DEFESA DA LÍNGUA
Wladir Dupont (*)
Nova tradução ao inglês da obra maior da literatura espanhola de todos os tempos, El Quijote, de Cervantes. Atualização constante do dicionário eletrônico da Real Academia de la Lengua Española. Publicação de um novo estudo sobre os usos e abusos do idioma perpetrados por jornalistas, esportistas, políticos. Homenagem na Itália à literatura escrita em espanhol. Seiscentos e trinta e cinco escritores da Espanha e América Latina concorrem ao VII Prêmio Alfaguara de Romance, que dará ao autor escolhido este ano 175 mil dólares e uma escultura de Martín Chirino.
Aí estão apenas alguns dos mais recentes e importantes eventos relativos a impressionante expansão e prestígio da língua espanhola no mundo, sempre bem cuidada e vigiada por rigorosos especialistas em Madri, enquanto a comunidade lingüística luso-brasileira continua com dificuldades para realizar tarefas básicas ? entre elas, sistematizar e uniformizar o uso do português em oito países por meio de dicionários e gramáticas comuns. E quanto a uma política oficial de difusão da nossa literatura no exterior, melhor nem falar.
Brecha aberta, espanhóis e hispânicos, ágeis e respeitosos
de suas tradições culturais, a língua sobretudo, se mexem
para todos os lados do mundo, escorados ainda na estratégica vantagem
de contar com cerca de 360 milhões de ?hablantes?.
Assim, a nova tradução ao inglês do clássico El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha (Ecco/Harper Collins, 30 dólares), escrita por Miguel de Cervantes há 398 anos (1605), sai agora nos Estados Unidos assinada por uma tradutora de renome, a doutora em literatura latino-americana pela Universidade de Nova York Edith Grossman, que antes havia passado ao inglês obras de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Alvaro Mutis e Augusto Monterroso. Já em sua terceira edição ao mês de publicada, o que significam 50 mil exemplares em circulação, a tradução do Quixote vem sendo elogiada por gente entendida nesse minado campo da atividade literária.
O escritor mexicano Carlos Fuentes, por exemplo, diz que "o magistral nessa tradução é que estamos lendo, num inglês simples e claro, um romance do século 17. Isso é realmente fantástico: o contemporâneo e o original co-existem. E não, vale ressaltar, o ?velho? com o ?novo?".
O critico e também escritor Harold Bloom, autor da introdução do livro, destaca "a qualidade extraordinariamente alta da prosa de Grossman", que torna essa tradução superior a mais de uma dezena de outras traduções ao inglês ? desde a primeira, feita em 1612 por Thomas Shelton, até a mais recente, a de John Rutherford, de 2000.
O poeta e escritor colombiano, radicado no México, Alvaro Mutis diz que "a fluência da tradução de Grossman faz com que a leitura logo dê a sensação de que se está lendo em espanhol. O trabalho está escrito no melhor inglês disponível, um inglês moderno, mas toda a malícia, a graça e os segredos da língua de Cervantes estão traduzidos de forma genial".
E o que diz a própria tradutora dessa tarefa que lhe consumiu, dia e noite, três anos de trabalho?
Em entrevista ao jornal mexicano Reforma, Edith Grossman confessa que o maior problema foi respeitar seu instinto inicial e traduzir o texto de Cervantes a um inglês contemporâneo. Hesitou, duvidou, até o dia em que comentou o problema com um escritor espanhol seu amigo, Julian Ríos, e este lhe disse: "Não tenha medo. Cervantes é o escritor mais moderno que temos. A única coisa que você deve fazer portanto é traduzi-lo como faria com qualquer outro livro". Isso significa, segundo ela, que não teria que se esforçar para fazer o texto em inglês soar arcaico, "só devia fazê-lo soar como é: uma grande obra de literatura."
Grossman diz também que ao aceitar o desafio de uma nova tradução do Quixote pensou muito sobre os quase quatrocentos anos de estudos e análises literários feitos sobre a obra de Cervantes. "Eu tinha certeza de que os hispanistas iam cair em cima de mim, criticar cada uma de minhas palavras. Felizmente, isso ainda não aconteceu." E sobre as outras traduções ao inglês, acredita que "não são suficientes". "O livro é tão importante que a interpretação de cada tradutor o melhora. É como reler outro clássico, o Hamlet, de Shakespeare, sempre encontramos alguma coisa nova nessa releitura. A mesma coisa acontece com o Quixote."
A tradutora conta que sentiu-se melhor quando conseguiu traduzir a primeira oração do livro, que é a frase mais famosa do espanhol (En un lugar de la Mancha de cuyo nombre no quiero acordarme, no ha mucho tiempo vivia un hidalgo…).
