Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

No império da "cascata"

ÁLIBI DA INDIGNAÇÃO

Alberto Dines


[Do it. cascata.]

S. f.

1. Pequena queda-d’água (q. v.).

2. Pop. Mulher velha e enrugada.

3. Bras. Gír. V. mentira

4. Bras. Gír. Gabolice, bazófia.

5. Bras. Jorn. Matéria inconsistente, retórica, sem fatos, geralmente longa

(Aurélio)


A coalizão anglo-americana cometeu 90% dos erros que poderia cometer: dos morais aos políticos, dos estratégicos aos táticos, dos históricos aos propagandísticos. Mesmo que a campanha militar, até o momento, pareça vitoriosa, não é difícil identificar seus pontos críticos e erros clamorosos. E, sobretudo, imaginar suas dificuldades futuras, algumas intransponíveis.

Portanto, com um mínimo de conhecimento teórico, outro tanto de expertise jornalística e algumas doses de maturidade pode-se perfeitamente encher páginas inteiras de avaliações fundamentadas e consistentes contra esta insanidade bélica. O que não se pode é aproveitar a oposição generalizada à guerra para um vale-tudo jornalístico que, como todos, acabará por ser desvendado. Em algum momento, acabará por comprometer o consenso mundial contra o conflito. Em algum momento, este estado de exceção há de tornar-se regra.

O velho recurso da "cascata" está sendo legitimado pela santa indignação. O marketing da ira sagrada combinou-se ao marketing pessoal, ambos instrumentados pela leviandade e pelo simplismo. O imortal-jornalista da página 2 da Folha de S.Paulo, aqui cutucado e agora arrependido [veja remissão abaixo], reconhece que não se deve confundir Bush com os aportes culturais americanos (domingo, 6/4).

A montagem feita há dias pelo fotógrafo do Los Angeles Times é um exemplo de uma preocupante maré de marotagens. A "cascata" fotográfica foi flagrada pelos editores do jornal e, o seu autor, punido imediatamente. O profissional admitiu a infração e explicou que pretendia ampliar o drama da situação. E quando os editores estão enfiados em longas reuniões ou almoços, quem é que vai se dar ao trabalho de denunciar o coleguinha prevaricador?

[para ver as fotos e a Editor?s Note que anuncia a demissão do fotógrafo Brain Walski]

A montagem ou arrumação de fotos não foi inventada nesta guerra. As duas mais famosas deram-se na Segunda Guerra Mundial, mas foram inofensivas. A primeira relaciona-se com a famosa cena dos marines levantando a bandeira americana na ilha de Iwo Jima, no Pacífico. Tudo indica que o fotógrafo (já falecido) melhorou a dramática composição com a ajuda dos soldados. Não houve falsificação, a bandeira estava sendo efetivamente hasteada na ilha reconquistada, talvez numa pose menos impactante.

A segunda montagem foi feita pela máquina de propaganda soviética ao colocar a bandeira russa nas mãos de um soldado no alto do Reichstag, em Berlim, pouco antes da capitulação alemã, em maio de 1945. Não foi novidade: os russos sempre possuíram invejável know how para colocar ou retirar personagens das fotografias oficiais e assim reescrever a história contemporânea ao sabor das jogadas do Kremlin.

A morte de civis nesta guerra ? os chamados efeitos colaterais ? não precisa ser inventada, magnificada ou dramatizada por fotógrafos ambiciosos e irresponsáveis. Não existem bombas inteligentes nem guerras "limpas". A população iraquiana está pagando um preço muito alto pela insanidade de Saddam Hussein. O quadro violento e aterrador não precisa ser manipulado, as cifras estão disponíveis, podem ser comprovadas. O bom jornalismo só ajuda as boas causas. O mau jornalismo só prejudica.

Indomável, imbatível

Se, por enquanto, não apareceram muitos casos de adulteração de imagens na imprensa internacional, "forçar a barra" em legendas virou moda ? sobretudo nos jornais brasileiros. São dezenas de casos em que o redator de plantão introduz ingredientes subjetivos não mencionados na legenda original, nem evidenciados pela situação retratada. Por desconhecimento do idioma inglês (utilizado nas legendas remetidas pelas agências internacionais e embutidas nas fotos), por necessidade de completar o espaço vazio ou mera inclinação para a dramatização, por tudo isso e mais um pouco inserem-se "complementos" que acabam oferecendo ao leitor desprevenido uma leitura diferente da cena real. Alguns casos:

** Na primeira página do Jornal do Brasil de segunda-feira (31/3), um soldado americano armado, de costas, e ao seu lado, agachado e de frente, um civil. Legenda: "Iraquiano é rendido por soldado da coalizão…depois de desacatá-lo". Qual a prova de que o civil iraquiano desacatou o soldado? Pura sacada.

