Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

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ARMAZÉM LITERÁRIO

Autores, idéias e tudo o que cabe num livro

VIDAS LUSÓFONAS

Como apontar ao coração de cada instante

F. C. S.

O rigor histórico não está condenado a manifestar-se apenas em prosa de notário ou de verbete enciclopédico. Em Vidas Lusófonas impõe-se que o rigor histórico tenha um impacto de short story. Em consequência, estas são as normas seguidas pelos autores deste site. Só elas puderam dar coesão a textos de autores tão diversos. Podem ser também uma carta de marear para os participantes dos nossos concursos. Meia dúzia de páginas, cada vida ? cada conto, apontar ao coração de cada instante:

1. Concisão, dizer MUITO em poucas palavras. Os redundantes Rodriguinhos dizem POUCO em muitas palavras. São uns grandes perdulários…

2. A acção transferida do passado para o presente. Tem mais força relatar o que está a ocorrer, do que o relato do ocorrido.

3. Evidenciar o nó dramático da história que se conta. É ele que amarra o interesse do leitor da primeira à última linha. Antes de escrever a história, tente o autor resumi-la em prosa telegráfica. Esta é a melhor forma de achar o seu nó dramático.

4. Não explicar o porquê da acção. Ela tem que se explicar por si-mesma ou então usa muletas. Ou seja: a prosa é coxa.

5. Fugir das orações intercaladas como o diabo da cruz. Por exagero dizemos: onde está uma vírgula ponha-se um ponto final.

6. Fingir a neutralidade. Em vez de tirar conclusões, o autor deve é encadear os acontecimentos de tal forma que force o leitor a tirar as suas.

7. A rarefacção de adjectivos, os quais, lá na Geral, estão sempre a mandar bocas e por isso travam o desenrolar da acção. Que nos perdoe o Eça de Queiroz, mas libertem-se os substantivos da vampiragem dos adjectivos!

Três regras complementares


a) Cada biografia deve ter de 18000 a 23000 caracteres. Ou de 3000 a 4000 palavras.

b) À cabeça de cada biografia deve constar um resumo cronológico dos principais eventos em que esteve envolvido o biografado. Esse resumo funciona como o lead de uma notícia e intitula-se "Quando Tudo Aconteceu".

c) Cada biografia deve ser dividida em oito, nove ou dez blocos de prosa devidamente titulados.

VIDAS LUSÓFONAS

Carta de um português a um amigo brasileiro

Fernando Correia da Silva

Caro Amigo,

Muito obrigado pelas suas boas palavras a propósito do trabalho que estamos a desenvolver em Vidas Lusófonas <www.vidaslusofonas.pt>, biografias com intriga romanesca, a acção no indicativo do presente, etc. Mas logo a seguir Você não consegue aguentar-se e manda-me alguns remoques, que umas vezes usamos hífens e tremas e outras não, o mesmo acontece com as consoantes mudas, e que é preciso vigiar a ortografia para preservarmos a nossa língua, porque assim e assado, etc. e tal. Com tais remoques Você está mas é a desafiar-me para uma briga das antigas, da qual nunca desisto, embora saiba que não tem fim. Arregaço as mangas da camisa:

A língua portuguesa recusou-se a ser o galego do sul, fez-se ao mar, deitou raízes por vários continentes, adaptou-se a novos solos e climas. Em vez de rosnarmos contra as naturais e inevitáveis variantes, melhor será gozar-lhe a sombra, vastidão. De acordo? É claro que está de acordo. O diabo é que logo aparecem uns rodriguinhos a defender minúcias para esquecer o essencial, a entronizar a ortografia para esquecer a língua. Você pode ficar escandalizado, mas reafirmo que ortografia não é língua. Conheço um ou dois analfabetos que pensam e falam melhor do que muitos doutores que andam por aí a arrotar erudições. Estou a pensar, concretamente, no nosso já falecido poeta popular António Aleixo, semi-analfabeto mas pensador profundo e criativo.

Amigo, ortografia é apenas código de trânsito. O que é preciso é saber se conduzimos pela direita como na Europa continental e no Brasil, ou se pela esquerda como na Inglaterra e em Moçambique. Em nada me incomoda que africanos, brasileiros e portugueses falem com sotaques locais, até acho deliciosa a variedade. Em nada me incomoda que o nortenho português diga "Bocê não bai por bom caminho" desde que escreva "Você não vai por bom caminho"; ou que o nordestino brasileiro diga "ó xente, vamos imbora", desde que escreva "ó gente, vamos embora"; que o alfacinha diga "cravão", mas escreva "carvão"; que o alentejano diga "porrêro", mas escreva "porreiro"; que o carioca diga "carnavau bonitchinho", mas escreva "carnaval bonitinho"; que o caipira diga "cigarro di paia" mas escreva "cigarro de palha". Apenas isso, código de trânsito, nada mais do que código de trânsito. Faço-me entender? É imbecilidade que nos desmerece não termos ainda assentado num acordo ortográfico para a nossa língua comum. Lindley Cintra, por Portugal, Celso Cunha e Antônio Houaiss, pelo Brasil, bem o tentaram, trabalho exemplar. Mas depois entraram em cena os patrioteiros, os daí e os daqui; "neo-colonialismo" gritavam uns, "abastardamento da língua" berravam outros. E o trabalho, o acordo penosamente conseguido, foi-se à viola; ou foi pró beleléu, se preferir. Já estou por tudo: se, para haver um acordo ortográfico, houvesse que ressuscitar o ph, tranquilamente eu escreveria pharmácia e telephone. O que eu preciso saber é se, ao escrever na minha língua, devo conduzir pela direita ou pela esquerda. Dentro do universo da lusofonia, ao mudarmos de país sermos coagidos a mudar de mão, eis o estúpido convite aos desastres em cadeia…

Por isso, amigo, quando Você me fala em tremas, fico logo a tremer de raiva. Embora ainda estejam em uso no Brasil, aqui já não se usam tremas, nem constam sequer no teclado com o qual estou a escrever-lhe. Garanto-lhe que eu não sou a favor nem contra os coitadinhos dos tremas. Código de trânsito, apenas código de trânsito, quero lá saber do resto, estou me borrifando, estou-me nas tintas, pouco ligando, a língua é mais importante do que todas as grafias que lhe inventam. Inveja tenho eu de ingleses e americanos… Repare na forma diferenciada como uns e outros falam e na forma quase igual como uns e outros escrevem.

Enquanto prosseguirem as patriotadas de aquém e além mar, provisoriamente decido que em Vidas Lusófonas autores portugueses escrevem com actual ortografia portuguesa, e autores brasileiros escrevem com a actual ortografia brasileira. Mais evidente ficará assim a gráfica burrice de que nós, e vós, somos portadores.

Entende agora o motivo por que Você, em Vidas Lusófonas, ora viu, ora deixou de ver hífens, tremas e consoantes mudas?

Não me leve a mal o discurso e tome lá um abraço. Fernando

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