Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Não há surpresa alguma

COTAS PARA NEGROS

Italo Ramos (*)

Não é pequena a frustração dos jovens que tiram nota válida no vestibular e são preteridos pelo sistema de cotas da ação afirmativa, instrumento regularizador do ingresso de negros e pobres na universidade. O sentimento é, no mínimo, de ter sido iludido. Ninguém tem o direito de estranhar se os jovens submetidos a essa prova se colocarem em oposição àquele sistema. Mas esse sofrimento será tão maior quanto menor for o grau de informação desses jovens e de seus pais acerca das razões da ação afirmativa e da real natureza dessa dor. O que mais se tem visto, fora do que é publicado neste Observatório, são discussões entre amigos, nos bares, nas esquinas, nos cursinhos, nas universidades, com muita emoção e pouca informação.

Se os governos seguirem aplicando esse sistema de cotas, sem submetê-lo a um competente debate, em benefício do esclarecimento da população branca, o país poderá enfrentar problemas graves. É possível que nenhum argumento convença os que saem perdendo e os que têm opinião enraizada a respeito dos negros ou da conveniência da ação afirmativa, mas o objetivo final do debate não deve ser convencer, mas informar, tirar dúvidas ? o que é devido à sociedade. E o momento não poderia ser mais oportuno, pois o STF se prepara para examinar a constitucionalidade das cotas e, no Congresso, está tramitando o Estatuto da Igualdade Racial. A decisão do Supremo deverá ser favorável aos negros, já que ele próprio adotou a sua cota de 20%. O Estatuto poderá contribuir para chamar esta “democracia racial” à sua realidade.

A verdade é que os estudantes brancos disputaram o ingresso na universidade sem a concorrência dos negros por um tempo longo demais, sem que qualquer providência fosse tomada, o que, todos sabiam, não era moral. E se acostumaram a esse conforto, proporcionado por “circunstâncias” econômicas e sociais que sempre foram adversas para os negros. Os brancos brasileiros, em geral, gostam de se exibir contrários à discriminação racial, mas costumam esgrimir com ela, às vezes inconscientemente; às vezes, não. Os prejuízos sofridos pelos negros sempre seguiram como se a exclusão fosse algo natural, inconsciente da sua natureza, uma espécie de amnésia coletiva, obra do acaso incorporada ao cotidiano, sem que ninguém cogitasse de dar correção. É assim que a “reserva de mercado” do vestibular constituiu exemplo de um privilégio transcendente da classe média branca. E não nos é dada a inocência de imaginar que quem tem uma imunidade à disposição, por muito mais de um século, não vai usá-la. Mas, um dia, a ética tinha de derrubar essa indiferença. Qual é a surpresa?

A surpresa provém de uma questão que permeia o relacionamento entre brancos e negros, no Brasil. Diferente do que ocorre nos Estados Unidos, onde vigora um estado de misunderstanding e confronto, no Brasil o que mais se nota é uma espécie de misperception. Os costumes turvam a noção de direitos iguais, mas o conflito é evitado, o que beneficia os brancos como concessionários de uma certa, digamos, toler&acircacirc;ncia dos negros ? o que Gilberto Freyre qualificou, impropriamente, de “generosidade”.

Mais do que um desentendimento claro entre essas duas etnias, que não se enfrentam em campo aberto, o hábito de levar vantagem fez vigorar, entre os brancos, uma profunda falta de percepção do princípio da alteridade. A estranheza vem daí: do fato de que ninguém abre mão de um costume secular sem sentir uma dor. No caso da ação afirmativa, desinformados, acostumados ao privilégio e pouco atentos ao direito do outro, os jovens vão se indignar com o que aparenta ser uma injustiça. É o que pode bastar para acharem uma causa, talvez não apenas contra as cotas, mas para se oporem aos vestibulandos negros ou até aos negros, em geral. As alegações mais suaves estão versando sobre uma “discriminação ao contrário”. Bem, se os brancos passaram a ser discriminados, isso é, realmente, muito estranho.

Já se sabe que dificilmente os governos vão suprir a carência de informações. Se é assim, talvez fosse bom que os professores dos cursinhos preparatórios e do ensino médio cuidassem da tarefa, já que os seus alunos estão a um passo do vestibular. Será que eles podem? Provavelmente, não, porque, em sua maciça maioria, esses professores são brancos, igualmente desinformados a respeito da questão racial. Para a maioria dos brasileiros brancos, a questão racial é uma questão dos negros, jamais encarada como um problema da sociedade. Bem, se houver vontade, as instituições dos movimentos negros estão aí para ajudá-los.