** Na Folha, mesmo dia, também na primeira página, crianças sentadas na porta de uma casa diante de um soldado americano armado: "Crianças iraquianas são retiradas por fuzileiros americanos de suas casas…" Sentadas ou agachadas (acompanhadas por duas mulheres) elas olham para o fotógrafo ao lado do soldado. Não há nenhuma indicação de que as crianças estivessem sendo retiradas. Pura retórica.

** No Globo, sábado, 29/3, primeira página, enorme foto de uma mulher iraquiana com duas crianças (uma no colo), ao fundo colunas de fumaça e, em segundo plano, um blindado da coalizão: "Mãe com filhos, foge da cidade de Basra…onde violentos confrontos vêm sendo travados: britânicos acusam paramilitares iraquianos de atirar em civis". Não há qualquer indicação da presença de militares ou paramilitares iraquianos intimidando a pequena família. A presença do blindado apontando na direção contrária à rota de fuga desmente a possibilidade que a mulher e as crianças tenham sido alvo do fogo iraquiano. Pura ilação.

** No Estado de S.Paulo, sexta (4/4), primeira página: uma forte coluna de fumaça levanta-se de um prédio em chamas: "Fogo e fumaça em Bagdá: iraquianos queimam combustível para dificultar a visibilidade dos pilotos inimigos". Há muita fumaça de outros prédios mas a escuridão deve-se, seguramente, à hora em que a foto foi tomada. Há luzes acesas em prédios vizinhos, tudo indica que aconteceu de madrugada. Não há depósitos de combustível num grande centro urbano, o incêndio de poços ocorreu no sul, na região de Basra. Pura imaginação.

Se os professores de jornalismo de nossas fábricas de diploma fossem profissionais do ramo teriam assuntos sérios para sugerir aos alunos como trabalho de conclusão de semestre, ano ou curso. A legendagem de fotos de guerra é um deles.

A denúncia do enviado especial da Folha Sérgio Dávila, publicada no domingo (6/4, pág. A 25) merece reflexão especial. Título: "Bagdá, a cidade proibida". Subtítulo: "Controle de informações e inúmeros desmentidos fazem com que poucos realmente saibam o que acontece na capital iraquiana". Como se sabe, o repórter recebeu instruções para deixar Bagdá há alguns dias e agora encontra-se em Amã, capital da Jordânia, de onde despachou a matéria.

As perguntas que ocorrem diante da gravidade da acusação: por que o jornal não a publicou antes? Se o repórter esteve em Bagdá durante muitos dias, por que não mencionou o férreo sistema de censura do regime de Saddam enquanto estava lá? Não queria perder a fonte, como alegou Peter Arnett? Tinha medo de represálias? Tudo bem: que o dissesse na matéria ? em Amã está a salvo. Coisas desta importância não podem ficar subentendidas, como "inuendos" (expressão latina significando insinuação, empregada no jargão jornalístico ianque). E por que razão o jornal não destacou a sensacional denúncia na primeira página? Ficaria muito anti-Saddam, portanto politicamente incorreta?

A Folha preferiu destacar uma entrevista com um "homem-bomba" que fotografou em Amã, sem capuz ou outro disfarce. Enquanto o homem não explodir-se (conforme prometeu) o jornal fica como candidato ao Prêmio Peter Arnett de cascata internacional.

E já que o jornalista neozelandês foi mencionado conviria lembrar o título da matéria que IstoÉ usou para saudá-lo: "Indomável". Gosto não se discute, sobretudo quando a própria revista qualifica-se como "independente". Mas o adjetivo parece ligeiramente deslocado quando se sabe que depois de reconhecer que cometeu "uma estupidez", Arnett arrebanhou três polpudos contratos para continuar na mesma linha. O rei da cascata já esteve no Rio e garantiu que a escola de jornalismo que o convidou era melhor do que as americanas. Imbatível.

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