MISÉRIA E MUDANÇA
Ivo Lucchesi (*)
A reflexão proposta no artigo anterior [veja remissão abaixo] procurou destacar pontos genéricos que, há três décadas, respondem por certo imobilismo do qual resulta uma espécie de paralisia da inventividade. Reconhece-se sua origem no sistema educacional, forjado nos tempos sombrios do regime militar. Mais que o reconhecimento dessa questão, impõe-se-lhe o enfrentamento. Afinal, o que, no Brasil, foi feito (e o que não foi) para o corpo societário, em seu figurino cultural, chegar a um estágio que classifico de "anorexia cerebral"? A tentativa de encaminhar alguma resposta minimamente consistente passa pela necessidade de fazer o olhar retroceder ao processo histórico, atitude pouco freqüente numa "cultura" que se vangloria por negligenciar a memória.
A memória histórica
Não se formula sequer esboço de ajuizamento isento sem a constatação prévia de que a passagem da ditadura para a democracia não contemplou mínimas exigências calçadas em critérios com os quais outro alinhamento cultural poderia ter prosperado, em tempo ainda de conter e, aos poucos, reverter o fluxo de "rotas alteradas". Para tanto, três pilares com os quais se sustentara o regime anterior deveriam ter sido redefinidos: sistema educacional, aparelho jurídico e estrutura política. Isto significa afirmar que o processo de abertura foi implantado, mantendo "fechadas" as vias estratégicas à altura de assegurarem passos futuros com autonomia. A democracia foi negociada, ignorando-se que a manutenção dos três pilares perpetuaria a predominância de um imaginário societário a inibir a expansão da imaginação libertadora.
No episódio da anistia, na campanha pelas "Diretas-já", na elaboração de nova Constituição, vingou o preceito da intocabilidade. O esquecimento da crueldade dos torturadores, o descaso ao grito popular e a subordinação da classe política às pressões lobísticas firmaram, em três etapas, a morte lenta da autonomia. Tudo parecia suportável e justificado, em nome da erradicação da censura, do retorno dos exilados, da recuperação das liberdades individuais, sem a menor percepção quanto ao rumo de um processo cultural em direção ao "vale-tudo".
Feitas as observações preliminares, agora cabe destinar foco particular a cada um dos três pilares citados em parágrafo anterior. Em respeito ao formato de um artigo, será alvo de análise o primeiro deles: sistema educacional, reservando os dois outros para um terceiro e conclusivo artigo a respeito do mesmo tema.
O sistema educacional
Não são em pouco número as deficiências detectáveis na realidade educacional brasileira, a começar pelos tantos de excluídos e condenados pelo analfabetismo. Por outro lado, pouco tem a vangloriar-se o lote de inclusos na educação formal, a julgar pela qualidade nela existente. Do ensino fundamental à universidade, o Brasil é regido por um modelo dos mais deficitários, o que impede o país de promover saltos qualitativos, em que pese o empenho de experiências isoladas. Todavia, de todo o processo, o mais perverso se situa no nível secundário, seja por ser terminal para muitos, seja por habilitar tantos outros à experiência universitária, além da faixa etária que atinge o período mais delicado em toda a formação de personalidade e caráter. Dos 14 aos 18 anos, tem-se a passagem definitiva para o despertar crítico ou para o desvio de conduta. É o período no qual o país perde ou ganha uma geração, razão pela qual centralizaremos a atenção.
Precisamente há 23 anos, em dois artigos publicados no semanário Caderno de Educação (Jornal dos Sports ? edições de 09/03 e 16/03, em 1980), com o título de "Proposições para a reestruturação do 2? grau", este articulista, testando os ventos da "abertura" com os quais o então "novo" governo Figueiredo acenava à população brasileira, alertava para a deformação à qual ficara exposto o nível secundário, desde a implantação da lei 5.692.