Código da meia verdade

Em última análise, ninguém vai dizer que a sociedade brasileira não avançou na direção de honrar os direitos dos seus cidadãos negros. É claro que ninguém dirá que houve avanços notáveis, porque dignos de nota ainda são, isto sim, os preconceitos no Brasil, como de resto no mundo inteiro, principalmente nestes dias de tantos atentados à paz. Mas há pouca honra nos avanços empreendidos, já que, uma vez admitido como real e presente ? o que é um avanço ?, a ponto de merecer a implantação de um sistema de cotas, era de se esperar que o debate dos brasileiros em torno do seu racismo merecesse uma abordagem mais frontal, corajosa e decisiva, menos recalcitrante e frouxa.

De qualquer modo, quem é militante dos movimentos negros há alguns anos há de lembrar que a existência desse racismo jamais foi admitida de maneira tão generalizada como se verifica hoje. E não vai abstrair o fato de que medidas têm sido adotadas, não no sentido de combater o racismo ? o que, no mundo, ninguém sabe como fazer ?, mas de amenizar algumas das suas manifestações. Foi assim que ingressamos no campo do sistema de cotas da ação afirmativa. O sentido de justiça incluiu a população pobre, mas não o livrou de opositores, entre os quais alguns negros. Estas cinco palavras, grifadas, já apareceram em, pelo menos, dois artigos publicados em jornais. Elas formam um código.

Sim, há milhões de opositores à ação afirmativa, entre os quais se inscrevem alguns negros. E por que não? Pretender que não os houvesse seria o mesmo que julgar os negros como seres humanos superiores aos brancos. Eles não são; são apenas iguais e, nessa condição, estão sujeitos às mesmas influências sociais ? sem precisarmos recorrer à genética das mitocôndrias. É por essa razão ? por serem iguais ? que alguns negros, no passado, também fizeram oposição à abolição da escravatura. E por que não? No decorrer da escravidão, assim como muitos brancos, alguns negros foram proprietários de escravos. Aquela era uma época em que vender e comprar um negro já era imoral, mas não constituía crime legalmente previsto. Ao contrário, era um investimento num bem de capital prestigiado, imoralmente, pelo mercado. Logo, o comércio de negros não deveria ser um privilégio da imoralidade dos brancos, pois ninguém corria o risco de contrariar a biologia do comportamento, via pela qual é mais fácil, hoje, resvalar para o racismo.

Alguém já disse que cada novo tempo tem um novo olhar sobre o passado. Se é assim, resta-nos, no presente, identificar e prestigiar a moralidade. Uma das fórmulas para isso consiste num esforço para entender a linguagem que se expressa por meio de códigos, como o que está contido naquelas cinco palavras, cujo significado precisa ser explicado. Afinal, quais são os negros que, a exemplo de muitos brancos, são opositores à ação afirmativa brasileira? Qual a posição social que ocupam? Em quais argumentos baseiam a opinião que defendem? Qual o seu grau de negritude e informação? Não se sabe. Por falta de uma pesquisa competente, fica-se sem muitas respostas, assim como também por falta de experiência, o resultado do sistema de cotas para negros da Universidade Estadual do Rio de Janeiro vai ensejar ações judiciais, com base no mérito; ou melhor, numa suposta falta de mérito.

Mérito ? eis aí uma palavra-chave para decifrar aquele código.

O uso (abuso) dessa palavra demonstra o quanto a discussão sobre (des)igualdade racial está nublada pela desinformação e meias verdades. No contexto da ação afirmativa, essa palavra se traduz por negros sem qualificação ganhando algo em troca de nada. Segundo essa visão, merecer aprovação no vestibular com nota baixa, em detrimento de outros vestibulandos brancos com notas mais altas, seria o mesmo que uma apropriação indébita, um privilégio. Dito assim, o tal mérito parece fazer jus à oposição.

Será que a grande maioria dos vestibulandos negros está, velhacamente, se aproveitando de uma graça que violenta o direito comum? É isso o que aquelas cinco palavras fazem parecer. Elas querem dizer que alguns negros se recusam a usar uma prerrogativa sem direito a sua patente, numa situação comparável à do Brasil pretender se apropriar de um remédio sem a devida autorização do laboratório detentor da sua propriedade legal. É claro que, por mais doentes que o país exibisse, os brasileiros, entre os quais, alguns doentes, iriam se opor a essa atitude, expressando opinião que poderia ser usada pelo tal laboratório para legitimar a violência praticada contra sua patente.

