VEJA
Rafael Evangelista (*)
Sabe-se que a tão propalada imparcialidade dos meios de comunicação não passa de um objetivo utópico ou de mero slogan comercial. Por mais profissionais que sejam os produtores, jornais, revistas e televisões terão sempre interesses e posições a defender. Poucos veículos, no entanto, têm um discurso parcial tão visível como a revista Veja. Na reportagem "Uma guerra ideológica", publicada na edição de 31 de janeiro, a revista reporta a contraposição entre os Fóruns de Porto Alegre e de Davos, reiterando argumentos favoráveis à globalização econômica que provavelmente nem mesmo o megaespeculador George Soros ainda sustenta. Ao lado de uma estereotipização negativa dos militantes do Fórum Social, Veja faz uso de toda a "novilíngua" do mercado (semelhante à descrita por George Orwell, em 1984), para disfarçar as desigualdades gritantes do mundo atual.
O truque utilizado é fazer afirmações genéricas que transferem a culpa das desigualdades sociais para o "progresso" das sociedades humanas, isentando o processo de globalização. O texto é cheio de frases como "A globalização econômica não inventou a desigualdade. Tampouco exacerbou a injustiça social no planeta". Certamente a primeira frase é verdadeira, pois a globalização econômica é apenas uma das faces do capitalismo; mas a segunda certamente não é corroborada por nenhum economista sério.
A "novilíngua" de Veja liga a globalização ao que é moderno, enquanto que todos os seus oposicionistas significam o atraso. Nada escapa desse juízo evolucionista, que toma o moderno como algo inerentemente bom. Veja diz que "a globalização trouxe outras mudanças positivas. Ampliou os mercados para países de economia mais atrasada, promoveu uma vasta circulação de capitais e informações". É o trem da modernidade e do progresso, fórmula mágica que, segundo Veja, é capaz até de promover o desenvolvimento da África ("a única esperança dos povos africanos é justamente conseguir entrar no último vagão do comboio da globalização"). Atraso também significam o "intervencionismo estatal, as políticas industriais e as reservas de mercado", que teriam criado "boa parte da miséria que agora se pretende jogar nos ombros largos da globalização". Na verdade, o processo de globalização não tem nada de novo, é apenas o mesmo do capitalismo, esse sim culpado – mesmo que Veja não admita – pela não distribuição das riquezas.
Turba e turma
A descrição de Veja das mudanças que traz a globalização beira o ridículo quando coloca na mesma situação executivos e trabalhadores que hoje vivem uma constante instabilidade no emprego. "Pouquíssimas pessoas podem sentir-se absolutamente seguras em seus empregos e posições sociais em tempos de capitalismo mundial turbinado. Muito menos os chefões. Os acionistas e clientes estão com níveis de exigência crescentes que tornam a vida de quem está com a mão no leme um inferno", diz a revista. Será que alguém já viu um executivo de terno e gravata na fila do seguro-desemprego? O que será mais parecido com um inferno, a vida de um executivo de multinacional pressionado pelos acionistas ou a de um desempregado que vive em uma favela de São Paulo?
Os personagens da resistência à globalização são descritos com ironia. Em Porto Alegre, formaram-se "turbas", enquanto que na Europa reuniu-se a "turma" de Davos. Mas o Fórum Social não teria tido só a "turba com suas bandeiras, barbichas e palavras de ordem". Teria tido também "líderes com um perfil mais intelectualizado" que teriam contido a violência desse verdadeiro grupo de bárbaros, "sindicalistas, feministas, ecologistas, petistas, índios, socialistas de todos os matizes, além de um oceano de ONGs". A descrição soa como um xingamento na reportagem.
E assim Veja constrói sua visão do que foi o embate de Davos vs. Porto Alegre. De um lado, ela coloca os modernos, moderados e sensatos empresários e banqueiros, que já estariam despertando para os pequenos pontos negativos da globalização. Do outro, ficaram os atrasados, chatos, radicais e pouco intelectualizados militantes e socialistas, incapazes de perceber o rumo da história e esperar pelos benefícios da globalização – "isso leva tempo", segundo afirma a revista. Talvez ela adote essa postura por estar entre os únicos beneficiários da globalização e das privatizações brasileiras. Os meios de comunicação passaram a ter em sua carteira de clientes novos grandes anunciantes, como as empresas de telefonia fixa e celular, além de outras que compraram as estatais a preço de banana.
(*) Sociólogo e editor da revista Com Ciência <www.comciencia.br>
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