Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O celular, a mídia e os institutos de pesquisa

ELEIÇÕES NA FRANÇA


Leneide Duarte, de Paris

O celular, o papel da imprensa e os institutos de pesquisa de opinião deram o tom de todas as discussões políticas na França, nesses últimos dias agitados, depois do choque do 21 de abril.

Desde o início da noite daquele domingo, os franceses acordaram de uma certa indiferença relativa à política com a reedição de maio de 68, com novas tecnologias e novas palavras de ordem. Milhares de jovens foram para as ruas protestar, apelar a uma resistência nacional. O celular, esse meio de comunicação fetiche dos jovens, mostrou que é mais do que um simples gadget para saber das novidades, marcar encontros entre amigos, bavarder sem compromisso. Ele ocupou um papel de rede de comunicação, extraordinariamente eficiente, como pager ou como telefone, ao ser utilizado pelos jovens parisienses e de todas as grandes cidades francesas para mobilizar os amigos a irem para as ruas em passeatas anti-Le Pen, imediatamente após o anúncio da ida do candidato do Front National para o segundo turno. Uma nova forma de comunicação hiper-eficaz para grandes ? manifs ? instantâneas! Logo depois das 8 da noite de 21 de abril, assim que as estações de TV anunciaram o surpreendente resultado das eleições, dezenas de milhares de jovens se reuniram na Place de la Bastille para dizer ? não ? a Le Pen e à extrema-direita. Nos dias que se seguiram, todas as cidades viram milhares de jovens ? lycéens ? caras-pintadas, indignados, tomarem as ruas para dizer que vão resistir à ameaça de lepenização do país.

Muitos dos que foram às ruas ainda nem votaram (o voto é aos 18 anos) ou porque não têm idade ou porque se abstiveram. Na faixa étária de 18-24 anos, o abstencionismo foi de 40%. Depois da indiferença que mostravam em relação às eleições presidenciais, eles ficaram assustados quando viram que não votar também é um ato político que pode trazer conseqüências graves. Nas manifestações, caras pintadas mostravam o susto de quem despertou de um fim de semana de sol primaveril com um soco na cara. "Um raio" que caiu sobre as cabeças de todos, como se expressou Jospin, ao anunciar que assumia as responsabilidades da derrota e se retirava da vida política. Slogans curtos como J?ai honte, Non passaran, Non au F-Haine (um trocadilho entre a palavra ódio que soa como a letra N da sigla Front National, FN) e belas frases surgiram da criatividade dos jovens movidos pelo estupor da passagem de Le Pen ao segundo turno:


** F comme fascisme, N comme nazisme

** Blanc, noir, café au lait, tous Français

** Nous sommes tous des immigrants


Com a habitual irreverência, os jovens franceses irados levavam cartazes em que pediam "Votez escroc, pas facho" (votem no escroque, não no fascista), numa alusão aos escândalos financeiros de que Chirac é acusado e aos quais não responde na Justiça por ter imunidade como presidente. Outro dizia: "É melhor um voto que fede que um voto que mata" ("mieux vaut un vote qui pue, qu?un vote qui tue"), em referência à necessidade de fazer uma frente republicana suprapartidária, unida contra a extrema-direita.

Em Toulouse, uma das cidades mais ativas na organização dessas passeatas, diárias desde 21 de abril, um grande cartaz feito artesanalmente dizia: "Teu relógio é suíço, teu carro é japonês, tuas roupas são americanas, teu café é africano, teu arroz é asiático, teus algarismos são árabes e ousas dizer que teu vizinho é estrangeiro". O xenofobismo de Le Pen combatido com humor e inteligência.

Nenhuma pesquisa previu

Le Pen no segundo turno foi um choque para todos os franceses pois nenhum instituto de pesquisa apontava esse risco. Todos, sem nenhuma exceção, davam Jospin à frente com vários pontos de diferença. Nem mesmo o voto útil à gauche pensou em fazer pois achava que no primeiro turno votaria no PC, na Liga Comunista Revolucionária, na Luta Operaria, no Partido dos Trabalhadores (que junto com o outro partido de extrema-esquerda, o Partido Radical de Esquerda, no primeiro turno fez mais de 14%) e no segundo (com outros vindos de Chevènement) se uniria contra a direita (Chirac) votando em massa no PS para eleger Jospin.

Até um bizarro comitê chamado "Si j?avais su" chegou a ser criado, com o aval de pessoas como Marie-Claire Mendès-France, Leon Schwartzenberg e Michel Polac para solicitar, através de um recurso ao Conselho Constitucional, a anulação das eleições. Eles alegam que os franceses foram enganados e induzidos a votar de maneira despreocupada, o que seria diferente se soubessem que Le Pen estava em segundo lugar nas intenções de votos. "O bom funcionamento da democracia eleitoral foi comprometido", disse Marie-Claire Mendès-France. Segundo o advogado desse comitê, no dia das eleições, até Chirac demorou a acreditar que Le Pen despontava como o segundo colocado. O presidente da República continuou por um longo tempo a redigir seu discurso noturno atacando o programa de Jospin.

