Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Nova marca, velho estilo

GOVERNO LULA

Domingos Leonelli (*)

Saiu o primeiro anúncio com a nova marca do governo federal. Um alegre
? quase carnavalesco ? logotipo da palavra BRASIL.

Pode ser apenas um equívoco dentre os muitos que o governo vem cometendo na área da comunicação social, desde a forma do lançamento do Fome Zero, como pode ser coisa pior. Refiro-me à possibilidade de o governo Lula estar se adaptando acriticamente à forma tradicional de governar. E aí, de concessão em concessão… volta-se ao passado tão condenado.

As contingências internas e externas já obrigaram, no plano da estrutura, o governo Lula a reproduzir, de forma até mais radicalizada, a política econômica e financeira de FHC. Esperamos, todos, que tal reprodução represente apenas uma etapa a ser superada. E, por isso mesmo, é preciso evitar que na chamada super-estrutura cultural e política o governo repita as práticas que predominaram em governos estaduais como o de ACM e outros.

Em matéria de propaganda, o governo talvez precise aprender a ser mais “cliente”, dizendo o que quer e, principalmente, sabendo o que pode querer dentro dos princípios republicanos.

Confesso que tenho uma velha divergência com publicitários e agências brasileiras ? que aliás estão entre os melhores do mundo ? sobre a adoção de marcas para cada administração. São milhões de reais mal aplicados, de quatro em quatro anos, para alterar toda a comunicação visual de governos eleitos. Governantes e publicitários confundem governo e Estado, Administração e governo. Em nome de uma pseudo-modernidade, desconhecem a essencialidade institucional da República, retroagindo ao feudalismo, quando os senhores de “armas e brasões assinalados” confundiam o público e o privado. Ou seja, além de ser uma coisa meio babaca, marca de governo é, na verdade, retrocesso político e provincianismo.

Imagine se algum presidente francês vai substituir as armas e as cores da República da França por um logotipo bonitinho?

Marcas e logotipos para um projeto específico ou uma campanha, vá lá… Mas da assinatura do governo federal só podem constar os símbolos da República.

E, além de revelar um certo desconhecimento dos variados patamares da institucionalidade democrática ? inclusive do caráter permanente do Estado e a temporalidade das administrações eleitas, ? a adoção de “marcas” próprias de governo contraria a Constituição em vários dos seus dispositivos. O parágrafo primeiro do Artigo 13 diz claramente que “são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais”. Diz também que os estados e municípios poderão ter símbolos próprios. Ou seja, o Estado nacional, a República, da qual o governo é o braço executivo, tem simbologia definida na Constituição. Os estados e os municípios podem estabelecer algo semelhante. Nunca marcas de administrações, que por sua natureza democrática, são temporárias.

Nada autoriza, portanto, a adoção de simbologia própria para as administrações públicas eleitas que eventualmente ocupem essas instâncias do poder. Entre as atribuições do Presidente da República, no artigo 84, não se encontra a de alterar os símbolos nacionais ou utilizar nomenclatura, logotipia e referências simbólicas que não sejam as definidas no artigo 13, da Constituição Federal.

O parágrafo primeiro do inciso XXI do Artigo 37, que trata da administração pública, é preciso: “A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas de órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dele não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal ou de servidores públicos”.

Questão complexa

Onde o caráter educativo, informativo ou de orientação social na nova marca do governo federal?

O companheiro presidente precisa ficar atento para um perigoso casamento entre certos pensamentos de seu partido ? por exemplo, o fundacionismo, que o leva a considerar apenas a parte da História do Brasil em que o PT dela participa ? com a natural prepotência da atividade publicitária. Os publicitários se habituaram a elaborar uma comunicação de mão única, posto que o comercial de TV, o anúncio de jornal, o spot de rádio ou o outdoor não são discurso de tribuna parlamentar, sujeito a apartes, ou mesmo artigo ou matéria de jornal, publicado uma única vez e sujeito a respostas em relativa igualdade de condições. Não. O anúncio é repetido dezenas de vezes, de forma simultânea em vários veículos, martelando unilateralmente uma única informação. Seu poder de persuasão é assustadoramente maior que a informação jornalística.

Parece óbvio que o contraditório, o debate, a divergência tão defendidos pela esquerda, e também pelo PT, não se exercem, nesse caso, em igualdade mínima de condições. No caso do novo logotipo e da campanha de opinião sobre a Previdência Social, nenhum jornal, rádio ou televisão repetiria, durante 10 dias, 10 vezes ao dia, as declarações contrárias da senadora Heloisa Helena, para ficarmos no próprio PT, contra aspectos da Reforma Previdenciária. E muito menos veicularia nessa proporção seus justos argumentos contra a utilização de recursos públicos para a defesa de uma posição do governo em relação a um tema que ainda está em debate, ou seja, numa proposta do Executivo que poderá inclusive não ser aprovada no Congresso Nacional. Uma campanha como essa, para cumprir as exigências constitucionais, teria que ter caráter informativo e de orientação social, o que implicaria, no mínimo, informar as várias facetas da questão. E se o tema está em discussão por outros poderes da República, as opiniões contrárias teriam que ser incluídas na comunicação.

A questão da comunicação e o uso dos seus meios talvez seja a mais complexa da democracia. Exige aprofundamento do debate e grande responsabilidade política e social. Quando Lula designou para essa área Luiz Gushiken, um dos mais sérios e responsáveis quadros do PT, revelou sua sensibilidade para o tema. Mas é preciso refletir ainda mais.

(*) Ex-publicitário e ex-deputado federal PSB-BA, 57 anos