do n? 138 (12/9/01). (L.E.)

 

Edição 139 # 19/9/2001


Alberto Dines

** A mídia não era o alvo. Era o objetivo. Precisava ser acionada e explorada ao máximo. Para magnificar. O terror funciona para aterrorizar e sem divulgação não há terror. Matar é secundário, o terrorista precisa intimidar. Pela irradiação do medo obtém efeito maior: mata a capacidade de reação da sociedade. Os dezoito minutos de diferença entre os choques nas duas torres do WTC indicam que os terroristas contavam com a agilidade da mídia americana para flagrar em toda a extensão o segundo abalroamento e os dois desabamentos. Foram recompensados.

** A mídia americana foi posta à prova. Saiu-se brilhantemente: reagiu com incrível velocidade, derrubou os constrangimentos empresariais relativos a custos e receitas, esqueceu o show business. Mostrou o que precisava ser mostrado. Cumpriu a sua missão. O fato de não transmitir imagens de gente esfacelando-se ou esfacelada no chão não significa que tenha adotado a autocensura. No Brasil, os que reclamaram contra este respeito à sensibilidade e este senso de responsabilidade foram sobretudo aqueles que defenderam o embargo total na cobertura de um recente seqüestro. Se o Prêmio Pulitzer deste ano puder ser concedido a uma instituição certamente quem o merece é o jornalismo americano.

** Inclusive pelo seu pronto e instintivo espírito crítico. Já na quinta-feira (13/9), os grandes jornais americanos estavam comentando o desempenho da mídia, sobretudo a eletrônica. Sem tabus ou corporativismos [acompanhe, nos outros links desta rubrica, matérias sobre essas avaliações].

** Barbara Olson, apresentadora da CNN (passageira do único avião que não acertou o alvo), conseguiu ligar pelo celular para o marido, Ted Olson, do Ministério Público Federal. Outros o fizeram no mesmo vôo certamente para enfrentar os terroristas. Barbara encarna a bravura profissional do repórter, atento até o último segundo.

** O certo, porém, seria falar em mídia novaiorquina, porque o modelo do jornalismo americano foi produzido e continua sendo alimentado na ilha de Manhattan. A CNN está em Atlanta, o Washington Post é baseado na capital, em Chicago sempre fez-se muito bom jornalismo; mas Nova York mistura o jornalismo de rua com o jornalismo de idéias, usina dos paradigmas formais, morais, técnicos, conteudísticos e humanos da imprensa americana e vigentes ao longo dos últimos 100 anos. Lá estão sediadas as duas melhores escolas de jornalismo do país e certamente do mundo; lá vivem correspondentes de todos os quadrantes, razão do seu cosmopolitismo. Na exígua ilha do rio Hudson, os jornalistas aprendem a exercitar o seu espírito público e missioneiro.

** Mas Nova York também é a matriz do jornalismo yuppie, central da mídia fashion, capital mundial das Relações Públicas e dos lobbies. Este "estilo Armani" ? exterior, cosmético, superficial ? e que tanto impregna a mídia brasileira foi soterrado na terça-feira, 11 de setembro de 2001. Não há leviandade e mundanidade que resista ao horror do que aconteceu naquele dia e ainda vai acontecer nas próximas semanas ou meses quando forem desenterrados os corpos, enterrados seus restos, encarada a extensão dos escombros e contadas todas as histórias. A noção de ter escapado da carnificina vai mexer profundamente com a alma novaiorquina por mais forte que seja a inclinação consumista ? sua mídia não poderá deixar de refletir a dorida metamorfose.

** Jornalistas brasileiros começam a criticar a mídia americana porque estaria incentivando o furor vindicativo contra os mandantes do genocídio. Jornalistas brasileiros, em geral, não sabem fazer contas: são mais de cinco mil vítimas, no mínimo dez mil famílias chorando seus mortos e, considerando cinco pessoas por família, 50 mil pessoas diretamente atingidas pela tragédia. Sem contar amigos, parceiros, vizinhos, famílias afins e ex-cônjuges. É um universo de 100 mil pessoas numa cidade cuja imprensa costuma refletir diretamente aquilo que seus leitores sentem. Seria possível neste exato momento clamar por outra coisa que não a punição?

