JORNALISMO ECONÔMICO
Antonio Fernando Beraldo (*)
Ao distinto leitor não lhe perturba uma vaga desconfiança que estão lhe fazendo de trouxa? Um incerto a lhe perpassar a mente em horas desavisadas, como num filme de suspense? Comigo vem acontecendo faz tempo, mesmo nas datas em que o futebol ocupa prazeirosamente todas as horas. Penso que fui contagiado pela mensagem sub e supraliminar que a mídia impressa escancara todo santo dia: estamos todos oscilando à beira de um abismo imenso, cujo escuro fundo abriga monstros horrendos, de viscosos tentáculos e triturantes mandíbulas que irão nos despedaçar as vísceras e nos retalhar a carne em postas, o inferno, enfim. Nessa difusa paranóia, estamos numa espécie de disputa de pênaltis e nada do anjo do Senhor (ou o Ronaldo Fenômeno, ou o Sétimo da Cavalaria, ou mesmo o Rim-tim-tim) aparecer no último minuto para nos salvar, ó medo ancestral! Talvez por ossos do ofício de professor de Estatística, talvez pelo vício de ler muitos jornais…
Acho que é esse tal do índice EMBI, que mede (?) risco-país. Da primeira vez que apareceu à frente de nossas retinas tão cansadas, decretando a falência da Rússia até a Argentina, parecia sério, coisa de americano. Olhando mais de perto, o grifo assustador revelou-se mais uma fajutice, coisa de americano. Aliás, estava na cara: EMBuste. O tal do índice consiste numa previsão (?) proto-astrológica, de (mau)caráter subjetivista que mede algo como "sensação de calote", que, segundo penso, brota da boca entrefechada de algum alto (no sentido etílico) funcionário da JPMorgan ou da Standard & Poor (quer dizer "padrão & pobre"), depois de umas cinco ou seis carreiras de pó e depois de ter feito seus clientes perderem um nota federal com a Enron, a WorldCom, a Xerox, a…
A mídia, mais uma vez, engole a bobagem e adota mais este numerozinho sem a menor crítica, sem qualquer titubeio. A coisa é uma espécie de profecia auto-realizável, que funciona mais ou menos assim: o governo precisa de mais grana para tapar buracos na economia. Dirige-se a uma entidade financeira internacional qualquer, que diz que empresta a erva, sim, desde que se pague um juro de 17,23% ao ano. Nesta taxa está EMButida, além da rapina usual, alguma coisa como a "percepção" de que o país não honre seus compromissos nos vencimentos, seja por falta de caixa, seja porque as pesquisas mostram o Sr. Lula com o dobro do Sr. Serra, seja porque pode chover, ou o Sr. Armínio Fraga cair num buraco do green onde se distrai com o golfe.
Vote direitinho
Muito bem, não temos outro jeito senão pegar ? aí, implicitamente e explicitamente, aceitamos essa taxa de risco. Esta aceitação leva a uma nova taxa de risco, é claro, maior, e daqui a pouco não teremos como pagar, mesmo. E a EMBI, retroalimentada (perdão, senhoras), já "previa" isso, certo? A cada resultado negativo da economia, ou a cada "queda" do Sr. Serra, é mais um pretexto para aumentar a taxa de risco, que causa mais resultados negativos no caixa do governo, que aumenta a taxa de risco, que causa…
E tem mais: tome C-bonds, índice Bovespa (-18% no semestre), viés de baixa na Selic, dólar a R$ 2,885567324167, swap cambial, Ptax, o escambau (escambau não é nenhuma taxa de mercado, ainda). Esse monte de siglas faz parte do mal-estar da civilização, babe, e eu e você e nosso rico dinheirinho estamos enfiados nisso até o pescoço (veja, ou melhor, não veja, o Glossário de Economês terrorista, num próximo artigo).