Na ocasião, ciente das deficiências detectáveis por qualquer profissional de ensino, propunha-se o nível secundário em quatro anos (vale registrar que o governo francês está agora por implementar), tripartido nas áreas de Humanas, Biomédica e Tecnológica, compondo-se em duas etapas. Os primeiro e segundo anos comuns a todos os alunos (Formação Geral), com o restabelecimento de disciplinas de perfil humanístico: filosofia, sociologia, psicologia. Os terceiro e quarto anos (Formação Específica) para turmas separadas, com disciplinas atinentes aos campos profissionais escolhidos. Vale lembrar que, na referida publicação, a cada área, oferecia-se a grade curricular julgada necessária, acompanhada da devida carga horária. Já preocupado com as demandas de uma realidade futura não muito distante, à época, sugeria a inclusão de disciplinas como informática e ecologia, além de dedicar capítulo especial ao "ensino profissionalizante". (O propósito aqui não é o de "republicar" os artigos. Apenas ilustrar, com a remetência ao passado, a incapacidade que o país tem de promover transformações onde elas efetivamente seriam agentes de progresso e desenvolvimento.)
A despeito de alguma repercussão em ocasionais veículos midiáticos (jornal e rádio), nenhuma conseqüência maior a proposta mereceu. Por outro lado, também não havia nenhuma expectativa quanto a diferente desfecho. Tratava-se apenas de pôr o dedo na ferida. A rigor, o projeto não convinha a nenhum setor. Limitava a lucratividade na rede do ensino particular, ampliava custos na rede pública, afetava interesses do mercado editorial voltado para publicação de livros didáticos, contrariava estratégias comerciais de mídias eletrônicas e, por fim, geraria novamente o risco de formarem-se jovens incômodos à ordem social, política e econômica.
Inexistência do 2? grau
Mais de duas décadas se passaram e nada rigorosamente, pelas mesmas razões de antes, foi alterado. Pelo tempo decorrido, não é difícil deduzir quanto de gravidade se multiplicou na deterioração intelectual da juventude brasileira. Em termos mais explícitos: a "cirurgia radical" engenhosamente urdida pelos "cérebros da ditadura" vem sendo corroborada, estrategicamente pela classe política e dirigente. Assim, a realidade educacional brasileira convive num processo de falsificação no qual o estudante egresso do 2? grau, em vigência, e aspirante a uma vaga na universidade não se apresenta existencialmente afetado, menos ainda transformado. Como ser social e existencial, o jovem (na verdade, adolescente) ingressa na universidade com o perfil identitário do qual já o era portador ao final da 8? série. Às alterações ocorridas no corpo, não correspondem novos estados mentais. Criticidade, eficácia argumentativa, exigência estética, capacidade analítica e interpretativa, fluência verbal e expressão afetiva são atributos cognitivos e perceptivos absolutamente ausentes na esmagadora maioria da juventude pré-universitária e prolongada no curso superior.
Enfim, a questão é essa: afora esforços individuais de profissionais sérios e comprometidos com o alcance histórico do que fazem, não existe nível secund&aacutaacute;rio na formação escolar brasileira. O material didático, em sua grande maioria, é graficamente sofisticado e conteudisticamente nada além de sofrível, além de preços extorsivos. Paga-se caro por quase nada. Por sua vez, a "grande família nacional" parece haver perdido o senso de orientação, quanto à fragilidade intelectual de seus respectivos filhos. Ou dela também se tornaram portadores os próprios pais?
Apenas quando se dá materialidade a certas situações é que algum desconforto passa a ser registrado por pais menos alheios ao destino geracional. Então, citemos algumas situações. É cabível um jovem escolher o curso de Letras, chegando à universidade absolutamente ignorante quanto a dramaturgos, poetas e ficcionistas como: Sófocles, Shakespeare, Balzac, Baudelaire, Eça de Queiroz, Flaubert, Dostoiévski, Kafka, Beckett, entre outro elenco infindável, simplesmente porque, no colégio, o aluno estuda (e mal) Literatura Brasileira. Claro que é fundamental conhecer sua própria literatura. Ocorre, porém, que tal incumbência deveria ser desempenhada pelo professor de Língua Portuguesa. Este, por sua vez, ministra, no nível secundário, o mesmo conteúdo cobrado no chamado ensino médio e sem nenhuma rentabilidade, já que os recém-chegados à universidade continuam desconhecendo princípios elementares atinentes a ortografia, pontuação, regência, concordância e concatenação de idéias. Ao professor de Literatura, a exemplo do ocorrido em outras partes do mundo, ficaria o encargo de municiar seus alunos com conhecimentos universais, com antologias capazes de ampliar o horizonte intelectivo e estético.
