ROBERTO MARINHO (1904-2003)
José Antonio Palhano (*)
Na esteira das manifestações e eventos relativos ao falecimento de Roberto Marinho, Jô Soares recebeu dia desses em seu programa global um trio de pesos-pesados da nossa mídia impressa: Alberto Dines, Armando Nogueira e Merval Pereira. Em resumo, a conversa foi um revival das últimas décadas, época que vai da fase embrionária até a consolidação dos últimos grandes projetos jornalísticos nacionais. Nem o fato de a pauta ter naturalmente se inclinado à rivalidade O Globo–Jornal do Brasil, nem tampouco a constatação de que o velho JB não está exatamente consolidado nos dias que correm, desmerecem a noitada ? pelo menos para aqueles, certamente raros, que sacrificam numa boa algumas horas de sono em troca de imperdíveis e precisas pitadas da nossa memória jornalística mais recente.
Pena que tão rica edição do Gordo tenha se saído, paradoxalmente à descontração e às passadas pitorescas (e ao rigor histórico e crítico praticado pelos protagonistas), também arrasadoramente frustrante. Diria, até, que carregada de desconfortáveis emanações póstumas. E não pelo passamento do doutor Roberto, devidamente pranteado e assimilado na conta da inexorabilidade em que navega a vida humana.
O motivo é bem outro, mais grave e dolorosamente simples: as redações atuais já não se prestam ao papel de incubadoras de talentos da estirpe dos três aí citados. E aqui é bom deixar de lado interpretações que sugiram mera bajulação. A alusão ao modo como os ovos (os órfãos) eclodem para a vida não é gratuita. Destina-se a referendar a tese, biológica e antropologicamente irrepreensível, segundo a qual a ninguém é dado o privilégio de nascer, pronto e acabado, um Dines, um Armando, um Merval.
Por mais redundante que possa parecer, vale lembrar que talentos, ou pendores de nascença, exigem antes de tudo caprichada lapidação, sob pena de tudo se acabar em piados ridículos ou chabus vexatórios. E assim chegamos ao ponto. Não se incubam mais talentos ? dispensada portanto a conseqüente lapidação ? porque não é mais do interesse das redações contemporâneas formar jornalistas coisíssima nenhuma.
Peão de texto
Lembradas as exceções de praxe, vamos lá, tanto para quem assistiu como para quem perdeu: a conversa dos três remetia ao tempo em que jornalistas dignificavam a carreira no constante, duro e ocasionalmente arriscado exercício de se ombrear com seus respectivos patrões, algumas vezes ao limite do confronto. Nada de arroubos juvenis ou supostas inclinações para delírios iconoclastas, tipo contrariar o patrão em nome de heróicos chamamentos intelectuóides. Tratava-se apenas de delimitar o sacrossanto espaço em que convivem o empreendedor, aquele que tudo banca, e seus convocados, aqueles a quem foi delegada a missão de fazer jornal em troca de uma remuneração decente. Ética jornalística, que evoluía em mão dupla.
Observe-se que a densidade profissional comum a Dines, Armando e Merval nem de brincadeira induz a especulações relativas ao patrimônio pessoal de cada um. Por outro lado, toda e qualquer referência a Roberto Marinho que se pretenda honesta passará por seu inesgotável potencial de homem de negócios capaz de amealhar o império que todos estamos cansados de saber. E aí? Como conciliar a idéia de fazer dinheiro e fortuna com as de quem, na condição de empregado, só sabia produzir idéias, valorizar a verdade e fazer opinião (e também, vá lá, casar, ter filhos, carro, casa própria, sítio e ultraleve)? A resposta, ou pelo menos parte dela, já foi cansativamente cantada em prosa e verso nos últimos dias: Roberto Marinho era, antes de tudo, um jornalista nato.
Bingo! Quem hoje se lança ao projeto de fundar um jornal toma a primeiríssima providência de se desfazer de todo e qualquer traço, genético ou adquirido, que o identifique com o perfil de jornalista. E assim o faz não apenas no início, mas periodicamente, à guisa das víboras que ciclicamente trocam o couro velho por um novinho em folha.
Ter um jornal, mais se adentra o pais mais se constata, é apenas e tão-somente abrir promissora sucursal dos governos de plantão, municipal e estadual. Ao sabor de orçamentos e demandas materiais, se fará apoio ou oposição. Nada de idéias, de valorizar a verdade ou fazer opinião. Nada, por conseguinte, de jornalistas. Denúncias, tão medularmente ligadas à noção das folhas impressas, só vão a público no exclusivo intere$$e do patrão. Nada dessa tolice de construir cidadania ou abobrinha que o valha. Escale-se um colunista social e olhe lá ? está bom demais!
Em razão de ambiente tão assim edificante, chega a ser patética a cruzada sindical em nome da obrigatoriedade do diploma. Não bastasse concluir que frente à profusão industrial de faculdades (e mais a tara da família brasileira por um canudo) é rematada asnice quantificar colegas sem tal chancela, as coisas andam muito piores do que fantasiam as cabeças corporativistas. (Já imaginaram um cioso, feliz e atual casal de pais investindo na promissora vocação do filhão para a escrita sob a expressa e irrevogável premissa de que não se diplome de jeito nenhum?) Quem adentrar uma redação em semelhante contexto, a esmagadora maioria com diploma embaixo do braço, estará fadado à função de peão de texto. Limite-se a escrever o que eu mandar, não ouse grafar qualquer opinião, nem contra nem a favor, muito pelo contrário.
