ELEIÇÕES NOS EUA
(*)
Alberto Dines
Nossa memória histórica está fixada em Nova York, nossas agendas estão cravadas no dia 11 de setembro de 2001 e nossa ansiedade volta-se para o Afeganistão. Mas se procuramos uma data para marcar a nova fase na vida americana nós a encontraremos no final de 2000. Mais precisamente em 7 de novembro ? há um ano e três dias ?, quando começaram as mais conturbadas eleições presidenciais dos Estados Unidos.
Aparentemente ainda não encerradas.
A confusão armada pelo pool de redes de TV com as conflitantes projeções de boca de urna, a precariedade do sistema de votação vigente na Flórida, a duvidosa representatividade do Colégio Eleitoral e a absurda decisão política adotada pela Suprema Corte encerrando bruscamente as recontagens dos votos nulos permitiram que George W. Bush fosse proclamado presidente dos EUA.
As emoções decorrentes da carnificina terrorista em Nova York e Washington nove meses depois da posse, seguidas da declaração de guerra contra o Talibã, impediram que fosse analisada e divulgada uma pesquisa encomendada pelos maiores jornais americanos sobre os 180 mil votos não incluídos no cômputo oficial na Flórida.
O trabalho foi iniciado em fevereiro, portanto imediatamente depois da investidura de Bush, realizado pelo Norc (National Opinion Research Center) e financiado pelas empresas que editam o New York Times, Washington Post, Wall Street Journal, Chicago Tribune, a Associated Press e alguns jornais independentes da Flórida. O único parceiro oriundo da mídia eletrônica foi o conglomerado misto AOL-Time-Warner.
O resultado foi entregue quatro dias depois dos atentados e, apesar de ter custado a bagatela de meio milhão de dólares, seus financiadores decidiram adiar a análise e a publicação das conclusões, por razões designadas como "logísticas" ? seu pessoal mais experimentado estaria envolvido na cobertura das diversas frentes da guerra inclusive o bioterrorismo.
Desculpa esfarrapada ou legítima, importa que foi publicada nos Estados Unidos. Significa que uma parte da sociedade americana tomou conhecimento do fato de que, embora empossado na dupla função de presidente e comandante-em-chefe, George W. Bush ainda é questionado como ocupante da Casa Branca.
Significa também que a mídia americana não é um sistema monolítico como algumas análises apressadas (e gestadas nos meios acadêmicos) fazem supor. Os chamados quality papers ? jornais de qualidade ? ainda constituem um segmento à parte, nitidamente diferenciado, da entidade plural mas não pluralista, genericamente designada de mídia eletrônica, envolvida com o entretenimento ou, no máximo, com o espetáculo noticioso e representada pelas redes de TV.
Exatamente essa grande imprensa foi quem cobrou do pool televisivo o fiasco da cobertura eleitoral em novembro passado induzindo-a a erros crassos em algumas edições no dia seguinte, o 8 de novembro. Essa grande imprensa é a que está advertindo o público a respeito dos apelos ou pressões do governo Bush para que as redes televisivas depurem as entrevistas com as lideranças terroristas. Ela é que veio acompanhando as medidas tomadas nas primeiras semanas da administração Bush visando a abrandar o rigor da FCC (Federal Communications Comission), no tocante à propriedade cruzada de veículos de comunicação e à regulação do setor em geral.
Tudo isso incorpora-se ao perigoso quadro de simplificações, exacerbado pelo justificado horror ao terrorismo e à submissão aos maniqueísmos. Esta guerra travada em plena Era da Informação, na antevéspera daquela que seria a Era do Conhecimento, está sendo modelar em matéria de desinformação, ignorância, preconceitos e histeria.
Vista daqui e já inserida na pauta das nossas próximas eleições, exibe todos os malefícios da fragmentação noticiosa e da insuficiência da massa de fatos quando desprovida da costura analítica.
Retornamos à Idade Média ou estamos construindo uma nova versão da Idade Média, não por causa da vulnerabilidade dos Estados Unidos, das democracias ou do tropel assustador promovido pelos sucessores de Gengis Kahn. A vulnerabilidade é individual, de todos. Cognitiva.
Grassa um medo de não entender o descomunal espectro de meios tons e matizes, teme-se ficar à margem, sobrar, não perceber todos os contornos de um episódio que irrompeu com o ímpeto e galardões de marco histórico e, no entanto, porque ainda incompleto, não desvendado, parece assustador. O remédio tem sido o factóide, o fac-símile, o artifício e o factício. Dentro dele, o rancor que a tudo explica.
Guerras são inevitáveis, intervalo da condição humana ou exibição magnificada da própria condição humana. Mas esta é uma guerra misturada com paz, excepcionalidade combinada à normalidade, como se nada tivesse acontecido apesar de tudo o que aconteceu e foi testemunhado por tantos. Anda-se desarmado mas os espíritos estão aguerridos. O inimigo é um vulto, impalpável e impreciso. Não fosse o medo de morrer, muitos gostariam de estar na linha de frente. Apenas para compreender.
(*) Copyright Jornal do Brasil, 10/11/01