URNA ELETRÔNICA
Walter Del Picchia (*) e mais seis signatários (**)
Somos favoráveis ao uso da Informática no Sistema Eleitoral, mas não à custa da transparência do processo e sem possibilidade de conferência dos resultados.
Nosso regime democrático está seriamente ameaçado por um projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, o Projeto do Voto Virtual, PL 1503/03. Este projeto, sob a máscara da modernidade, acaba com as alternativas de auditoria eficiente do nosso Sistema Eleitoral Informatizado, pois:
1. Elimina o registro impresso do voto conferido pelo eleitor, substituindo-o por um "voto virtual cego", que o eleitor não tem como verificar o conteúdo;
2. revoga a obrigatoriedade de a Justiça Eleitoral efetuar uma auditoria aberta no seu sistema informatizado antes da publicação dos resultados finais;
3. permite que o Sistema Eleitoral Informatizado contenha programas de computador fechados, ou seja, secretos.
O Projeto de Lei do Voto Virtual nasceu por sugestão de ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ao senador Eduardo Azeredo, e sua tramitação tem sido célere, empurrado pela interferência direta desses ministros sobre os legisladores, como declarado por estes durante a votação no Senado.
As Comissões de Constituição e Justiça das duas casas legislativas analisaram a juridicidade do projeto mas, apesar dos constantes alertas de membros da comunidade acadêmica para seus riscos sem rigorosos procedimentos de auditoria e controle, nenhuma audiência pública com especialistas em Informática e Segurança de Dados foi aceita.
Essa lei, se aprovada, trará como resultado a instituição de um sistema eleitoral no qual não se poder&aacaacute; exercer uma auditoria externa eficaz, pondo em xeque até os fundamentos do projeto democrático brasileiro. Aceitando essa interferência e implantando um sistema eleitoral obscuro, corremos o risco de virmos a ser governados por uma dinastia, com os controladores do sistema eleitoral podendo eleger seus sucessores, mesmo sem ter os votos necessários.
Na contramão da história
A nação, anestesiada pela propaganda oficial, lamentavelmente desconhece o perigo que corre. Os meios de comunicação, com honrosas exceções, omitem-se inexplicavelmente, como se o assunto não fosse merecedor de nossa preocupação.
A finalidade deste alerta é a denúncia da falta de confiabilidade de um sistema eleitoral informatizado que: utiliza programas de computador fechados, baseia-se em urnas eletrônicas sem materialização do voto, não propicia meios eficazes de fiscalização e auditoria pelos partidos políticos, e identifica o eleitor por meio da digitação do número de seu título eleitoral na mesma máquina em que vota. Assim, o princípio da inviolabilidade do voto, essencial numa democracia, será respeitado apenas na medida em que os controladores do sistema eleitoral o permitirem, transformando-se o voto secreto em mera concessão.
Uma verdadeira caixa-preta a desafiar nossa fé, este sistema é inauditável, inconfiável e suscetível de fraudes informatizadas de difícil detecção. Como está, ele seria rejeitado na mais simples bateria de testes de confiabilidade de sistemas pois, em Informática, "Sistema sem fiscalização é sistema inseguro". Muitas das fraudes que ocorriam quando o voto era manual foram eliminadas, mas o cidadão brasileiro não foi alertado de que, com a informatização, introduziu-se a possibilidade de fraudes eletrônicas mais sofisticadas, mais amplas e mais difíceis de serem descobertas.
Enquanto os países adiantados caminham no sentido de exigir que sistemas eleitorais informatizados possuam o registro material do voto, procedam auditoria automática do sistema e só utilizem programas de computador abertos, com esse Projeto de Lei do Voto Virtual, o Brasil vai na contramão da história.
Debate evitado
De que adianta rapidez na publicação dos resultados, se não respeitarmos o direito do cidadão de verificar que seu voto foi corretamente computado?
