Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O campo de batalha somos nós

APURAÇÃO E EDIÇÃO

Alberto Dines


Em 1968, o escritor e jornalista Fausto Wolf lançou uma novela que denominou O Campo de Batalha Sou Eu (José Álvaro Editor, Rio), em que o protagonista é um ser humano que perdeu as pernas e os braços, só lhe restou a capacidade de lembrar e denunciar. Com a devida permissão do autor utiliza-se uma variação do título e do mote.


Comunicadores e comunicados já perceberam que estamos enfiados num grande lance da História com desdobramentos imprevisíveis? Já ficou claro que a guerra e o pós-guerra vão embolar numa coisa só? Alguém tem dúvidas de não se trata de um confronto Bush-Saddam e o número de beligerantes está fadado a aumentar?

As empresas jornalísticas do mundo inteiro acreditaram que o conflito seria rápido e cirúrgico, investiram recursos fabulosos (ou endividaram-se ainda mais) e agora estão com pelo menos dois problemas: os leitores-ouvintes-telespectadores-internautas continuam perdidos na enxurrada de informações e, o pior, os recursos terão que ser geridos de forma mais parcimoniosa.

Esta não pode ser considerada uma guerra local: os exércitos regulares enfrentam-se no Iraque, os irregulares em todo o Oriente Médio e as batalhas políticas travam-se pelo mundo afora.

Os historiadores de plantão talvez relutem em designá-la como Guerra Mundial, mas é preciso levar em conta que os historiadores de plantão em geral não têm perspectiva para dimensionar e batizar os eventos. Tanto que a 1? Guerra Mundial não foi mundial (embora os alemães se esforçassem para ampliá-la), foi no máximo uma Guerra Euro-Asiática, razão pela qual muitos insistem em designá-la como Grande Guerra.

O dado novo e crucial é que a conflagração iniciada em 19 de março de 2003 é fenômeno global: desenrola-se num imenso cenário intercontinental e multisetorial onde opera-se a fusão do real com o virtual, do tempo com o espaço, dos meios com as mensagens, do emissor com o receptor.

Esta é a 1? Guerra Midiática

O campo de batalha somos nós ? enquanto leitores, ouvintes, telespectadores, internautas e jornalistas. Não estamos sendo atacados por foguetes ou bombas inteligentes mas por uma gigantesca barragem de informações, espertas ou estúpidas, corretas ou falsas, objetivas ou ensandecidas.

Diante deste bombardeio, como se fora acionado pelo radar, começou a funcionar imediatamente um sistema de defesa. A partir do primeiro final de semana depois de iniciado o conflito, ao lado das imagens cinematográficas, do fartíssimo noticiário militar e dos vistosos infográficos, a mídia passou a ocupar-se da mídia.

A mídia midiatizou-se

Não apenas nos recantos especializados ou autarquias opinativas mas junto da própria informação. Porque o juízo sobre a informação tornou-se tão importante quanto a própria informação. O território da crítica expandiu-se de forma tão extraordinária que os críticos tornaram-se criticados e a matéria criticada tão importante quanto aquela tida como acrítica.

A internet consagrou-se imediatamente como canal alternativo para fugir dos impasses produzidos pelos grupos de pressão na grande imprensa. E, na semana seguinte, os blogs de soldados, jornalistas ou civis envolvidos surgiam como alternativa da alternativa.

Com incrível velocidade, a tecnologia oferece novas opções para informar e para duvidar da informação [clique em PRÓXIMO TEXTO, no pé desta página, para ler "Blogs ligados no Iraque"].

Pode haver coisa melhor do que a universalização do ceticismo?

Coisa melhor, não, igual, sim: a capacidade de pensar e fazer pensar. Não é estranho que militares estejam brandindo seus sabres eletrônicos e políticos estejam de olho nas urnas eletrônicas. Não é inédito que narcisistas estejam querendo brilhar e os coléricos queiram desopilar suas cóleras. Vivem disso, precisam disso. Mas o negócio do jornalismo, numa hora em que as certezas tornaram-se tão vulneráveis, depende de uma competência muito especial: equilíbrio.

No grande circo da mídia de nada adiantam lantejoulas, aparelhos, músculos e ousadia. Equilíbrio significa treino, experiência, consciência.

Por mais informações que estejam sendo disseminadas, por mais acessos que estejam sendo oferecidos, por mais ferramentas que estejam sendo disponibilizadas, o leitor-ouvinte-telespectador-internauta necessita de alguém capaz de oferecer-lhe os ingredientes para juntar os fragmentos, colar as sobras, fundir estilhaços. Perdido no campo de batalha, está reclamando uma voz ponderada capaz de desvendar a dimensão do acontecimento no qual está envolvido e, ao mesmo tempo, acalmar seus medos diante dos seus desdobramentos.