Os institutos de pesquisa se defendem ? pela primeira vez, na França, as pesquisas puderam ser publicadas na véspera das eleições. Explicam que o eleitor de Le Pen não declara o voto. E que não têm culpa se os despreocupados eleitores se dispersaram em diversos partidos de esquerda. Para se ter uma idéia do nível de déjà vu do encontro Chirac-Jospin, o Libération titulou "Um duelo sem surpresa" o gráfico da pesquisa publicada em 20 de abril. Nela, Chirac aparecia com 19,5% das intenções de votos, Jospin com 18% e Le Pen com 14%. Não é de admirar que o resultado da apuração tenha sido comparado à queda de um raio. E no domingo (28/4), Le Figaro divulgou um levantamento do Instituto Ipso que dá a Le Pen 26% das intenções de voto para o segundo turno, convocado para 5 de maio.

A ira santa contra os institutos de pesquisa e os comunicadores encarregados de fazer a campanha dos candidatos como se fossem um produto foi desencadeada com dezenas de artigos de intelectuais e artistas no Le Monde e no Libération. Agora, a grande mobilização nacional é o dia 1? de maio (quarta-feira), para mostrar que os que não querem ver o país dos direitos humanos e da filosofia das "luzes" nas mãos de racistas xenófobos passam por cima de suas diferenças (muitas vezes enormes) e votam em Chirac.

A passeata do 1? de maio é organizada por todos os partidos politicos, ONGs, estudantes, associações e todos os que querem combater a ameaça da extrema-direita. Não será um frente pró-Chirac mas uma frente anti-Le Pen. Para garantir o sucesso da grande manifestação, a imprensa está totalmente engajada, não somente noticiando os preparativos mas também detalhando (e detonando) o programa do Le Pen. A grande passeata (manif, para os parisienses) sairá da Place de la République e se dirigirá à Place de la Nation, passando pela Place de la Bastille.

Imprensa no banco dos réus

Apesar de pesquisas não-oficiais darem uma vitoria folgada a Chirac no segundo turno, a França nunca mais será a mesma. Coisas impensáveis até o dia 20 de abril começam a acontecer. O presidente de direita será eleito com o voto da maior parte da esquerda unida numa frente antifascista. A política francesa perde um homem da envergadura do primeiro-ministro Lionel Jospin, que anunciou em 21 de abril que se retira da vida pública. Apontado como um estadista, sério, digno, competente, sem nenhuma história de corrupção no currículo, faltou ao protestante Jospin o carisma para empolgar os eleitores jovens, os desempregados e os idosos assustados com o crescimento da violência em todo o país. Depois do terremoto, os socialistas estão começando uma revisão de sua ação recente para descobrir como chegar mais perto dos eleitores nas eleições legislativas de junho.

Enquanto isso, os jornais e os jornalistas (da TV e da imprensa escrita) sofreram um verdadeiro linchamento público. Seriam os grandes culpados pelo crescimento da extrema-direita com o noticiário exagerado sobre a insegurança e a violência na França. Esse discours sécuritaire, martelado nas últimas semanas de campanha pela mídia e por Chirac, foi uma excelente serviço prestado à campanha de Le Pen. Cada matéria dos jornais das 8 da TV sobre violência, assalto ou morte de policiais representava alguns pontos para Le Pen, que defende a volta da pena de morte e a construção de mais prisões.

Os jornalistas também se deleitaram em demonstrar que Jospin e Chirac eram a mesma coisa, que os programas eram quase iguais (e não eram, óbvio), que os dois não eram suficientemente contundentes contra a insécurité e a delinqüência ? a grande preocupação atual dos franceses. Diziam que Chirac era mentiroso e ladrão (num programa chamado Les guignols de l?info, que parodia os jornais televisivos, o apelido do boneco do Chirac é "Supermenteur", o supermentiroso) e que Jospin era sem brilho, sem história, não fuma, não bebe, certinho demais e, ainda por cima, foi dizer que seu programa não era socialista! Para mostrar que os programas eram muito parecidos, tinha até a gracinha de dizerem que os candidatos eram Chispin ou Josrac. Queriam algo bem diferente? Pois eis que chega Le Pen.

Desde a segunda-feira, 22/4, os editores dos jornais de TV não param de se justificar por terem dado espaço ? que eles julgam adequado e que a esquerda julga exagerado ? a um suposto crescimento de atos de delinqûência e à insegurança nas grandes cidades. "Não foi a mídia que fez a esquerda ficar fora do primeiro turno. Não fui eu que inventei Jean-Marie Le Pen. Se não tivéssemos feito o que fizemos, eu teria a impressão de me autocensurar", justificou-se Robert Namias, da TF1, cujo telejornal das 8 da noite é líder de audiência.

O problema é que ao exagerar na ênfase a assaltos e agressões a velhos e policiais, a TV leva as pessoas a uma espécie de histeria coletiva. Daí a votar na extrema-direita, que promete ação eficaz contra a violência, é um passo. A força da imagem televisiva é tal que Le Pen teve percentuais superiores a Chirac e Jospin em pequenas cidades quase "perfeitas", onde não há imigrantes, não há desemprego e nem há delinqüência.