THE NEW YORK TIMES
Memorando do editor-executivo Bill Keller à redação do New York Times, distribuído em 30/7/03
Colegas:
Assim que um repórter sem caráter jogou nossa redação numa fase de angústia, o mecanismo de autocorreção, que tem sido uma das forças deste jornal, foi ativado. Dezenas de colegas ? e alguns ilustres observadores externos ? dedicaram longas horas e séria reflexão ao modo como operamos, e produziram uma série de relatórios, que estamos divulgando hoje. Sem o trabalho deles, eu estaria iniciando meu mandato de editor-executivo olhando para trás, calculando os prejuízos. Graças a eles, começo meu trabalho com um plano de ação que ajudará a fortalecer nossa integridade e credibilidade, e nos fará uma organização de notícias mais eficiente.
Com esta mensagem vocês encontrarão a íntegra do relatório do Comitê Siegal e dois relatórios relacionados, como também o plano de ação.
Os comitês, em seu relatório ao publisher, recomendaram uma gama de medidas para melhorar o modo como tocamos a redação e para proteger nossa preciosa credibilidade. Cabe a mim, como novo editor-executivo, responder, e o faço com gratidão. Depois de conversar com os integrantes dos comitês, os editores da redação concordaram em seguir imediatamente algumas recomendações, e dar partida a um processo que levará à adoção de mudanças adicionais nos próximos meses.
A medida que provavelmente atrairá mais atenção é a indicação de um ombudsman ? o comitê prefere o nome “editor público” ?, que vai servir como representante dos leitores no jornal e nos ajudar a manter nossos altos padrões de precisão e clareza.
O Times tem tradicionalmente resistido às sugestões de nos juntarmos à dúzia de jornais americanos que emprega ombudsman. Nós temíamos que isso encorajasse picuinhas ou vaidades, que minasse o moral dos funcionários e, pior, que absolvesse os outros editores de sua responsabilidade em representar os interesses dos leitores. De fato, alguns jornais consideraram suas experiências com o ombudsman decepcionantes, e abandonaram o sistema.
O Comitê Siegal acredita, e eu concordo, que nós podemos lucrar com o escrutínio de um representante independente dos leitores. Um par de olhos profissional, familiar a nós mas independente do dia-a-dia da produção do jornal, pode nos tornar mais sensíveis à clareza e à precisão, e reforçar nossa credibilidade.
Entre os jornais que empregaram um editor público há muitos desenhos diferentes. Em alguns, o ombudsman é um observador externo privilegiado, que critica o jornal numa coluna e em mensagens internas à equipe. Em outros, a tarefa é mais de um auditor interno, alguém que reflete sobre o trabalho da redação e pede correções e reformas, mas sem um espaço público.
O comitê argumenta convincentemente que nós deveríamos criar um editor público com autoridade para desempenhar ambos os papéis. O trabalho que imaginamos incluirá um componente interno e um externo. O editor público vai cuidar das queixas do leitor, assegurar que sejam encaminhadas aos editores responsáveis e recomendar correções, notas dos editores ou outra medida corretiva. Mas este editor terá também licença para escrever sobre questões ligadas a nossa cobertura, e ter seus comentários, independentes e não-censurados, publicados em nossas páginas, sempre que ele ou ela sinta que isso se justifica.
Pretendo indicar um editor público no início do outono [primavera no Brasil], para mandato de um ano, como recomenda o Comitê Siegal. Depois disso, avaliaremos se manteremos ou adaptaremos a prática.
Ao mesmo tempo, vamos recriar um cargo que foi originalmente ocupado por Al Siegal ? uma posição de alto nível responsável pela manutenção de nossos altos padrões. Enquanto o editor público será antes de mais nada um auditor do que for publicado, o editor de padrões estará envolvido no dia-a-dia da produção de nosso jornalismo, com a responsabilidade não só de desenvolver normas, mas também de educar a equipe em termos de precisão e ética.
O comitê também propôs um editor de alto nível para supervisionar a tarefa de recrutamento e contratação, treinamento e desenvolvimento de carreira, transferências, promoções e avaliação. Esta é uma terceira recomendação que aceitamos alegremente.
Espero que estas três vagas sejam decididas e ocupadas nas próximas semanas.
Uma lista ampla das medidas que estamos adotando está anexada, com o entendimento de que, onde for apropriado, discutiremos sua implementação com a Comissão da Redação. Entre as mudanças que pretendemos fazer estão as seguintes:
** Assegurar que o desempenho de cada integrante da redação seja feita anualmente, iniciando o processo este ano e completando o ciclo no fim de 2004.
** Tornar mais racionais as políticas de crédito e procedência, para deixar claro ao leitor quem é o responsável por uma matéria, e o local em que foi feita. Isso deverá estar implementado no início do outono.
