Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O debate, as palavras e as utopias

PRESIDENCIÁVEIS NA TV

Nelson Hoineff (*)

Há um belo filme do cineasta português Manoel de Oliveira em cartaz nos cinemas brasileiros. Chama-se Palavra e Utopia e discorre sobre a perseguição ao padre Antonio Vieira pela Inquisição portuguesa, na segunda metade do século 17.

Aos 93 anos, Manoel de Oliveira é talvez o mais velho entre os cineastas em atividade. Consagrado no seu país e no mundo, já viu tudo, já fez quase tudo. Quem procurar identificar uma marca de estilo que lhe seja mais forte, vai bater no desprezo do veterano artista pela imagem. Pode parecer paradoxal, vindo de um cineasta. Mas é extraordinariamente lúcido quando se considera que o essencial é a construção do discurso. Para Oliveira, o que vale é a palavra. A imagem aí está porque, no cinema, não há como evitá-la.

O que, visto de perto, nada mais é do que uma opção estética ganha contornos bem mais abrangentes quando observado em contexto. O que o velho cineasta está dizendo é que o cinema, sendo o espaço artístico da imagem, também o é da palavra. Se um é hegemônico sobre o outro, não é tão fácil estabelecer. No caso mais geral, pode-se entender um filme sem que o vejamos ? desde que ouçamos os seus diálogos; fica bem mais difícil, no entanto, se fizermos o contrário.

Assim é a televisão. Quando é utilizada como um "papel de parede em movimento", lá está ela, cintilante no canto da sala, como uma janela aberta para um mundo que de vez em quanto faz por merecer uma olhadela. E, no entanto, a família é capaz de jantar "ouvindo" a novela das 8 sem perder o fio da meada, mas poucos se arriscariam a tirar o áudio e conversar de frente para a imagem. Essa prerrogativa a televisão também tem, por exemplo, num debate entre candidatos à presidência da República.

Vem indiscutivelmente dos hoje tão célebres encontros Nixon vs. Kennedy a identificação da importância que a imagem na TV pode dar a expressões, gestos e maneira de vestir. O que às vezes não se percebe é que tal coisa complementa, mas não substitui, o conteúdo. Não fosse por isso, poucos deixariam de votar em Vera Fischer para presidente do Brasil.

Resenhas esportivas

O debate da Bandeirantes teve o mérito de lembrar essa evidência, ainda que por meios transversos. A gravata do Garotinho era mais bonita do que as outras e o contraste com o azul do cenário o favorecia. No entanto, poucos têm dúvida de que foi ele o maior derrotado. Não lhe faltou a luz adequada, faltou-lhe a substância. Lula, por sua vez, debruçava-se demais sobre a mesa. Sua cabeça ficava mais baixa que a dos adversários. Qualquer diretor iniciante procuraria evitar isso. E no entanto as pesquisas o apontam como o vencedor do debate. O público preocupou-se menos com a postura de seu corpo que com a postura de suas convicções. Alguém realmente se surpreende com isso? Talvez os próprios candidatos e alguns dos que cuidam de suas imagens.

No desastroso processo de escolha dos vices ? do qual pelo menos Ciro demonstra agora amargo arrependimento ? muito de falou da importância da presença feminina. Sabe-se hoje muito mais sobre esse debate do que sobre as idéias, por mais básicas que sejam, de cada um dos vices ? que têm todos uma possibilidade estatística enorme de vir a governar o país. Aparências quase sempre iludem, mas há coisa muito pior: com freqüência elas escamoteiam a importância do conteúdo.

A sutileza contida na imagem televisiva ? a edição maliciosa, o simples semblante tensionado ? pode ser, como tem sido, um fator importante para decidir o voto do eleitor. Mas não é ela que vai determinar a decisão do votante. Se o eleitor estiver determinado a votar em quem lhe garantir um emprego, é de conteúdo, não de aparências, que ele está falando. Debates em televisão servem justamente para estimular o conteúdo, mas a tensão que se cria para garantir o equilíbrio dos detalhes ? a pressão dos assessores atentos ao que acreditam ser o perigo das intenções encobertas ? acaba colaborando para o seu esvaziamento. Por isso, ao longo de quase três horas, não se tocou em itens essenciais para o país, que vão da segurança pública à política de comunicações, por exemplo. Concentrou-se no detalhe, desviando-se a atenção do geral. Não se enxergou o óbvio ? que, segundo Nelson Rodrigues, só os gênios são capazes de ver.

Com a experiência de quase um século sobre os ombros, Manoel de Oliveira acredita que o texto dos Sermões do Padre Antonio Vieira possa ser um instrumento mais adequado do que a reconstituição grandiloquente de sua trajetória para levar emoção à platéia. Hollywood pensaria de maneira diferente. Hollywood teria público, diriam os marqueteiros, e Manoel de Oliveira, não. A diferença está em que o público dificilmente saberia do que tratam os Sermões.

O que as pesquisas mostram cada vez com mais clareza é que o eleitor, quando ouve a televisão, não está apenas em busca de belas vozes e quando a vê não se contenta com rostos bem maquiados. Se o eleitor não estivesse em busca de substância, não se daria ao trabalho de sintonizar o debate, que de resto é mesmo meio chato; ficaria vendo as resenhas esportivas que o rodearam, na esperança de saber de que jeito Romário vai estrear no Fluminense.

(*) Jornalista e diretor de TV