Procuram-se personal editors.

 

** A questão da competência

O furor anti-Bush tem levado alguns jornalistas brasileiros a cometer furiosas barbaridades, inclusive de considerar a imprensa americana como incompetente. Generalizações são sempre perigosas, abrem caminho para os totalitarismos. De qualquer forma, apesar de algumas vacilações e vexames, ainda não apareceu uma outra escola jornalística que se compare à escola anglo-saxônica. Mesmo as redes árabes quando defendem seus procedimentos e padrões gabam-se de suas origens no jornalismo americano ou inglês. A revista New Yorker, edição de 17 de março, traz na capa (na verdade, falsa capa), como principal chamada, uma reportagem assinada por um dos melhores repórteres investigativos americanos, Seymour M. Hersh, que expõe as jogadas comerciais de Richard Perle, um dos mais abonados e encarniçados falcões do Pentágono. São treze colunas de informações (seis páginas com anúncios) cuidadosamente apuradas, checadas e contra-checadas. Nenhum adjetivo, títulos acusatórios, fotos ou qualquer outro recurso apelativo. Nenhum grampo, fita ou dossiê secreto. Apenas entrevistas ? inclusive com o próprio Perle ? trabalho de campo, pesquisa. A matéria foi escrita algumas semanas antes de disparado o primeiro tiro no Iraque e publicada poucos dias antes. Uma semana depois de iniciado o conflito, diante das revelações, o governo Bush sofria uma de suas mais importantes baixas: Perle demitiu-se do Defense Policy Board, importante consultoria do Pentágono.

Na mesma edição do New Yorker saiu a matéria sobre a Daslu (a loja de moda mais chique do Brasil). A reportagem de Hersh não foi comentada na mídia brasileira mesmo depois de anunciada a demissão de Perle ? ao contrário da matéria sobre a Daslu, fartamente discutida.(A.D.)

** Repórteres "incorporados"

A expressão vem do inglês ? embedded (de bed, cama, significando embutido, encaixado) ? e foi usada a primeira vez no jargão informático para designar os chips acoplados a automóveis, aviões, eletrodomésticos etc. Nesta guerra designa os repórteres incorporados a unidades militares para garantir a sua segurança e, também, para facilitar a cobertura de combates. Convém registrar que desde 1914 a cobertura das guerras faz-se com jornalistas "incorporados" em unidades militares. Ernest Hemingway cobriu a Grande Guerra incorporado, assim também os jornalistas brasileiros que fizeram a cobertura da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália e as centenas de profissionais que acompanharam a conquista da Itália (1943) e invasão da Normandia, em 1944. Uma batalha naval só pode ser acompanhada por jornalistas "incorporados" à guarnição de uma embarcação beligerante, assim também o repórter que se dispõe a acompanhar uma incursão aérea. Na primeira guerra do Golfo (1991), os jornalistas ficaram na retaguarda informados através de briefings ou excursões longe da linha de fogo. Houve muita reclamação não apenas de profissionais que queriam testemunhar sem intermediários, mas dos críticos que consideraram este tipo de cobertura sujeito a manipulações. A controvérsia surgiu agora por causa dos avanços tecnológicos: graças ao videofone o repórter pode fazer a cobertura durante o desenrolar da batalha e, eventualmente, revelar informações que podem ser úteis ao inimigo.

Pergunta-se: o que é melhor ? voltar ao sistema do jornalismo passivo, soltar os repórteres no meio do campo de batalha sem proteção ou permitir que os jornalistas se incorporem às unidades militares desde que não revelem ao inimigo dados que podem colocar em risco o êxito do evento que cobrem? (A.D.)

** al-Jazira e al-Arabyia

Como a mídia no Iraque é controlada pelo governo de Saddam Hussein, a entrada em cena das duas redes árabes de TV por assinatura introduz uma dimensão nova, o "outro lado". Sobretudo porque têm facilidades que não são oferecidas à mídia não-árabe (inclusive o idioma comum). Mas a novidade só pode ser aquilatada em ambientes democráticos onde as diferentes coberturas podem ser comparadas. (A.D.)

** Peter Arnett

Antes de examinar a sua volta às manchetes com a demissão da NBC, convém verificar o que neste Observatório já foi dito sobre ele: a) sempre teve fama de "cascateiro"; b) quando afastou-se da CNN, em 1998, a emissora admitiu que a série de reportagens sobre a guerra do Vietnã não tinha sido suficientemente investigada. Ele não reclamou, inclusive quando esteve no Brasil. (A.D.)