"Quando consegui dar o ritmo em inglês (Somewhere in La Mancha in a place whose name I do not care to remember, a gentleman lived not long ago…) e me foi possível obter o mesmo efeito que em espanhol, fiquei muito contente. A parte mais difícil foi traduzir a poesia: o Quixote está cheio de poemas, muitos de fato medíocres. Foi difícil porque era necessário, sempre que encontrava uma linha em onze sílabas em espanhol, procurar a mesma quantidade em inglês. Foi duro, sem dúvida."
Espanhol on line
A partir deste ano, garante o lingüista Victor García de la Concha, diretor da Real Academia de la Lengua Española, a edição eletrônica do famoso e respeitado Diccionario de la Lengua Española será modificada a cada seis meses, a fim de acomodar e introduzir todas as correções e acréscimos necessários a permanente atualização da obra.
Todos os anos a Academia libera até 6 mil emendas, novas entradas, supressões e mudanças, ele informa. Desde outubro de 2001, os lingüistas e gramáticos da casa vêm estudando ao redor de 11 mil modificações, das quais, até agora, só foram aprovadas perto de 2.500, já incorporadas à edição eletrônica.
As outras nove mil ainda esperam a luz verde das academias dos vários países latino-americanos, "em respeito a unidade e a diversidade do espanhol, já que não podemos, por exemplo, prescindir do que nos diga a Academia da Nicarágua, só porque é um país pequeno", diz García de la Concha.
Enquanto se dedica a esse trabalho sério e permanente, os integrantes da Academia também preparam o Diccionario Panhispánico de Dudas, que deve sair no final deste ano em livro e CD. Trata-se, segundo García de la Concha, de "uma obra muito importante, revolucionária, um dicionário de grande impacto, atento às palavras e termos mais recentes, aos estrangeirismos, aos tecnicismos".
E para 2006, outro grande projeto: a Nueva Gramática de la Lengua Española, com duas versões: uma maior, com duas mil páginas, obra de referência para estudiosos, e um compêndio de 350 páginas, de enfoque mais popular. A importância dessa iniciativa se mede pelo fato de que a última gramática oficial da Academia é de 1931.
"Pela primeira vez, se está preparando uma gramática para o mundo ?hispanohablante?, que recolhe todas as variantes dos diferentes países que falam espanhol", diz García de la Concha.
E fora dos círculos da Academia também se registram outros esforços para melhorar o manejo diário do idioma espanhol, com ênfase nos descuidos e barbaridades aparecidos na imprensa, não só por parte dos próprios jornalistas como das figuras que eles promovem ? artistas, jogadores de futebol, políticos.
O autor da mais recente iniciativa nessa área é "el emérito" lingüista don Fernando Lázaro Carreter, também diretor da Academia, autor de El nuevo dardo en la palabra (Aguilar, 262 pp., Espanha).
Nesse livro, Carreter continua sua cruzada a favor do bom humor e da erudição no trato com o idioma, denunciando os abusos e a mais crassa ignorância todos os dias lidos e ouvidos em jornais, rádios e revistas da Espanha. Mostra como todos esses erros e vulgaridades, aí incluídos os estrangeirismos indevidos ou pomposos, são nocivos ao idioma. É preciso, diz o autor, manter uma atitude crítica diante desse problema do mau uso da língua.
Glória e fortuna
Enquanto alguns grandes nomes da literatura escrita em espanhol, mais veteranos, receberam dias passados uma grande homenagem na Itália durante a entrega do 23? Prêmio Grinzane Cavour, outros 635 aspirantes à glória e à fortuna literárias aguardam agora os resultados do VII Prêmio Alfaguara de Romance, que será anunciado em 23 de fevereiro, na Espanha.
No histórico teatro Carignano, em Turim, o filósofo espanhol Fernando Savater recebeu o Prêmio Leitura, Myriam Sumbolovich o de Tradução (tradutora de Borges ao italiano, ela assina seus trabalhos como Hado Lyra) e Mario Vargas Llosa, o Prêmio Internacional "Uma Vida para a Literatura".
Vargas Llosa, de Lima, pelo telefone, talvez tenha resumido bem o espírito dessa homenagem, como informa o jornal El País: "Esses prêmios Grinzane Cavour significam que a língua espanhola está em alta. Acho que os italianos entendem muito bem a literatura que se faz em espanhol, na Espanha e na América Latina. São sensatos e realistas".
Criado há sete anos, o Prêmio Alfaguara de Romance (para obras inéditas escritas en castellano) tem despertado um interesse crescente entre os escritores latino-americanos, os mais jovens principalmente, não só pelo prestígio que dá aos vencedores, que contam com a competente máquina de divulgação da editora do mesmo nome, como por causa da polpuda recompensa de 175 mil dólares. Este ano o júri do prêmio foi presidido pelo escritor português José Saramago.
(*) Jornalista e escritor brasileiro radicado no México