** Grande parte da nossa mídia está esquecendo que este foi também o maior ataque terrorista contra cidadãos brasileiros. Os cerca de 20 patrícios que se encontram desaparecidos não foram vítimas de uma catástrofe natural. Foram massacrados num ato político, premeditado friamente para causar o maior número de vítimas. Acostumada a chacinas confinadas em notícias curtas e perdidas, a mídia brasileira está tratando os conterrâneos desaparecidos com espantosa frieza. Não são nossos, preferiram os states, fazem parte do vilão americano. Tsk, tsk, tsk ? pêsames, a culpa é do neoliberalismo e da globalização.

** Nas edições de ontem [domingo, 16] e de hoje, segunda-feira [17/9], já se percebem os contornos da incapacidade de perseverar que parece dominar nossas redações: os editores cansaram-se de tragédias. Com apenas 200 corpos resgatados dos cinco mil desaparecidos, já não querem saber do que se passou no World Trade Center de Nova York. Querem outra coisa, mais quente. A retaliação, o charme da guerra com seus fabulosos artefatos, os fascinantes lances que envolvem o terrorismo internacional atraem mais do que esta lenta tragédia condenada a estender-se ainda por tanto tempo. Jornalista brasileiro é mais novidadeiro do que os colegas de outros países? Ou foi educado para driblar o sofrimento com a panfletagem política?

** A banalização não resulta da repetição mas de uma vocação ou condicionamento para surtos, espasmos e intermitências. A descontinuidade ? e não a reiteração competente ? é que torna o nosso jornalismo tão trivial e descartável.

** Veja dedicou 90% do seu espaço para a cobertura dos atentados. Parabéns. Terá estofo para repetir a dose na próxima semana? Três dos quatro jornalões nacionais colocaram a cobertura dos atentados e seus desdobramentos em cadernos especiais. Meritório. Quanto tempo agüentarão? Pouco: as editorias internacionais já começam a bater pino. Há muito tempo que estão espremidas em nesgas, subdimensionadas, sem apoio de correspondentes internacionais experimentados e com pessoal de retaguarda jovem, sem o devido treino. Há uma década importaram-se "consultores" de Miami e Navarra para desfigurar veículos tradicionalmente comprometidos com a cobertura internacional. O mundo sumiu dos nossos jornais e revistas justamente no auge da mundialização. Agora, a ferro e fogo, o mundo irrompe em nossas vidas e só sabemos reagir mandando buscar os cientistas sociais da esquina mais próxima para ouvir os seus palpites. Em lugar do jornalismo declaratório estamos desenvolvendo o jornalismo achista.

** Prova: nestes últimos dias um cientista político enviou aos principais veículos um curriculum-vitae oferecendo-se para dar entrevistas e depoimentos. É o verbo pautar na forma reflexiva. Colou: um de nossos semanários sapecou a entrevista nas páginas de abertura.

** Vitimado pela pressão das entrevistas-relâmpagos, sem tempo para pensar e preparar-se, o economista Celso Furtado, professor emérito da Sorbonne, um dos ícones da esquerda moderada, acabou dizendo uma sucessão de tolices numa entrevista para a Folha de S.Paulo (sexta, 14/9, Especial, pág. 18). Levou um homérico cacete de um dos colunistas do mesmo jornal (domingo, pág. A-10). Merecia dois: pela incapacidade de resguardar sua dignidade e pelo infantilismo do que disse.

** O mundo mudou bruscamente, não importa se é o século, milênio ou apenas uma nova era que começou. Importa saber se a mídia ? especialmente a nossa mídia ? tem condições de acompanhar esta mudança. Está ela intelectualmente preparada para escapar do esquizofrênico pêndulo futilidade-indignação? O fundamentalismo caiu do céu num Boeing seqüestrado ou vem sendo gestado silenciosamente através do jornalismo de chavões e de palavras de ordem? A questão pode estar contida em duas perguntinhas muito mais simples: o fotógrafo Sebastião Salgado vai incluir Nova York no seu périplo sobre a miséria humana? Ou o sofrimento de americanos está barrado do rol das dores do mundo?