JORNAIS DIÁRIOS
Luiz Weis
Em nome da isenção jornalística, fatos que clamam por um pingo de sangue nas veias de quem os divulga costumam ser tratados com uma indiferença que pode levar o leitor a se perguntar que raio de gente são esses jornalistas capazes de contar com tamanho distanciamento histórias de fazer ferver um bloco de gelo.
Por isso, parabéns para O Estado de S.Paulo pela indignação, sem prejuízo da qualidade, com que foi editada a já de si excelente reportagem de Moacir Assunção e Fabio Diamante (14/3/03, página C4) sobre um exemplo da banalidade do mal no cotidiano de São Paulo.
A história está toda no antetítulo de quatro linhas em letras de 0,5 cm de altura: "Célio, 24 anos, atropela e mata Lucas, de 6. Célio não tem carteira de motorista. Ele não socorre o garoto, foge e logo depois abandona o carro. Mais tarde apresenta-se à polícia. Diz que teve o carro roubado. Os policiais o interrogam. Ele confessa. Paga fiança de R$ 1.100,00 e vai para casa".
O melhor é que tudo isso serve para introduzir a manchete definitiva para a barbaridade. Entre aspas e em tamanho compatível com a intenção de compartilhar com o leitor o justo sentimento de ira que o fato provoca, assume a forma de uma pergunta: "Onde está a lei?" E, logo abaixo, a autora: "Maria do Socorro Henrique da Silva, avó da criança".
Pena que, num apagão de sensibilidade jornalística, alguém pegou a chamada de capa da matéria ? com o primoroso título "Atropelou, matou, fugiu e mentiu. Pagou e está livre" ? e a escondeu no pé da sexta e última coluna da página, quase caindo fora do jornal. Deus dá nozes a quem não tem dentes.
Inferno astral
E por falar em títulos, o mesmo Estadão, na página A 14 da mesma sexta-feira (14/3/03), ao reproduzir uma matéria do The Guardian, de Londres, sobre o "desespero" do primeiro-ministro Tony Blair, apanhando de todos os lados por seu apoio à guerra de Bush, saiu-se com um "Em inferno astral, Blair atravessa outra semana em que nada dá certo".
Licença jornalística tem limites. Jornal sério devia reservar a expressão "inferno astral" à seção de horóscopo. Melhor ainda: jornal sério não devia ter seção de horóscopo.
Transgênicos
No OI da semana passada, o leitor André Deak [veja remissão abaixo] reclamou com razão da trombada entre os títulos "Governo já admite negociar transgênicos" (Folha de S. Paulo) e "Governo mantém proibição aos transgênicos" (O Estado de S. Paulo), de 7/3/03, sobre a reunião de nove ministros com o presidente Lula para tratar da safra de soja transgênica, plantada irregularmente.
O título da Folha está certo e o do Estadão, errado. Como este se apressou a esclarecer em matéria na edição seguinte e em editorial um dia depois, o governo não pode manter ou revogar a tal da proibição, porque ela não existe.
O que existe é uma lei de 1995 que autoriza o plantio de transgênicos, a critério da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). O poder da CTNBio de dar a última palavra, justamente no caso da soja, caiu na Justiça. A sentença contra a CTNBio está sendo contestada. A pendenga se arrasta há quase cinco anos.
É aí que entra o desserviço prestado pela matéria do Valor (14/03/03, B 10) "AGU não vê problemas em ter defendido transgênicos" ? para não falar, parafraseando o professor Higgins do musical My Fair Lady, do "assassínio a sangue frio da língua portuguesa" que o texto perpetra: "uma medida provisória ou um decreto, que poderiam"; "uma coisa que ideologicamente é contra"; "o destino da soja transgênica deverá ser exportada".
Como diz o título, a matéria trata do papel da Advocacia Geral da União que, no governo Fernando Henrique, estava de um lado do balcão na contestação judicial às atribuições da CTNBio, e agora, para todos os efeitos práticos, está do lado dos contestadores (o Instituto de Defesa do Consumidor e o Greenpeace).
Na 52? das suas 109 linhas impressas, a reportagem informa que "o julgamento dessa ação" ? a que foi movida pelo governo anterior, contra a decisão desfavorável à CTNBio ? "foi suspensa por 60 dias no último dia 14 de fevereiro, a pedido da ministra Marina Silva, do Meio Ambiente".
A matéria diz em seguida que a ministra queria suspender o julgamento por seis meses, mas a juíza relatora não a atendeu, por falta de amparo legal ? uma ação só pode ser suspensa por acordo entre as partes antes do início do julgamento. Nesse caso, o julgamento já começou, tendo a juíza votado a favor da CTNBio.
Ora, se começou, mesmo que a ministra Marina tivesse pedido a suspensão por um único dia, não poderia ser atendida.
E aí, na linha 68, com a maior sem-cerimônia, a matéria dá o dito pelo não dito: sim, o julgamento está suspenso por 60 dias, mas por causa da licença "do juiz João Batista Gomes Moreira que, ao lado do juiz Antônio Ezequiel, compõem (sic) o grupo que definirá a questão" (como se "o grupo" não incluísse, além deles, a juíza relatora Selene Maria de Almeida).
Estivesse o público suficientemente a par da polêmica sobre os transgênicos em geral e, em particular, sobre o cipoal jurídico que amarra a liberação, ou a proibição, de lavouras transgênicas no Brasil, essa trapalhada jornalística talvez não devesse merecer maior atenção.
Mas, dado o desconhecimento que cerca o assunto e que a imprensa não tem conseguido dissipar ? o leitor André Deak que o diga ? melhor teria sido se a matéria do Valor, do jeito que está, nem tivesse saído.
Da série "E ficou por
isso mesmo"
1. O título da entrevista de página inteira da Folha com o professor Roberto Mangabeira Unger (16/3/03, pág. A 16) é chamativo como poucos: "Malan e Ruth são os deuses de Lula, diz Unger". Dizer, de fato ele disse. Perguntado sobre as semelhanças entre o governo Lula e o de FHC, Unger filosofou: "Sim. É Malan e dona Ruth. São os dois deuses tutelares do governo atual".
Mas, nem em seguida, nem em nenhuma outra passagem do pingue-pongue, ocorreu aos entrevistadores Fernando de Barros e Silva e Rafael Cariello perguntar a Unger ? se não "por que Malan?" (afinal, os radicais do PT chamam o ministro Palocci de "Malocci") ? "por que dona Ruth?". E o incauto leitor ficou sem saber que terá feito a mulher do ex-presidente para ser, segundo o ex-guru de Ciro Gomes, deusa tutelar do governo Lula.
2. Numa passagem da matéria do Estadão "Os muçulmanos em São Paulo" (16/3/03, pág. A 20), José Maria Mayrink cita o presidente da Sociedade Beneficente Muçulmana de São Paulo, Mohamad Nassib Mourad: "Como explicar que não houvesse judeus entre as vítimas do World Trade Center, quando se sabe que 4 mil trabalhavam lá?".
E a matéria segue adiante como se uma coisa e outra fossem verdadeiras, quando se sabe, aí sim, que judeus americanos e de outras nacionalidades também morreram nas torres ? onde não trabalhavam 4 mil judeus.
O entrevistador poderia ter perguntado ao entrevistado como ele sabe o que diz que sabe. Pelo menos, na edição da matéria, a sua declaração deveria vir acompanhada de um parêntese que repusesse a verdade conhecida dos fatos.
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