Reza de consultor
É muito, muito pior do que durante a ditadura. Nos chamados anos de chumbo, bem ou mal defendia-se uma ideologia, tudo bem que turbinada por coturnos e fuzis, mas também inspirada em marchas familiares aflitas e medrosas da iminência comunista. Censuravam-se jornais e revistas e empastelavam-se redações em nome do regime. Hoje, pura e simplesmente cassa-se ao profissional do jornalismo a prerrogativa de se expressar em nome da patológica vontade do patrão, que vilmente despreza o caráter público do seu negócio.
Nada a ver com o perigo de o sujeito jogar contra o próprio time. Em geral, jornalistas, assim como advogados, padres ou chefes de cozinha, não são imbecis a tal ponto. O patrão bem poderia fazer seus negócios com o poder, alguns inclusive os legítimos, sem chegar ao ponto de enxotar corações e mentes. Ao contrário, contar com um quadro competente, daqueles inclinados a dar a cara a bater, apenas melhoraria seu cacife, por mais cabotino que isto possa parecer. Algo que não o é, desde que levado em conta o raciocínio segundo o qual o bom articulista, bons repórteres e editores conquistam leitores, atraem anunciantes, sensibilizam o poder etc. etc.
Mas o processo em curso é bem outro. As relações imprensa-governo exacerbaram-se ao ponto de ambas as partes respeitarem-se em excesso. É comum um acerto milionário com baixíssima tiragem. Leitores? Melhor não tê-los. São capazes de pensar, somar dois mais dois e chegar a conclusões perigosas. É como o sujeito abrir um restaurante e receber de outrem o suficiente, e bota suficiente nisso, para recusar clientes. Apenas põem-se as mesas e perfilam-se os garçons. Manter as aparências é fundamental. Em semelhante ecossistema, o dono do jornal (o "empresário da comunicação" marombado por rezas de consultores e com as burras cheias) passa a exercer impressionante morbidez: proíbe terminantemente que seus contratados pensem e escrevam a respeito.
Altivo e digno
Luciana é recém-formada em jornalismo, conquista que custou ao seu pai uma modesta casa adquirida com recursos provenientes de um plano de demissão incentivada de uma ex-estatal. Gramando já há uns três anos sem emprego numa capital de 700.000 habitantes (Campo Grande, MS), contou-me de uma proposta: o picareta do semanário lhe exigira carro próprio e gasolina por sua conta, reservando-se ao direito de assinar todo e qualquer texto seu que porventura aprovasse. Tudo isto por um salário-mínimo.
Por essa e muitas outras, tenho evitado, até a medida de não parecer grosseiro, comparecer a palestras em qualquer das três faculdades vigentes na praça. À invariável pergunta de calouros a respeito do mercado (os universitários de hoje andam se contaminando a um ritmo galopante com o vírus financista, abdicando assim de usufruir do campus para sonhar e, vez em quando, transgredir), não resisto a recomendá-los que mudem de curso. Tudo bem que há as assessorias, mas alguém aí em sã consciência garante que toda a galera só pensa, lá nos primórdios vocacionais, em ser assessor de imprensa? Há também emissoras de rádio e TV, o que serve somente para empinar a pergunta: e os jornais, subtraídas as citadas exceções de praxe (que afinal não são albergues das juventude nem sinecuras públicas), onde vão parar?
Depois de vinte anos de uma pediatria digna, embiquei para o jornalismo lá pelos idos de 1996, sem qualquer idéia de uma redação, a não ser as fantasiadas. O Globo publicou um artigo meu no alto da página 7 que era um sonoríssimo pau em matéria do próprio jornal, assinada por dois colegas, relativa a um miserável pai de família em Brasília que de dia era João e de noite Maria. Um transformista favelado, o pobre-diabo. A dita matéria era uma devassa horrorosa na sua vida familiar. Luiz Garcia era o editor de Opinião. Mandou ver sem ter a menor idéia de quem eu era, sequer um telefonema. Só depois de seis, sete artigos publicados ousei um lacônico e tímido interurbano de agradecimento. Duas ou três palavras e só. Quantos editores de Opinião fariam isto hoje, Brasil afora ou adentro?
A propósito, o tal primeiro artigo nada tem a ver com cacoetes de colaborador deste Observatório da Imprensa. Só anos depois passei a militar aqui. Não me arrependo de abandonar o consultório. Mas tenho uma inveja danada (sem saudosismos bestas) dos tempos em que ralaram Alberto Dines, Armando Nogueira e Merval Pereira. Eram tempos de um jornalismo maior, altivo e digno, que os forjaram a ponto de, famosos e realizados, reverenciar de público a memória de Roberto Marinho sem incorrerem na vassalagem e na paúra do desemprego. Tempos de jornalismo e nobreza.
(*) Médico e jornalista