LEITURAS DE VEJA
Rafael Evangelista (*)
Nas últimas seis edições, a revista Veja, o semanário de notícias de maior circulação no Brasil, tem feito uma defesa clara de certos princípios e valores, que tem sido mostrada nas páginas desse Observatório de forma certeira por Jonas Medeiros. Embora tenha se acentuado, o processo, no entanto, não é novo. Já há algum tempo, Veja tem trazido reportagens que, ou tem por finalidade simplesmente reafirmar esses valores ou usam de notícias da atualidade para "confirmar" ? com grande malabarismo na argumentação ? as idéias do veículo. Essa ideologização de Veja caminha no sentido de reforçar idéias em favor do livre mercado, das privatizações, do atual modelo de globalização. Os adversários principais são, é claro, os partidos de esquerda e os movimentos que procuram constestar a globalização.
As armas que Veja se utiliza em sua guerra verbal contra esses adversários são a ironia, nem sempre delicada ? na maioria das vezes grosseira e preconceituosa ?, um grande espaço e adjetivos lisonjeiros aos teóricos do neoliberalismo e a reativação de certos mitos sobre o capitalisto. Assim, a publicação vai se posicionando politicamente com relação aos fatos que noticia. Já o fez de forma clara em editoriais e o faz em grande parte dos textos que publica.
Um dos mitos que reproduz em sua edição de 31/11/2001 foi o da ascensão social ligada à ética do trabalho no capitalismo. Ela já havia feito algo semelhante em 12/07/00, quando se propôs a falar sobre as grandes fortunas brasileiras <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/iq18072000.htm#questao06>. Entenda-se bem, são mitos não porque são idéias falsas, mas porque são histórias contadas com recorrência e que exemplificam certas idéias sobre o mundo. Se são verdadeiras ou não isso não importa, mas sim o que dizem sobre o pensamento daqueles que as reproduzem.
O texto em questão intitula-se "Bilionários latinos" e trata da história de vida dos 10 homens mais ricos da América Latina. Há de se perguntar o que há de informação de interesse nessa pauta que valha as quatro páginas com fotos em cores em que está publicada. De fato não há nada, a não ser uma possível curiosidade com formato Caras sobre a boa vida dos milionários e o pretexto para dizer coisas como "o investimento em programas sociais [na América Latina] é crescente e a desigualdade entre ricos e pobres vem, lentamente, sendo reduzida".
O texto da reportagem argumenta em favor das qualidades das medidas tomadas na América Latina por recomendação do FMI ? como as privatizações e a abertura dos mercados ? e tenta criar a impressão de que esses bilionários ascenderam de uma posição social baixa. Quando descreve a infância do maior deles, o mexicano Carlos Salim Helu, conta como ele vendia doces nas festas de sua família. No entanto, diz, nos parágrafos seguintes, que Helu ganhou como presentede casamento, de seu pai, um "terreninho", sobre o qual construiu seu primeiro edifício, que deu início à sua construtora.
Essa reformulação da história de vida da classe alta é bastante comum. A maior parte dos imigrantes, que chegaram ao Brasil entre o final do século 19 e início do século 20, e que aqui fizeram fortuna, como os Matarazzo, já chegaram na América com algumas economias, pois vinham de classes médias da Europa. Mas, quando contam sua história, procuram enaltecer o trabalho e o sucesso que tiveram e omitem o passado mais afortunado. É o mesmo mito que Veja reproduz, recolocado para os tempos de globalização. E o cerne dele é principalmente a ética do trabalho duro, que vale até para os bilionários afeitos aos holofotes e à boa-vida. Todos trabalhariam muito.
Conversa mole
Algumas páginas antes está a reportagem "Guerra real ao fanatismo". É a oportunidade para ressaltar ? mesmo que criticamente ? as teorias de Francis Fukuyama sobre o "fim da história", cuja argumentação no início dos anos 90 era que, ao mundo, após a queda do muro de Berlim, apenas restou aderir à "economia de mercado". O texto de Veja procura mostrar como, após o 11 de setembro, os países ricos perceberam que devem estabelecer uma ajuda mais sólida contra a miséria nos países pobres, ou correrão o risco de terem que conviver com as ameaças do terrorismo. São os ricos, obrigados a reforçar as atividades filantrópicas e assistencialistas ("solidárias") buscando conter a escalada da violência.
O que o texto reforça é a idéia de que há apenas um modelo possível para se conseguir o desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida dos países pobres e miseráveis. E esse modelo seria de tipo "integrado", buscando-se uma inserção nos mercados internacionais segundo os padrões dos organismos internacionais como a OMC e o FMI.
Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura são os exemplos dados de países que teriam feito a transição do Terceiro para o Primeiro Mundo. O que que Veja omite são declarações como a do prêmio Nobel e ex-economista?chefe do Banco Mundial Joseph Stiglitz, que afirmou ter a Coréia ? assim como a China e Botswana ? conseguido algo em termos de desenvolvimento por ignorar as ordens do FMI.
Na mesma linha, está o texto publicado na edição dessa (07/11/2001) semana sobre a recepção de FHC no exterior. Na França, o presidente criticou o modelo de globalização atual, pediu a taxação dos capitais especulativos internacionais (só faltou citar a taxa Tobin) e chegou a ser alvo de uma gafe do presidente do parlamento francês, que o cumprimentou pela realização do Fórum Social Mundial de 2000. Mas o enfoque que Veja deu para a viagem foi o da boa receptividade que um presidente-acadêmico tem nos círculos internacionais. Todo o conteúdo "antiglobalizante" do discurso foi omitido para que se mostrasse a vantagem de eleger alguém "integrado" aos mercados/círculos políticos internacionais. O alvo claro foi Lula e a ironia é que Veja criticou duramente o Fórum Social Mundial, em janeiro, no artigo "Uma guerra ideológica" <http://www.teste.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/jd280220012.htm>. No texto de janeiro, Veja colocava como "atrasados" justamente aqueles que criticam a globalização ? como fez FHC na França.
Esse "desmascaramento" ideológico que Veja vem realizando de maneira mais acentuada a partir de 11 de setembro talvez não deva ser considerado, em si, algo ruim. Todos os veículos de comunicação tem uma determinada posição ideológica que mais lhe favorece e, ao assumir isso de maneira clara, Veja acaba rompendo com a hipocrisia de se dizer imparcial. Os veículos de comunicação de uma maneira geral se beneficiaram muito com as altas contas publicitárias que surgiram com as privatizações ? de bancos, distribuidoras de energia, empresas de telefonia etc. Que a revista assuma de vez seu posicionamento político-ideológico e a defesa de seus interesses particulares. Mas que não venha mais com a conversa mole de imparcialidade e isenção.
(*) Antropólogo e editor-chefe da revista Com Ciência <www.comciencia.br>. E-mail <rae@unicamp.br>