** Assegurar que cada mesa tenha um sistema de rastreamento de erros e monitoramento do desempenho de quem os cometeu.
** Rever e revisar instruções existentes sobre o uso de fontes anônimas.
** Reestudar a estrutura centralizada de redatores (copy), com o objetivo de colocá-los mais perto das editorias a que servem.
** Melhorar o acesso aos editores e reforçar a troca interna de informações.
O Comitê Siegal, cuja íntegra estamos divulgando para a equipe e para o público, inclui um exame independente do caso Jayson Blair, uma aberração que se tornou o agente catalisador para uma varredura mais abrangente das práticas de nossa redação. Este exame foi preparado por três respeitados jornalistas de fora do Times. O relato e a maior parte dos detalhes serão conhecidos dos que leram nossas exaustivas prestações de conta internas. Isso não torna a leitura menos dolorosa: confirma uma longa relação de comunicação perdida, lapsos de atenção, e nos repreende em linguagem forte. Embora haja pouco de que nos orgulhar nesta análise independente, estou orgulhoso de termos iniciado o processo de restauração da ordem pelo enfrentamento honesto de nossas falhas.
Os jornalistas de fora que examinaram o caso também responderam às acusações de alguns de nossos mais aguerridos críticos de que o caso Blair foi conseqüência de nossa determinação em contratar e promover a diversidade da equipe. Esta acusação, eles deixam claro, é equivocada. É também um insulto aos nossos muitos talentosos colegas das minorias. A fraude que Jayson Blair cometeu contra nós e nossos leitores não é conseqüência de nosso programa de diversidade, que foi bem desenhado para aplicar os mesmos padrões rigorosos de desempenho que exigimos de toda a equipe. O problema, no caso Blair, é que falhamos ao avaliar estes padrões em numerosos passos ao longo do caminho.
O fiasco Blair ? segundo os analistas externos ? tornou-se possível em parte pelo clima de isolamento, intimidação, favoritismo e árdua pressão, e estamos determinados a corrigir isso. De fato, já estamos adiantados nesta correção. Não significa que nunca cometeremos erros. Nana é à prova de erros numa instituição que depende de seres humanos, e de confiança.
O impacto sobre nosso sistema ? ao moral e à reputação ? criou uma importante oportunidade. Mais importante, criou um consenso pela mudança.
A questão da administração da redação tem sido encarada com suspeita em todas as redações em que trabalhei. Nas piores, é vista como coisa de guru, de panacéia, de mania, uma confusão que consome um tempo enorme e dá pouco retorno à natureza orgânica de um jornal diário. Zombamos do jargão, e rejeitamos a noção de que estamos sujeitos às mesmas regras elementares de outras instituições.
Mas há uma fome agora, neste jornal, de administração: fome de maior cuidado com as pessoas que contratamos e promovemos, de atentar mais sistematicamente para o desempenho das pessoas e como elas se desenvolvem profissionalmente; de tornar a avaliação uma rotina, e o treinamento, relevante; de vigilância mais escrupulosa da precisão e da clareza, de maior transparência em nosso compromisso com a diversidade.
Não é algo que estejamos inventando do nada. Por maior que seja nossa hesitação em falar disso, eu diria que nós tivemos uma “cultura de administração”, e no todo ela teve êxito. Olhem o calibre das pessoas daqui, a qualidade do jornalismo que fazemos. Isso não acontece por acidente. Mas a administração tem sido freqüentemente periférica e não-planejada, e ultimamente parece ter caído em sério estado de negligência. E sempre pareceu descartável na hora das grandes matérias. O que faremos é aumentar nossa responsabilidade na administração das pessoas, e entender que isso é inseparável do jornalismo que fazemos.
Medidas do tipo proposto nestes relatórios custam tempo e dinheiro ? tempo e dinheiro que poderiam ir diretamente para o jornalismo. A resposta a isso é dupla. Primeiro, temos um publisher que compreende que isso não sai de graça, e que se as reformas administrativas prejudicarem nosso jornalismo a instituição não as aceitará. Nosso compromisso é que os recursos servirão de auxílio nesta transição crítica. Segundo, em longo prazo, as ferramentas recomendadas redundarão em benefício do nosso jornalismo ? tanto quanto sua ausência o perturbou.
Eu disse aos integrantes do Comitê Siegal no outro dia que eles agora viraram executores de seus conselhos. Nós também. Aceitando esta responsabilidade podemos finalmente voltar ao trabalho que nós todos viemos aqui para fazer. (Bill Keller)
[tradução: Marinilda Carvalho]
Leia também
Íntegra do relatório do Comitê Siegal em formato PDF [em inglês]
Nós e a purgação do Times ? Bernardo Ajzenberg [Entre Aspas, Folha de S.Paulo]