Então é isso? Sim, a expressão “entre os quais, alguns negros” é um código empregado para dar legitimidade a uma meia-verdade, segundo a qual os vestibulandos “ilegais” seriam meros aproveitadores das cotas da ação afirmativa. Porém, se é assim, por que não só o Brasil, mas o mundo quase inteiro ? excetuando-se aquela parcela que sentiu seus interesses econômicos diretamente prejudicados ? aplaudiu a atitude brasileira de enfrentar o instituto da patente? A resposta é simples: porque se tratava de dar combate à Aids, uma causa humanitária, superior, portanto, às questões de soberania meramente econômico-financeira das patentes.

Falácia da desinformação

Soberania ? eis aí outro comando que não resiste a uma boa análise.

Hoje, o senso comum já não permite que um governo esmague seu povo ou elimine uma etnia, prevalecendo-se de um direito de soberania territorial. Esse senso comum parece não vigorar quando se trata da África, mas o mundo tem mudado, no sentido de coonestar algumas intervenções humanitárias, prendendo, julgando e condenando ditadores que se julgam soberanos para a prática do mal coletivo. Pois o sistema de cotas da ação afirmativa ? que se situa muito acima do tipo de humanitarismo citado no caso das patentes de remédios ? é exatamente isso: uma intervenção destinada a corrigir um costume perverso que se apoiava na soberania pífia de mérito duvidoso ? como aqui será demonstrado.

A outra metade da verdade sobre o mérito pode ser recuperada na contabilidade do ICMS. Uma visita à Secretaria Estadual da Fazenda vai revelar que é na arrecadação desse imposto que os governos vão buscar recursos para manter, em grande parte, as universidades públicas. Abstraindo-se o fato de que ele não é um tributo progressivo, podemos apontá-lo como democrático, no sentido de que é pago por todos nós, consumidores, brancos e negros. Porém, a esmagadora maioria dos alunos beneficiados pela universidade gratuita é formada de rapazes brancos, num desequilíbrio que contrasta com a composição racial do nosso povo. A universidade é mantida com o ICMS pago também pelos negros, mas nenhum branco jamais levantou a voz para denunciar a apropriação, pelos estudantes brancos, de um privilégio claro e irrefutavelmente odioso.

Em São Paulo, em 2002, de uma arrecadação total de 21,1 bilhões de reais, 9,57%, ou 2 bilhões de reais, foram destinados às três universidades estaduais paulistas ? Unicamp, USP e Unesp. Quantos reais dessa montanha de dinheiro (que ainda é pequena para qualquer nível de ensino) são relativos ao consumo dos negros?

Pois o sistema de cotas da ação afirmativa veio resgatar, também para os negros, um direito que, por lei, deve ser comum a todos os consumidores vestibulandos. Considerando-se aquela destinação do ICMS, não se admite que os brancos fiquem na universidade, e os negros no mercado. Este é um débito que precisava ser honrado. É assim que as cotas universitárias devem ser vistas: como um instrumento de reparação, de compensação, muito longe de simplesmente caritativo, beneficente, filantrópico, como muitos o imaginam. Note-se que o instituto da reparação é jurídica e moralmente reconhecido e praticado, com fartos exemplos, no mundo inteiro.

Agora, finalmente, chegou a vez dos brasileiros negros. Qual é a surpresa?

A surpresa ainda estaria na falta de mérito?

Os brasileiros que fazem oposição ao sistema de cotas para os negros nas universidades são os mesmos que defendem a melhoria do ensino médio nas escolas públicas. Segundo o raciocínio deles, mediante uma boa escola pública, no nível médio, os negros estariam qualificados para disputar as vagas das universidades em igualdade de condições com os vestibulandos brancos ricos e de classe média formados pela escola particular. E, assim, o conceito de mérito estaria servido. Eis aí uma falácia, urdida pela desinformação. (Eles não sabem que o mérito não funciona para todos? O Dieese sabe, pois já apurou que o mérito não tem garantido salários iguais para mulheres e homens com a mesma função e habilidade.)