Pelo modelo instituído, há décadas formam-se profissionais em áreas como Sociologia, Psicologia, Ciência Política, Comunicação, Economia, Administração, Direito, entre outras, sem que a escolha feita tenha sido minimamente alvo de contato com os respectivos conteúdos, simplesmente porque a grade curricular do ensino secundário ignora por completo. Substituem a experiência com o conhecimento pela aplicação de "testes vocacionais". E o pior: acreditam nisso. Resultado: centenas de universitários, ao longo do curso, pedem transferência, alegando inadequação do curso às suas expectativas subjetivas e objetivas.
A cultura infantilizante
Não bastassem as deficiências estruturais apontadas, soma-se à identidade dominante brasileira a característica de, tradicionalmente, ser uma sociedade da oralidade, ou como, em publicação de 1981 (Dispersa demanda), Luiz Costa Lima classificou de "cultura auditiva". O sintoma fixado pela tradição nacional, sobre cujos aspectos históricos aqui não teceremos considerações ? até para não reproduzir a correta e rica análise presente na obra citada ? ainda se viu fortalecido e estimulado por conta da expansão dos meios audiovisuais, a partir dos anos 1970, no século passado, quando se deu acentuado incremento. Principalmente, no tocante à televisão, políticas de difusão foram traçadas, de modo a, pela sedução da imagem, reter por mais tempo possível junto a ela o olhar de milhões de receptores. Acompanhando a concepção de tal paradigma, demais meios de comunicação foram aderindo, com o intuito de tornarem o código verbal escrito cada vez mais assediado pelo padrão visual. Assim, o imaginário cultural brasileiro, já precário pelo regime da oralidade, migrou majoritariamente, para o da "imagibilidade".
A mudança de padrões comunicacionais agravou o quadro na medida em que da oralidade para a imagem tem-se uma perda ainda maior quanto ao desprestígio que o código verbal passa a sofrer em favor do código icônico. Enquanto a palavra, bem ou mal, pela sua constituição mental, de base conceitual, obriga a certo esforço de compreensão, a imagem, pelo contrário, deixa a ilusão de tudo estar à mostra. Nesse estágio de transformação, o contexto cultural brasileiro não se dava conta de que o regime da imagem era a extensão do regime político: o autoritarismo a governar o país se casava com o caráter autoritário do qual a imagem se faz portadora. Por sua vez, o sistema educacional, insensível à tendência brasileira, não compreendeu que deveria inserir a linguagem audiovisual como tema de análise crítica. Quando tematizava a questão ? o que ainda ocorre em grande escala no Brasil ? conferia tratamento banal e/ou ingênuo, mera prática ratificadora do próprio veículo, a TV. Ou a televisão era alvo de discursos elogiosos, ou era objeto de menosprezo por parte dos supostamente mais esclarecidos.
À imagem e semelhança dos "modelitos televisivos", a figura do professor era incentivada a trocar o perfil de autoridade do conhecimento, para assumir o papel de "animador cultural", sob o respaldo de uma "pe(r)dagogia assistencialista". As raras angulações críticas ficavam (como ainda permanecem) restritas a pequenos redutos acadêmicos.
Como se vê, o tema é um convite a tantos outros desdobramentos incompatíveis com o propósito de um artigo, já um tanto alongado. Fica, pois, o registro de um tom de alerta para os desafios que tanto exigem enfrentamento urgente quanto se intensificam aceleradamente os efeitos de uma avalanche que ameaça aprisionar a inteligência brasileira, condenando gerações a um tempo de carências progressivas, tão graves quando materiais e não menos preocupantes, quando culturais. É bom lembrar que, no relógio das vicissitudes sociais e existenciais, os ponteiros giram com mais velocidade. No próximo artigo, tratar-se-á dos pilares do aparelho judiciário e da estrutura política, como as duas instâncias que, na democracia brasileira, colaboraram (e colaboram) para o desmantelamento da qualificação cultural.
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ
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