Tuesday, 19 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O complô do silêncio


O complô do silêncio
Pacto de sangue com ACM inclui Cartel & Pequena Máfia]


Alberto Dines



O livro Memórias das Trevas – uma devassa na vida de Antonio Carlos Magalhães, de João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, tem 766 páginas das quais cerca de 700 tratam do senador Antonio Carlos Magalhães e do carlismo, um dos fenômenos políticos-mediáticos mais importantes do Brasil contemporâneo.

Bem escrito, primorosamente investigado e documentado – por isso fascinante – Memórias das Trevas é um facho de luz, flagrante de corpo inteiro sobre os mistérios que envolvem um político que manda e desmanda neste país há quatro décadas. Com o apoio de expressivos setores da intelectualidade dita de "esquerda".

Apesar dos evidentes méritos e da crença de que no Brasil existe liberdade de expressão, autor e sua obra estão sendo vítimas da mais esmerada Conspiração de Silêncio já articulada desde os tempos da censura.

A mídia nacional e regional (com a honrosa exceção de IstoÉ), apoiada pela máquina administrativa do Senado e o governo da Bahia, jogou-se numa operação escancarada para abafar a repercussão do livro. Na semana de lançamento (20-28 de janeiro) saiu apenas uma única matéria reproduzindo as revelações do livro e traçando o perfil do seu autor, um dos mais importantes intelectuais da Bahia. E esta matéria saiu na IstoÉ [veja reprodução na seção Aspas, nesta rubrica]. Uma entrevista do autor para Valor, com duração de uma hora, saiu tão escondida, mas tão escondida que pode ser considerada como caso de estudo sobre a inocente técnica de "matar" um assunto fingindo que está sendo promovido [veja, também nesta rubrica, entrevista em que o autor comenta o episódio].

Nos demais veículos, o silêncio. Ou, quando não, material de descrédito sutilmente inserido como "fato jornalístico" mais relevante do que o próprio lançamento da obra: insinuações de que a editora Geração Editorial foi financiada pelos adversários de ACM, depois a barragem de releases sobre um livro impresso pela gráfica do próprio senador para desancar seu desafeto, o senador Jader Barbalho. Solertes manobras para enfiar Memórias das Trevas dentro do contexto da disputa pela presidência do Senado.

Mentira: o livro está sendo escrito há alguns anos e resulta de uma luta que Joca vem travando há três décadas contra o carlismo, conforme está amplamente documentado ao longo das suas 766 páginas.

Quando Mario Sergio Conti revelou num trecho perdido de seu Notícias do Planalto que havia um pacto de sangue entre ACM e uma das iminências pardas de Veja, hoje badalado colunista de oposição (pág. 108, linha 24), não poderia imaginar que estava desnudando e iniciando o desmonte de uma das mais comprometedoras relações entre fonte e veículo na moderna imprensa brasileira. Longe de beneficiar o leitor, ao longo de 20 anos o pacto Veja-ACM serviu para dar cobertura às andanças de ACM no período mais importante da sua incrível ascensão, dando-lhe a aura de triunfo, inexpugnabilidade e eficiência para esmagar adversários e jornalistas independentes.

Este inocente pacto de fidelidade, estendeu-se a 90% da mídia por força de dois poderosos vetores conjugados: a consolidação do Cartel Brasileiro de Mídia articulado em torno do Grupo Globo e, graças a isso, o fortalecimento do grupo que então controlava Veja, hoje incrivelmente entranhado não apenas na mídia impressa (semanal e diária) como na internet e até em fundações culturais. Temos assim a justaposição de poderosos interesses politico-empresariais do Grande Cartel com as perversidades da Pequena Máfia, diabólica engrenagem de promoção e silêncio centrada em torno da figura de ACM.

