O OLHAR DO IMPÉRIO
Gilson Caroni Filho (*)
O que move o cenário internacional pode, sem riscos de reducionismo, ser descrito em poucas linhas. O maior império da história, governado por uma "junta" oriunda do segmento petrolífero, precisa desesperadamente invadir o Iraque, ex-aliado no Oriente Médio, para se apossar de uma reserva estimada em 112 bilhões de barris. Às voltas com um crescente déficit público e uma produção doméstica de combustível que corresponde a 50% do consumo interno, ao governo americano parece não haver outra alternativa que não seja o uso de sua inconteste supremacia militar. Os objetivos são claros: "ouro negro" e controle político do Oriente Médio. A barbárie se anuncia com o mais colossal apoio midiático de que se tem conhecimento. Das páginas do Washington Post, o que se vislumbra é a disfuncionalidade da ONU como instância de regulação internacional. Os editoriais são a crônica de uma guerra inevitável.
Tendo chegado ao poder em eleições marcadas por fortes evidências de fraude, George W. Bush, apoiado pela direita fundamentalista americana, é a expressão acabada de uma superpotência que, enfraquecida como projeto hegemônico, busca manter a supremacia pela truculência bélica e a chantagem econômica. Unilateralismo na política externa e a elisão de direitos civis são as duas faces da mesma moeda.
A chamada Lei Patriota, que criou o Departamento de Segurança Interna, dá à nova agência poderes para monitorar desde a ficha médica aos e-mails de pessoas contrárias à política governamental. A CIA não tem mais qualquer restrição legal para assassinar, em qualquer país, indivíduos que possam ser classificados como terroristas. Política expansionista e Estado policial são a marca distintiva dos Estados Unidos desde o fim da Guerra Fria. Ante-sala do fascismo contemporâneo, a cruzada americana tem em seu aparelho propagandístico o pânico interno como dispositivo para construção do consenso.
O papel dos órgãos de imprensa, a maior parte controlados por grandes corporações, é decisivo para a empreitada da política imperialista americana. A natureza de suas relações com o poder estatal já foi objeto de artigos anteriores. Desempenham função de destaque em qualquer bloco de poder. Legitimam o Estado capitalista do qual se tornaram sócios há muito tempo em troca da maximização dos seus lucros. O poder de "fiscalização", que outrora desempenharam com louvor, hoje só é exercido em caso de interesses contrariados.
Sua maior colaboração reside na capacidade de transformar em evento o que é processo, tirando da história qualquer possibilidade de apreensão dialética. Operam em restrita lógica binária, usando para potencializar sua eficácia propagandística o que Ignacio Ramonet classificou como fascínio pelo espetáculo do evento.
Comunicação e catástrofe
"O telejornal, em seu fascínio pelo ?espetáculo do evento?, descontextualizou a informação, imergindo-a novamente, pouco a pouco, no lodaçal do patético. Insidiosamente, estabeleceu uma espécie de nova equação informacional que poderia ser formulada dessa maneira: ?Se a informação que vocês sentem ao ver telejornal é verdadeira, a informação é verdadeira?." (Ignacio Ramonet, A tirania da comunicação, Vozes).
Para melhor esclarecer esse ponto, talvez tenha que me socorrer de um conceito antropológico: o de eficácia simbólica. Poder, que é próprio do rito, de agir sobre a realidade atuando sobre a representação que os indivíduos fazem desta mesma realidade. Estou apontando para mecanismos empregados na construção de imaginários. No caso da mídia americana, de colonização de corações e mentes para a barbárie. Algo que os "falcões" do Washington Post aprenderam em leituras atentas dos alfarrábios de Goebbels.
A disputa mais substantiva, como destacou em excelente artigo a professora Margareth Born publicado na edição n? 210 deste Observatório [remissão abaixo], é travada no que ela chama de espaço público midiático:
"A guerra que já está em curso diante de nossos olhos é uma guerra de discursos na qual a mídia é ao mesmo tempo arena e também ator com poder de veto, na medida em que influencia decisivamente a opinião pública de cada país. Desde 1991, quando Bush-pai arrebanhou aliados para combater os iraquianos que tinham invadido o Kuait, começamos a ver esse tipo de guerra acontecer com o confinamento dos jornalistas a seus hotéis e a organização de tours ao front."
