PROTOFANTASIAS
Paulo Lima (* )
No famoso musical My fair lady, baseado na peça Pigmalião, do dramaturgo e crítico irlandês George Bernard Shaw, um professor de inglês encontra ao acaso uma florista na vitoriana Inglaterra de 1912. Capaz de distinguir a origem de um compatriota a metros de distância somente pelo sotaque e os trejeitos da fala, o professor logo identifica a origem humilde da moça e decide apostar em sua transformação, mudando-lhe os modos de vestir, falar e se comportar. Em Shaw, a dramaturgia era um pretexto para espirituosos diálogos de crítica social. A metamorfose da vendedora de flores, embora bem-sucedida, não passa de um desiderato do dramaturgo, na ultra-rígida sociedade inglesa de então, com seus irremediáveis párias.
Mantidas as devidas distâncias e proporções, a utopia de Shaw segue rediviva em releituras contemporâneas, devidamente adaptadas para o appeal mediano da cultura de massa. Não é outro o mote de filmes como Uma linda mulher, em que uma garota de programa (Júlia Roberts) se enamora do príncipe libertador (Richard Gere). A trama é bem conhecida, e convém sublinhar apenas a lufada de puritanismo e redenção hipócrita presentes nas intenções do diretor do filme: mediante a boa ação de um gentil cavalheiro, uma alma perdida se redime e consegue deixar o bas fond.
O tatibitate hollywoodiano não termina, no entanto, na história da linda mulher. Lançado recentemente, o filme Encontro de amor revive mais uma vez o espírito de My fair lady. Um político (Ralph Fiennes), às vésperas da corrida para o Senado americano, conhece e se encanta com uma camareira (Jennifer Lopez) de luxuoso hotel situado no coração de Nova Iorque. Ao contrário da história de Uma linda mulher, o personagem de Fiennes desconhece a origem social da empregada do hotel, e o romance redentor segue rendendo promessas e suspiros.
Esse complexo de My fair lady não habita somente a tela grande. Ele parece escorrer da fantasia de Hollywood e respingar abaixo do Equador, mais exatamente na programação domingueira da nossa TV, em shows que prometem aos participantes a realização de um sonho há muito almejado. No bojo desse sonho está o abandono de uma vida de penúria.
O Domingo legal, apresentado por Gugu Liberato no SBT, é um desses programas. Em um de seus quadros, "Um dia de princesa", a telespectadora cuja carta for contemplada em sorteio terá direito a viver um dia especial, ao lado de seu artista favorito. No roteiro de sonho, o artista chega de limusine à casa da princesa, que invariavelmente mora lá onde Judas perdeu as botas. A casa é paupérrima. No momento do tête-à-tête da princesa com o ídolo, conhece-se a história triste da escolhida: marido desempregado, contas atrasadas, uma criança a caminho, doenças na família e todo um rosário de miséria.
Exploração pura e simples
A princesa é então conduzida ao carrão e toma o rumo da metamorfose. A primeira parada é num salão de beleza bacana de São Paulo. Depois, um banho de loja em butique de um shopping center qualquer. Num vapt-vupt, a princesa se transforma. Nova tomada: agora ela está num restaurante chique ao lado do sorridente astro-príncipe. No jantar à luz de velas e ao som de suaves cascatas, nada que comprometa o fake do encontro, mas ainda assim a princesa sorri e parece crer na quimera.
Tomada final: a princesa é reconduzida à cozinha do castelo, à sua casa distante e pobre, de onde jamais saíra. Degustará as lembranças de um único dia, acreditando na fantasia, na ilusão de ter provado o gosto da realidade que nunca lhe pertencerá.
Mistura de espetacularização e engodo, esse tipo de quadro não passa de maldade. Os remediados, num singelo dia, saciam a fome de toda uma vida. E depois? Retornam à origem, para a "quebrada da soleira". O burlesco do programa, fortalecido por exploração de tragédias fortuitas, exibicionismos, sacanagem, freaks e o que mais vier, certamente renderá pontos no Ibope. Sob a escusa de propiciar um momento de felicidade aos necessitados, quadros como esse do Domingo legal não vão além da exploração pura e simples da ingenuidade de pessoas que, não suportando a pobreza, imaginam vencê-la, nem que seja na ilusória materialidade de um sonho.
(*) Estudante de Jornalismo e editor do Balaio de Notícias <http://www.sergipe.com/balaiodenoticias>