Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O cheiro e o sangue

CASO TIM LOPES
(*)

Alberto Dines

Narcotráfico e narcoconsumo, essa a questão. Tim Lopes sabia onde se dá o encontro dos submundos, a pororoca imunda e violenta que junta facínoras assumidos e espertos, com seus cúmplices tolos. Aquele evento funk na Vila Cruzeiro não era a única feira de drogas do Rio. Favelas e periferias não são as únicas pontes onde se cruzam as marginalidades do vendedor e do consumidor.

O jornalista, ao contrário das autoridades e dos acadêmicos, tem por obrigação selecionar o que é mais flagrante e simbólico. Sua ferramenta é de impacto, restrita às evidências, não pode convertê-la em considerações sobre a fenomenologia da miséria.

Ofício de repórter é reportar fatos, ocorrências, situações. Buscar as relevâncias. Exibir o que é manifesto. Colocar o dedo na ferida. E aquele baile funk que acompanhava há algumas semanas seria amostra em estado puro da confluência entre as duas pontas do narcotráfico, o ativo e o passivo.

Ali pretendia flagrar o marketing da droga. Poderia ter escolhido outras ações promocionais dos traficantes ? como a ação junto às escolas, públicas ou privadas, com jovens pobres ou ricos. Por que preferiu essa, impossível saber, mas a opção faz sentido: a chamada cultura funk é uma dessas manias e compulsões periodicamente estimuladas pela sociedade de consumo através das quais, e a pretexto da "sociabilidade", armam-se esdrúxulas tangências entre a delinqüência e o prazer, entre contravenção e diversão, entre violência e leniência, entre perversidade e inocência.

No último Carnaval as mais nobres revistas e jornais extasiavam-se com a influência da moda funk sobre a mais popular das nossas festas. A ninguém ocorreu que a consagração de um modismo que nos EUA já caducou, aparentemente inocente, "cultural", legitimava o canal por onde a droga rola sobretudo entre os jovens. A ninguém ocorreu consultar algum dicionário para saber que funk é um coloquialismo em inglês que designa medo, terror. O verbo significa encolher-se e acovardar-se.

Tim Lopes não pretendia produzir uma tese de doutorado contra ou a favor da liberação das drogas, contra ou a favor do uso terapêutico da maconha. Certamente tinha opiniões a respeito como qualquer cidadão minimamente informado. A arrancada final da telenovela O Clone não se deve à discussão sobre genética ou à fascinação pelo orientalismo. Foi acionada por uma angústia real que domina qualquer família brasileira. As opiniões do repórter assassinado sobre a legalização e descriminalização dos tóxicos certamente seriam de grande valia porque fundamentadas na sua longa experiência como observador da realidade.

Ao pautar-se para mostrar um evento funk na periferia do Rio, Tim Lopes desprezou teorizações e interpretações, preferiu exibir com toda a crueza as duas pontas do tráfico ? a formidável máquina de venda e o consumo conspícuo de entorpecentes.

O chefe da Polícia Civil do Rio, Zaqueu Teixeira, vai na mesma linha quando afirma sem meias palavras e nenhuma sutileza: "As pessoas têm que cheirar menos. A sociedade tem que saber o que quer. Se quer diminuir a violência nas ruas, tem que cheirar menos. O Elias Maluco matou Tim Lopes mas quem financiou essa morte foram os usuários das drogas".

Os grandes cheiradores ou fumadores não estão entre os pobres que mal têm dinheiro para comer. Estão na classe média ? baixa, média, alta ou altíssima ? e não precisam ir às bocas-de-fumo para abastecer-se. Recebem a droga a domicílio, com comodidade e segurança.

Não há diferença entre os usuários dependentes e os "recreacionais", de fim de semana. Todos cheiram e todos têm as mãos manchadas de sangue. Sangue de Tim Lopes.

(*) Copyright Jornal do Brasil, 15/6/02