Sem dúvida, uma guerra de posição com pouca probabilidade de vitória dos defensores de um mundo multipolar face à conformação informativa atual. Talvez devêssemos recuar à década de 80 para resgatar projetos que a consolidação da hegemonia neoliberal varreu do cenário acadêmico-político dos anos subseqüentes. O mais caro, sem dúvida, seria a retomada das discussões em torno de uma Nova Ordem Informativa. Mesmo levando-se em conta a mudança radical da configuração geopolítica existente à época e o surgimento de novas meios de produção, difusão e intercâmbio de dados, a atualidade do relatório produzido, em 1980, pela Comissão Internacional para o Estudo dos Problemas da Comunicação (a Unesco sediou os debates ) é inconteste. Como não deixar de referendar as palavras do presidente da comissão, Sean MacBride, no prólogo do relatório?
"Gostaria de parafrasear H. G. Wells e dizer que a história humana se transforma cada vez mais numa corrida entre a comunicação e a catástrofe. O emprego total da comunicação é vital para assegurar que a humanidade venha a ter mais história (…) do que nossos filhos tenham futuro" (Um mundo e muitas vozes)
Cumplicidade ou síndrome de Estocolmo?
Desejo enfatizar que o advento do digital e da multimídia em nada muda esse quadro. A luta por uma Nova Ordem Informativa continua parte indissociável da luta por uma Nova Ordem Econômica e por uma ordenação política multipolar.
O neoliberalismo, ao contrário, requer, para a manutenção do pensamento único, o monopólio da emissão de informações por seus conglomerados midiáticos. Transformados em construtores de acontecimentos e instâncias de legitimação, passam a agir como atores orgânicos da supremacia americana e seus acólitos: se o relatório de Colin Powell não tinha fundamentos sólidos, assegure-se ao menos a hiperemotividade esperada; se o serviço de inteligência britânico ofereceu a Tony Blair um plágio da tese de um estudante iraquiano exilado, o que deve ser levado em conta é que os dados, mesmo defasados, eram impressionantes. Se a CNN é o braço televisivo do Pentágono, que nos sobre como consolo que suas imagens produzem esquecimento.
Os efeitos do controle informativo na imprensa brasileira foram objeto de um livro excelente do jornalista Carlos Dorneles (Deus é inocente, a imprensa não, Editora Globo), sintomaticamente mal recebido pela crítica. Nele é traçado um retrato etnográfico do jornalismo nacional num contexto noticioso no qual é o sócio menor. A reprodução deliberada de notícias favoráveis ao esforço propagandístico americano e a tradução dos articulistas mais afinados com os falcões republicanos não deixa sombra de dúvida: o que "sabemos" sobre Afeganistão e Oriente Médio provém das páginas belicosas de um Washington Post, de um New York Times ou das imagens consentidas da CNN. Escreve Dorneles:
"No Brasil, onde as editorias internacionais são cada vez mais reduzidas e o número de correspondentes cada vez menor, a dependência foi avassaladora. Articulistas e jornalistas do New York Times tornaram-se presença diária nos jornais. Além de Safire e Friedman, outros nomes foram ficando conhecidos: R. W. Appel Jr, Judith Miller, Anthony Lewis (…) O leitor brasileiro viu o conflito com os olhos da imprensa dos Estados Unidos."
Por que a irritação com o livro observada em amplos setores da imprensa brasileira? Não é fato que ela é refém de algumas agências noticiosas e de jornais estrangeiros? O mal-estar vem da cumplicidade editorial ou é sintoma de síndrome de Estocolmo? Qual a margem de ação da sociedade civil para a inversão desse quadro?
Eis uma bela guerra.
(*) Professor universitário