PRODUÇÃO AUDIOVISUAL
Nelson Hoineff (*)
Na tarde de segunda-feira (13/10), poucas horas antes do primeiro capítulo da novela Celebridade, o Palácio do Planalto viveu seu dia de Projac. O presidente Lula apresentou o Programa Brasileiro de Cinema e Audiovisual ao lado de personagens de fazer inveja a Gilberto Braga: os principais nomes da classe cinematográfica, da produção independente de televisão e da classe política; o vice José Alencar, o superministro José Dirceu, o ministro da Cultura Gilberto Gil e pelo menos mais sete ministros, de Miro Teixeira a Mares Guia.
O programa lançado pelo governo consiste em vários pontos: a incorporação da Agência Nacional do Cinema (Ancine) ao Ministério da Cultura; a transformação do Conselho Superior de Cinema (vinculado à Casa Civil) em Conselho Nacional do Cinema e do Audiovisual, com mais 6 membros em sua composição; e, nos próximos 15 dias, a transformação Ancine em Ancinav, incorporando-se entre as atribuições da agência a regulamentação da atividade televisiva.
"Queremos maior acesso a programas de televisão inovadores e diversificados", disse o ministro Gil em seu discurso. "Queremos uma produção independente e regionalizada, capaz de projetar, em todas as telas, a multiplicidade que compõe nossa unidade como povo e nação." Pouco depois de Gil, o próprio Lula lembrava que não é possível nos contentarmos com as migalhas deixadas pela produção estrangeira ao nosso mercado.
Impacto profundo
Falavam sobre cinema e televisão. Mas se estivessem se referindo diretamente ao quadro da TV por assinatura no Brasil, ambos não poderiam ter encontrado frases mais apropriadas. Uma das maiores conquistas da Ancine, por exemplo, a implementação do artigo 39 da MP que a criou ? artigo que dispõe sobre a aplicação de 3% do faturamento das programadoras em parcerias com produtores independentes no Brasil ?, está sendo grosseira e criminosamente burlada, com a desfaçatez dos que acreditam na impunidade oferecida por uma república de bananas.
É sabido que as TVs pagas vivem momentos difíceis. No Congresso da ABTA (Associação Brasileira de Televisão por Assinatura), realizado de 7 a 9 de outubro, anunciou-se que essa mídia ultrapassou o segmento de jornais no ranking das mídias nacionais ? faturando, na projeção para 2003, 3,650 bilhões de reais contra 3,274 bilhões de reais dos jornais.
Estes números, no entanto, não se referem ao investimento publicitário, mas à soma da publicidade com o faturamento das assinaturas, que representa 10 vezes mais. Em 2001, por exemplo, o mercado publicitário investiu nos jornais 1,975 bilhão de reais contra apenas 142 milhões de reais na TV por assinatura.
O problema principal é que a maior parte da receita das assinaturas fica para a operadora. Uma parcela pequena é distribuída entre todas as operadoras, em bases que não dependem do faturamento, mas do preço de programação por número de assinantes. Uma operadora compra a programação da ESPN, por exemplo, ou da Discovery, ou da Cartoon, por 10, 20 ou 50 centavos de dólar por assinante. A receita decorrente da venda publicitária é que vai na sua totalidade (ou quase) para a rede, mas essa ainda é muito pequena.
Em conseqüência, a capacidade de produção no Brasil é muito pequena, mas o mercado não tem nada a ver com isso. Não é ele que está errado, mas os mecanismos de produção e difusão do audiovisual no país.
O que está sendo colocado em jogo no programa lançado pelo governo são esses mecanismos. Eles afetam as condições de trabalho dos profissionais do setor, mas vão muito além disso. A produção e difusão audiovisual determinam o reconhecimento pela sociedade de sua própria cultura ? com profundo impacto sobre a construção da identidade e a auto-estima do povo brasileiro.
Perigos para a cultura
Na verdade, todo o sistema de produção e distribuição do audiovisual brasileiro está descosturado há muitos anos, o que amplia exponencialmente os conflitos e as contradições do setor. Por isso, a TV por assinatura resignou-se à sua microscópica capacidade produtiva, incompatível com a quantidade de redes internacionais que circulam pelas operadoras.
Decorrem daí distorções particularmente nocivas na relação entre a sociedade brasileira e a sua produção audiovisual. Dissemina-se a crença de que a TV aberta é o espaço natural para a vulgaridade nativa, enquanto a TV por assinatura é o refúgio da inteligência que vem de fora; que emissora de TV e produtora de TV são a mesma coisa.
No entanto, a televisão aberta é um excepcional e inexplorado meio para a expressão da inteligência criativa, enquanto a TV por assinatura não é o salão de festas da programação estrangeira ardilosa e mediocremente desenhada para consumo global, mas o espaço magnífico para a experimentação da produção local. E emissora é quem emite o que os muitos produtores produzem.
Se programadoras estrangeiras de TV por assinatura tratam o público e os produtores brasileiros como idiotas é porque de fato acreditam que esse público e esses produtores cederam à idiotização que elas promovem a partir de sua programação, feita ou por quem acredita que todos do outro lado da tela são débeis mentais ou porque eles mesmos o são. Mas na segunda-feira, no Palácio do Planalto, não foi visto nenhum macaco ou índio estilizado tão ao gosto desses programadores. O que se viu foi uma grande e representativa quantidade de artistas e políticos que falavam de maneira séria e consistente sobre os perigos que a hegemonia cultural, que a dominação e a tutela podem trazer para a cultura, a auto-estima e a determinação de um povo.
Licença e favor
Há muito o que ser feito pela frente e há perigos em cada curva do que já foi realizado, como os decorrentes da concentração de várias faces de uma atividade sobre um único órgão de governo. O fato, porém, é que não é mais possível conviver com atividades que se julguem imunes a qualquer forma de regulamentação e que ajam diretamente sobre a construção da identidade do povo brasileiro. Há questões de simples formulação ? e essas formulações são importantes para que se trabalhe sobre suas respostas:
** Não é possível que o cinema seja um estranho em seu próprio mercado e, para sobreviver, tenha que se apropriar dos mecanismos estéticos e comerciais da TV;
** Não é possível que a televisão aberta seja tão ruim e ainda assim deficitária e monolítica, rejeitando a pluralização da produção;
** Não é possível que mais de duzentas redes de televisão por assinatura estrangeiras transitem pelos nossos satélites domésticos, pelas operadoras brasileiras e tenham no seu mau desempenho um argumento para não se comprometer minimamente com a produção nacional;
** Não é possível que essas redes burlem abertamente a legislação existente, despejando o dinheiro público sobre grandes redes de televisão e se divertindo com esse engodo tutelado pelas matrizes no exterior.
Por isso, os mecanismos que serão criados a partir dos decretos assinados em 10/10, no Planalto, têm uma importância análoga ? poder-se-ia dizer, até mesmo inferior ? ao que isso representa em atitude: não à tutela, não à submissão à burrice e à arrogância. Ver imagens brasileiras consistentes e verdadeiras na televisão brasileira não deve se dar a partir da licença ou do favor de ninguém.
Há mais macacos e índios de butique em Miami do que no Palácio do Planalto. Os que nos ocupam e nos impõem o que existe de pior na produção audiovisual do mundo é que têm de nos pedir a licença e o favor de os receber. E devem ser tratados, pelos brasileiros de bem, da mesma maneira como eles os tratam.
(*) Jornalista, produtor e diretor de TV