O país que se quer ter

É inegável que a escola pública tem melhorado, e isto nos leva a crer na possibilidade de, no futuro, o ensino médio gratuito alcançar o nível de qualidade das melhores escolas particulares. Porém, se o lobby das escolas particulares permitir que isso aconteça, nesse mesmo dia o ensino pago deixará de existir, por falta de alunos. Talvez sobreviva, como em alguns países, mas para alunos com problemas de aprendizado. Da mesma forma, no dia em que os governos prestarem serviços médicos com a qualidade do Hospital Einstein nenhum brasileiro vai pagar um plano de saúde. A escola pública de boa qualidade ? assim como o serviço médico público de boa qualidade ? é uma espécie de saco sem fundo, para o qual a migração da classe média é, hoje, uma medida de inviabilidade. Afinal, o que querem os defensores da melhoria do ensino médio público como medida alternativa à ação afirmativa? Que os vestibulandos negros de hoje esperem por aquele futuro, enquanto seguem pagando o ICMS? O primeiro problema com essa idéia é que os vestibulandos negros de hoje não estarão naquele futuro. O segundo é que os negros, se vão pagar por um serviço sem usá-lo, farão jus à devolução do seu dinheiro.

Essas mesmas pessoas dizem que os prejuízos com a falta de mérito será grande, para os negros e para o país. E argumentam que os negros das faculdades de Medicina e de Direito, para citar apenas dois exemplos, serão encarados como médicos e advogados “de cota”, ao mesmo tempo em que o país passará a contar com doutores de segunda categoria. Elas querem dizer que, ao término do curso, a qualificação final dos negros será inferior à dos brancos. Esta é uma outra meia-verdade. Ela se apóia na suposição de que todos os alunos das universidades completam os seus cursos com o mesmo nível de qualificação, como se absorvessem os ensinamentos igualmente, e como se todas as universidades tivessem o mesmo padrão de ensino. Na prática, não é assim. É de se supor que o último colocado no vestibular tenha a mesma qualificação do primeiro colocado? E o detentor da pior nota de graduação? Será ele um profissional inferior ao que tirou a melhor nota? Será? A vida já nos ensinou que essa equação não é tão simples.

Um “doutor de cota” não deve ser encarado como um grande perigo para a sociedade. O perigo só existirá até a competência dos vestibulandos negros ser posta à prova no final do curso e, depois, no mercado de trabalho. Acreditar que um “doutor de cota” será necessariamente um profissional menos qualificado é o mesmo que desrespeitar a capacidade de ensino da universidade. Também é o mesmo que, por um julgamento apriorístico, duvidar da perseverança dos vestibulandos negros.

O perigo real está, isto sim, na morosidade da Justiça brasileira, o que constitui um risco para os negros. Vamos explicar: É de se supor que alguns vestibulandos brancos recorram aos tribunais contra os negros que os preteriram, em busca da “justiça do mérito” para as suas notas. Vamos presumir, ainda, que uma liminar dê àqueles negros o direito de concluir o curso, enquanto aguardam o julgamento do mérito da ação. Bem, no caso do curso de Direito, já se pode esperar que a OAB não vá chancelar o diploma de bacharéis sub judice. Quantos anos o julgamento do mérito poderá demorar, até que o exercício da profissão seja de pleno direito para aqueles negros? Eis um risco a ser enfrentado.

Outro perigo: o sistema de cotas da ação afirmativa é um instituto de reparação, de compensação, para um abuso que vinha sendo praticado contra os vestibulandos negros mantenedores das universidades públicas. Nada mais do que apenas isso. Nos EUA, ele possibilitou a formação de uma imensa classe média negra. O Brasil também merece isso. Mas nenhum estudante negro deve esperar que ele venha a atuar como instrumento de integração racial. Este milagre pode não acontecer. Ao contrário, o mais provável é que, em virtude de muita desinformação e de meias-verdades, em vez de beneficiar a tolerância branca ele venha a transformar em separatistas alguns estudantes que se sentirem prejudicados e, por isso, passem a situar a causa do “mérito” adiante da urgência de diversidade racial no ensino superior. Isto tem acontecido. Pesquisa recentemente realizada nos Estados Unidos, pelo professor Stanley Rothman, do Smith College, revela que a ação afirmativa não reduziu a tensão racial nas universidades americanas.

Nessa questão do sistema de cotas para as universidades, o raciocínio deve assumir um outro aspecto, pois não se trata, no caso, de simplesmente respeitar o princípio da alteridade. Trata-se, sim, de encarar o negro como isônomo, e não como “o outro” (como recomenda a alteridade), porque, desse último modo, os brancos ainda podem derrapar para a confrontação, para a disputa. Então, para além daquele princípio, é preciso aplicar um outro, o da paridade, e conciliar a participação econômica e social de todos, o que vai definir o tipo de universidade ? e de país ? que se quer ter. Pergunta-se: o sistema de cotas é perfeito para isso? É claro que não. O ideal é que ele não precisasse ser implantado. Mas ele é como a democracia ou o capitalismo: o mundo ainda não consegue aplicar um sistema melhor.