Segurança de dados é assunto técnico especializado e assusta-nos a falta de seriedade com que nossa votação eletrônica tem sido tratada, nos três poderes, por leigos na matéria. Os rituais promovidos pelo TSE, como a apresentação dos programas, a carga das urnas e os testes de simulação, são apenas espetáculos formais, de pouca significância em relação à eficiência da fiscalização.
Surpreende-nos, sem desmerecer suas competências na área jurídica, que autoridades respeitáveis da Justiça Eleitoral possam anunciar, com toda a convicção, que o sistema eleitoral informatizado é "100% seguro" e "orgulho da engenharia nacional", externando inverdades em áreas que não dominam, alheias ao seu campo de conhecimento específico.
Para o eleitor, a urna é 100% insegura, pois pode ser programada para "eleger" desde vereadores até o próprio presidente. O único e mais simples antídoto para esta insegurança é a participação individual do eleitor na fiscalização do registro do seu próprio voto, pois ele é o único capaz de fazer isto adequadamente.
O TSE sempre evitou debater tecnicamente a segurança da urna, ignorando todas as objeções técnicas em contrário. Nenhum estudo isento e independente foi feito até hoje sobre a alegada confiabilidade da urna sem o voto impresso. O estudo de um grupo da Unicamp (pago pelo TSE), parcial e pleno de ressalvas, recomendou vários procedimentos como condição para garantir o nível de segurança necessário ao sistema. Essas ressalvas, infelizmente, foram omitidas na propaganda sobre as maravilhas da urna.
Apelo aos eleitores
A confiabilidade de sistemas informatizados reside nas pessoas e nas práticas seguras. Palavras mágicas como assinatura digital, criptografia assimétrica, embaralhamento pseudo-aleatório e outras panacéias de nada valem se não forem acompanhadas de rigorosos procedimentos de verificação, fiscalização e auditoria externas. Se esta urna algum dia cair sob o controle de pessoas desonestas, elas poderão eleger quem desejarem. De modo algum podemos confiar apenas nas pesquisas eleitorais como modo de validar os resultados das urnas eletrônicas, especialmente se as diferenças entre os candidatos forem pequenas.
Nenhum sistema informatizado é imune à fraude, especialmente a ataques internos, como sucedeu em julho de 2000 com o Painel Eletrônico do Senado, fato que levou à renúncia de dois senadores. A única proteção possível é um projeto cuidadoso que atenda aos requisitos de segurança, e à possibilidade de auditorias dos programas, dos procedimentos e dos resultados.
Basta de obscurantismo no sistema eleitoral. Enfatizamos a necessidade de serem realizados debates técnicos públicos e independentes sobre a segurança do sistema e de seus defeitos serem corrigidos, antes da aprovação de leis que comprometam a transparência do processo.
A democracia brasileira exige respeito ao Princípio da Transparência e ao Princípio da Tripartição de Poderes no processo eleitoral.
Instamos todos os eleitores preocupados com a confiabilidade de nosso sistema eleitoral a transmitirem suas preocupações, por todos os meios possíveis, a seus representantes no Congresso e aos meios de comunicação.
Brasil, setembro de 2003
(*) Professor-titular da Escola Politécnica da USP
(**) Jorge Stolfi, professor-titular do Instituto de Computação da Unicamp; Michael Stanton, professor-titular do Departamento de Ciência da Computação da Universidade da UFF; Routo Terada, professor-titular do Departamento de Ciências da Computação do Instituto de Matemática e Estatística da USP; Edison Bittencourt, professor-titular da Faculdade de Engenharia Química da Unicamp; Pedro Dourado Rezende, professor do Departamento de Ciência da Computação da UnB, representante da Sociedade Civil no Comitê Gestor da Infra-Estrutura de Chaves Públicas (ICP-Brasil); Paulo Mora de Freitas, chefe do Serviço de Informática do Laboratório Leprince-Ringuet da École Polytechnique, Palaiseau, França. Intertítulos da redação do OI
Leia também