Quando Joca revela como ACM deu a NEC de mão beijada à Rede Globo e, em troca, ganhou para a sua repetidora de TV a programação da Venus Platinada (ver no índice remissivo do livro as referências à NEC e a Mário Garnero) está revelando um dos tentáculos menos conhecidos do Cartel, porém já desmascarado neste Observatório: as grandes empresas jornalísticas regionais, com um par de exceções, são aquelas associadas às repetidoras da TV-Globo, do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Isto significa que a imprensa regional – esteio de uma sociedade informada e organizada – está atrelada aos interesses globais ou de seus parceiros. E como o faturamento de uma repetidora estadual de uma das maiores redes da TV mundial é incomparavelmente maior do que o de jornais regionais, pode-se afirmar que a nossa imprensa regional funciona de facto como satélite dos interesses políticos, pessoais, empresariais e hegemônicos da Globo e seus apaniguados [sobre o assunto, veja abaixo remissão para o artigo "Mídia, eleições e seus descontentes"].

Resta perguntar: como explicar a participação de respeitáveis jornalões como a Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo, Jornal do Brasil e um semanário com a força de Veja neste complô contra um livro de tamanha importância? Respostas:

** O proprietário da Folha (apresentado como publisher) é amigo pessoal de ACM. A relação iniciou-se nos tempos da ditadura e consolidou-se quando ACM o informava pessoalmente sobre o agravamento do estado de saúde de Tancredo Neves, dando à Folha enorme vantagem sobre os demais jornais. ACM continua oferecendo à Folha valiosos subsídios informativos mesmo que, aparentemente, os dois estejam em campos políticos opostos [o senador, teoricamente, na base governista e o jornal teoricamente independente]. Em troca, algumas gentilezas como o sepultamento ostensivo de Memórias das Trevas ou afagos aviltantes. Como este de convidar ACM para lecionar no curso interno de jornalismo da Folha, com direito a foto em página ímpar (Folha de S.Paulo, 24/1/01, pág. A 5) – uma nódoa na formação moral dos futuros jornalistas.

** A relação ACM-Estadão é mais ideológica, menos pragmática. Mas é firme e funciona em mão dupla. ACM freqüentemente sopra insights para os editoriais do jornalão, embora o autor das tiradas seja o tal colunista do "pacto de sangue" (aliás brigado com o jornal e, por isso, vangloria-se do seu poder). O Estado de S.Paulo só se referiu às Memórias das Trevas em notas curtas na coluna de fofocas (pág. A-4).

** O caso do Jornal do Brasil é um mistério: triturado pelo rolo compressor do Grupo Globo (cujo jornal roubou-lhe alguns de seus mais famosos colaboradores), em situação financeira reconhecidamente precária, o jornalão carioca tem tudo para destacar-se do cartel e ousar posições efetivamente independentes. Como aliás está fazendo IstoÉ. cuja situação não é das mais agradáveis. As críticas do JB à Globo são tímidas, seu comportamento no caso de Memórias das Trevas e de seu protagonista, até o momento, é lamentável. O que faz supor que ACM é dono de algumas varinhas de condão para resolver problemas até agora irresolvidos.

** A Editora Abril por um lado está amarrada à Folha no provedor UOL, uma relação complicada que já esteve perto do rompimento (a Folha, por sua vez, está amarradíssima ao Grupo Globo no Valor, um projeto que parecia vitorioso por antecipação e que, quase um ano depois, está longe disso). Mas a Abril precisa da Globo para resolver problemas relacionados com a sua infeliz operação de TV. Além disso, mexer agora em ACM significa quebrar o gentleman’s agreement ora em vigor no patronato jornalístico. Significa também levantar o véu sobre o passado, sobretudo sobre as relações do senador com as pessoas que comandaram a revista por tanto tempo.

Resta perguntar: o que está acontecendo com o brilhante grupo de opinionistas de esquerda, heróis da resistência, hoje a serviço de O Globo e Época? Calar-se no lamentável episódio de Laços de Família vá lá – intelectual não gosta de tratar de novela. Mas ignorar este formidável trabalho jornalístico e calar-se diante da monumental radiografia do protótipo do caudilho de direita é perturbador. Onde estão os bravos comentadores da mídia que gastaram tanto espaço para enaltecer Notícias do Planalto? A luz verde agora está vermelha?

Estes são mais alguns elementos a serem acrescentados a um eventual apêndice da futura reedição de Memórias das Trevas.


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