Débito a honrar

Deixamos, aqui, de fazer uma análise mais profunda do caráter dos privilégios educacionais auferidos pelos brancos e os seus efeitos multiplicativos. Mas é oportuno citar o sociólogo Pierre Bourdieu nos ensinando que a ordem social é auto-reprodutiva. A área do ensino não foge à regra. Um exemplo: sabe-se, por meio de pesquisas, que os filhos de universitários são mais aptos ao ingresso nos cursos superiores. Motivados pelo bom exemplo, estímulo e acompanhamento dos estudos que recebem em casa, eles formam uma maioria entre os primeiros colocados nos vestibulares, distinguindo-se, também, ao longo do curso. Isto não vale para os negros, cujos pais, em geral, pararam no ensino médio, se tanto, não dispondo de recursos para ajudar os filhos.

No Brasil, a ação afirmativa está começando como uma cópia malbaratada do que existe nos Estados Unidos, onde o sistema de cotas é apenas um dos aspectos de uma ampla legislação. Tão ampla quanto imperfeita e, portanto, sujeita a críticas. Porém, aqueles brasileiros que fazem oposição a esse sistema ainda não viram nada. Muito mais do que apenas isso pode estar para acontecer. O quê?

Na década de 1970 foi quando os movimentos negros de São Paulo e do Rio de Janeiro estiveram mais voltados para o tema recorrente do resgate da escravidão em dinheiro. Essa idéia foi deixada de lado, porque a sociedade brasileira não estava preparada para a grandeza desse pleito. Ainda não está, mas ele nada tem de absurdo ou sequer estranho. A reparação monetária de crimes cometidos contra etnias e grupos de pessoas tem sido fartamente praticada, sem gerar tanto eco como no caso dos negros. Em 1988, o Congresso dos EUA pediu desculpas publicamente e autorizou o pagamento de 1,2 bilhão de dólares aos japoneses que foram internados em campos de concentração em território americano durante a Segunda Guerra Mundial. Foram 20 mil dólares para cada um dos 60 mil sobreviventes. O Canadá, que tinha feito o mesmo, também pediu desculpas e liberou um pacote de 230 milhões de dólares. Igualmente, os EUA pagaram 1,3 bilhão de dólares aos descendentes de índios e negros massacrados na Flórida pelo exército americano em 1923. O último exemplo desse tipo de recompensa nos é dado pelos judeus. Eles reivindicaram de países, bancos, instituições e empresas a devolução de coleções de arte, ouro, jóias e dinheiro que haviam sido desviados para cofres de terceiros pelo regime nazista. E recuperaram boa parte do que era fruto de seu trabalho. Mais recentemente, a Alemanha e algumas empresas se empenharam na forma de pagar aos judeus que, ainda durante a guerra, trabalharam como escravos. Em todos esses casos havia um débito, que foi reconhecido. [Nota do OI: a Comissão Internacional de Reclamações de Seguros Referentes ao Holocausto (ICHEIC) acaba de colocar online mais de 360 mil nomes de vítimas que tiveram economias investidas em apólices de seguros expropriadas pelo nazismo. Parentes e descendentes são beneficiários diretos de indenizações , 3/5/03]

Da parte dos brancos brasileiros, as perguntas mais comuns, são: “Por que eu devo pagar pelo crime de um antepassado que eu nem conheci? Por que eu devo pagar, se eu nunca tive um escravo?” Estas perguntas incorrem num desvio de questão. Ninguém está incriminando os brancos de hoje, embora eles, sempre que podem, em geral, se aproveitem das conseqüências da escravidão, às vezes inconscientemente, às vezes, não. (A reserva de vagas da universidade para brancos é um bom exemplo de ação em aproveitamento de uma seqüela da escravidão, sob a forma de falta de oportunidades.) É bom que se saiba que a ação afirmativa não está aí para promover o resgate de culpas. A verdadeira questão está no fato de que o trabalho dos escravos construiu grande parte deste país. Os negros escravizados trabalharam, durante séculos, e o valor desse trabalho foi desviado para o bolso de alguém, proprietário de fazendas no interior, empresário nas cidades e governos. Portanto, no holocausto da escravidão dos negros há esse débito ? o menor, entre tantos crimes ? que precisa ser honrado. Isto é o que pode estar para acontecer. Qual é a surpresa?