Os sábios nos alertam, e a mídia genuflexa confirma, que a política afeta o mercado, e vice-versa. Algum dia não foi assim? Você, caro leitor, talvez obtempere: agora é muito pior. O mercado fica nervoso e dá xilique se os índices de intenção de voto não repercutem os esforços do candidato oficial em conquistar a preferência nacional. Parece que não adiantou o Sr. Serra, este gigante performático de retumbante carisma, tocar zabumba no forró, nem a Sra. Camata fumar escondido ? o candidato do governo não consegue desgrudar dos seus 20%, a não ser nas pesquisas do instituto Sensus, que deve fazer sua coleta de dados no auditório do Gugu Liberato. Tenta-se um repeteco da pulverização da ex-candidata Sra. Murad, vinculando a roubalheira dos petistas de Santo André ao candidato Sr. Lula. Mas parece que a operação foi feita com uma tecnologia, digamos, canhestra, e a PF "grampeou" os telefones petistas a pedido de alguém incerto e pouco sabido, mas que parecia gente boa, ao telefone. Não sabemos ainda se isso é o suficiente para fritar o sapo barbudo, aguardemos a edição da Folha de S.Paulo com a manchete "Lula continua com 40%, MAS cai 19% entre os escoteiros pentecostais de Passa Quatro".
Os Estadões da vida pelo menos não usam de meias-palavras ao carregar nas tintas do que nos aguarda se a gente não votar "direitinho": o Sr. FHC, o Limpo, avisa que o próximo presidente terá que ser habilidoso o suficiente para não desandar as conquistas do Plano Real (estabilidade da moeda, dívida pública beirando os 55% do PIB); o Sr. Soros deita falação, os Srs. do FMI, da Goldman & Sachs e outros bichos insinuam que seria até melhor deixar o Sr. Armínio Fraga no comando do BC por mais um mês, depois da quase certa posse do Sr. Lula na presidência (este clamoroso ato falho consta do jornal O Estado de S. Paulo, de 25/6).
Jornalista? Só um
Não falo da TV, a que quase nunca assisto. Mas a mídia impressa parece que está todinha comprometida com essa história de que se não elegermos o Sr. Serra, que é "o confiável", este ataque especulativo ora em curso será resmungo do agiota da esquina perto do que vem por aí. Não aparece na mídia que:
1. Todas as pesquisas de intenção de voto realizadas até agora mostram apenas o voto declarado, espontâneo ou induzido, de quem já tem alguma intenção de voto. Na melhor das hipóteses, deve chegar a uns 45% dos eleitores entrevistados. Não possui nem sombra do caráter oracular que lhes pespegam os jornais. Muita água vai correr até os 40 ou 30 dias antes das eleições, que é quando a coisa esquenta.
2. Imaginar-se que os 55% que ainda não pensaram em quem vão votar irão comportar-se da mesma forma que os 45% que já têm alguma idéia é apenas uma aposta ? nada além disto. Lembremos que cada eleição é diferente de todas as outras ? Deo gratia!
3. Não começou ainda a propaganda política prá valer. Mal foram confirmadas as alianças entre os partidos. Ainda não descobriram aquela foto do Sr. Lula sapateando sobre a mesa, vestido de baiana, num baile de carnaval em Guarulhos. Ainda não grampearam uma ligação telefônica do Sr. Ciro com o Sr. Unger, em que este lhe confidenciava que foi ele que orientou os aviões do bin Laden, em setembro último. Ainda não filmaram o Sr. Garotinho roubando esmola das velhinhas, num culto dominical em Niterói. Ainda não interceptaram a carta em que o Sr. Serra comenta seu espanto ao ver, pela primeira vez, aos 55 anos de idade, uma vaca ? ao vivo. O jogo ainda está no aquecimento, meus amigos do esporte.
Semana passada dei um curso sobre Pesquisas Eleitorais, promovido pela SBPM, em São Paulo. Curiosamente, ou não, entre os alunos só havia uma jornalista. O assunto mais comentado foi exatamente este afobamento da mídia em tornar sólidas verdades os contornos imprecisos de meia dúzia de números preliminares. O mal que isto faz, depois que descobrimos muito tarde que "não era nada daquilo", junto com as profecias auto-realizáveis, é que desanima quem tem um mínimo de esperança em que o nível de maturidade ainda poderia subir.
(*) Engenheiro, professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora
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