Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Notas para a leitura de uma imagem

ROSEANA SARNEY

Muniz Sodré (*)

De modo geral, a cobertura da imprensa sobre as vicissitudes de Roseana Sarney e seu marido, Jorge Murad, fornece uma boa amostra da superficialidade enganosa de um certo jornalismo factual. O que passa ininterruptamente para o leitor é a impressão de que todo o problema de uma candidatura presidencial abalroada como um foguete em plena ascensão resume-se aos fatos de uma anomia. Explico-me: anomia significa a quebra de um padrão normativo, que pode variar de um comportamento irregular qualquer até o mais ferrenho ilegalismo. Violência anômica, por exemplo, é essa, perfeitamente visível, dos assaltos ou dos homicídios nas ruas.

O noticiário assesta seus holofotes sobre o comportamento supostamente anômico do casal. Primeiro, o marido, que estaria arrecadando ilegalmente (porque fora da época permitida pela Justiça Eleitoral) dinheiro para a campanha presidencial da esposa. Esta última, depois, porque a cada nova explicação enreda-se mais profundamente num cipoal de imprecisões.

Assim, ficamos sabendo que "de acordo com amigos da família, desde a ação da Polícia Federal, o marido de Roseana Sarney, Jorge Murad, não voltou ao normal. Oito quilos mais magro e tomando calmantes, está apático e passa boa parte do tempo deitado" (O Globo, 16/4). Ou então tomamos conhecimento de uma síntese arrasadora: "Eles pensaram que o Maranhão fosse o Brasil" (Veja).

Nada disso parece mentira, mas tudo isso comporta ao mesmo tempo um engano. Melhor ainda, uma sensação enganosa, aquela que se quer transmitir ao público de que o grande problema da candidatura Roseana Sarney está na arrecadação anômica de dinheiro para a campanha eleitoral. Isto dá margem a que se preencham páginas inteiras com detalhes das investigações ou com comentários jocosos de colunas sobre as incoerências das explicações do casal. Um exemplo: "O sujeito diz que doou R$ 200 mil para a campanha da mulher, dentro de uma legislação que permite doações de no máximo 10% da renda do doador. Murad, então, tem rendimentos anuais de R$ 2 milhões (ou mais, se ele doou menos de 10%). Mas fiquemos no barato, vamos supor que ele doou todos os 10% permitidos). Rendimentos anuais de R$ 2 milhões significam um rendimento mensal de R$ 166.666.66" (O Globo, 17/4).

Os números do rendimentos teriam significado todo especial para os esotéricos… As ilações e os gracejos poderiam continuar por muito tempo. No final de tudo, teríamos as mesmas sensações, as mesmas imagens de que todo o episódio é permeado por anomias e terminaríamos chegando à conclusão de que o problema reside em comportamentos individuais, moralmente desviantes.

A moralidade em pauta nesses enunciados é a mesma da mídia mercadológica, que tem sintetizado elementos das velhas doutrinas do utilitarismo (o hedonismo individualista) e do sensualismo (os sentidos tendem a comandar a esfera das idéias). Ela deixa bem claro que, mais do que conteúdos cognitiva e objetivamente sustentáveis (juízos), são afetos e sensações que presidem aos jogos discursivos em torno do que é permitido ou condenável.

Crítica cívica

A eficácia da generalização dessa moralidade é assegurada pela ilusão simulativa (nesta, tem-se a "sensação" de estar informado, por exemplo, pelo fato de estar "quase-presente" ao acontecimento veiculado pela imagem) e pela retórica repetitiva, simplificadora e veloz das mensagens midiáticas. O emocionalismo infantilizante daí decorrente confunde-se com a informação classicamente definida pela transmissão de conteúdos pertinentes à compreensão da realidade histórica.

No centro de tudo isto, impõe-se a nova ordem de poder da imagem. A moralidade midiática, geradora de uma realidade vicária e substitutiva, potencializa por sua capacidade de agendamento dos fatos e das pessoas o fascínio contemporâneo pelo que se apresenta como boa imagem. A regra utilitarista "o que aparece é bom, e o que é bom aparece" ? na verdade, uma interpretação distorcida do princípio de visibilidade das coisas públicas, que norteia a imprensa desde o século 19 ? institui-se como relação social entre pessoas concretas.

A capacidade das pessoas de tornarem-se boa imagem erige-se como valor moral: a conduta apropriada na normalização social operada pelo mercado consiste em se visibilizar ou tornar-se imagem pública. Esta, por sua vez, é tão instável ou precária como a cotação de ações de segunda linha na Bolsa de Valores. Roseana subiu sem que ninguém soubesse direito o porquê, acredita-se que por efeitos de balões de ensaios televisivos ou marqueteiros (logo, "o que é bom aparece"); e caiu por oscilação brusca de um termômetro que se poderia chamar de "índice Dow Jones das aparências públicas", na falta de um nome melhor.

Não houve política real em nada disso tudo, mas politiquice superficial e eleitoreira. A imprensa, por sua vez, atacou apenas a anomia, passando ao largo da crítica cívica e construtiva das estruturas oligárquicas (do Maranhão e outras), à sombra das quais se armam as falcatruas e as irregularidades. Para o leitor restam tão-só sensações ou imagens de uma realidade intestina e institucionalmente violenta, uma vez que os casuísmos e os acasos pitorescos da anomias, entregues a si próprios, recalcam o desvelamento das causas da ascensão dessas personalidades carismáticas e miraculosas. A nossa imprensa ainda parece ter que aprender, junto com seu público-leitor, que uma imagem midiática costuma ser boa demais apenas quando não dá margem a uma boa leitura crítica.

(*) Jornalista e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)