Em tempo

O professor Antonio Fernando Beraldo, da UFJF, escreveu, neste OI, que é contra o sistema de cotas “do jeito que está posto”. Ele é um homem corajoso e, por isso, merece consideração. Em geral, no Brasil, os brancos não ousam escrever contra benefícios concedidos aos negros, por ser atitude considerada politicamente incorreta. Tanto isso é verdade que ele próprio, embora destemido, colocou-se em guarda, advertindo: “Antes que alguém queira me rotular disso ou daquilo…” Está claro que não é um racista. Mas ele listou as tradicionais dificuldades econômicas enfrentadas pelo ensino superior no país, usou estatísticas para reafirmar as conhecidas diferenças de formação entre estudantes de escolas públicas e particulares, num bom artigo em que, infelizmente, não nos ofereceu nenhuma alternativa ao sistema de cotas. Muito natural, porque não se conhece outro jeito, além do que está posto. O que ele espera, então? Que aquelas dificuldades e diferenças sejam resolvidas para, só depois, os negros ingressarem nas universidades? Isto se assemelha à célebre proposta do bolo que, segundo o golpe militar, o povo deveria esperar crescer [para só depois ser dividido].

Em certo parágrafo, o professor escreveu que “a universidade não pode ficar corrigindo as insuficiências de estágios anteriores”. E, para explicar como é duro freqüentar um curso superior sem a devida qualificação, ele usou o próprio exemplo. Porque tirou uma nota baixa em Química, teve de ser requalificado, numa espécie de quarentena de recuperação por alguns meses, na própria faculdade, para melhorar o seu conhecimento de Química, ele “e mais um monte de gente”. Antonio Beraldo deve ser um dos defensores da melhoria do ensino médio, mas cometeu um descuido: revelou que a insuficiência dele, e de “mais um monte”, a universidade corrigiu. Ele poderá informar que o seu caso foi diferente, já que havia passado num dos primeiros lugares. Mas, ainda assim, não estava qualificado, pois era fraco em Química. Isto aconteceu em outros tempos? Sim, mas já era um tempo em que não se viam negros sendo corrigidos nas universidades.

(*) Jornalista

 

Antonio Fernando Beraldo

Em primeiro lugar, parabéns pelo artigo, Italo, sua defesa da política de cotas é muito boa. Seu texto organiza bem os argumentos dos defensores das “cotas já”, com paixão mas com discernimento. É um prazer debater com pessoas como você. Mas a leitura da matéria não modificou minha opinião. Quem modificou, um pouco, foi a frase desastrada (mais uma) do presidente Lula, dando um puxão de orelhas no ministro da Educação, pela sua pressa em erradicar o analfabetismo (“O apressado come cru”). Daí que perdi a esperança de este governo começar a reparar a perda, atualíssima, de uma geração inteira de brasileiros, brancos, mulatos e negros. Mas continuo pensando que, nos caso das cotas, estas deveriam ser não para negros, mas para pobres.

Segundo: tem que ser dada à universidade pública condições financeiras, materiais e de recursos humanos para absorver e equalizar candidatos que entrarem devido ao sistema de cotas. Terceiro, uma ação afirmativa deve fazer o governo financiar os estudos de pessoas sem recursos também nas instituições particulares, que congregam mais de 70% das vagas do ensino superior no país. Tem mais, mas fica para a semana que vem, num comentário mais demorado.

Finalmente, alguns reparos, apressados: não é o ICMS que financia as universidades federais. O ICMS é um imposto que é repassado aos estados, na sua quase totalidade. As federais são financiadas, como o próprio nome diz, com recursos do orçamento da União. Outra coisa: leis não impedem, leis punem. E juízes julgam segundo a lei e o mérito da questão. Não li o edital do vestibular da UERJ, mas acredito que lá devia estar claramente escrito que quase 80% das vagas seriam “por cotas”, ou não?

Para terminar, no Brasil essa história de reparação por genocídios e outras atrocidades cometidas no passado deveria começar pelos índios, concorda? Quanto a minha passagem pela UFMG, ao ser equalizado em Química, isto foi por uma espécie de “filosofia” de formação bem mais cuidadosa de quadros, que hoje, infelizmente, não existe mais ? pelo contrário. No mais, fica o convite para trocarmos idéias. Abraços. (A.F.B.)