AMERICANOS FICHADOS
Raquel Paiva e Muniz Sodré (*)
Aconteceu há pouco tempo numa agência bancária situada na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, no Rio de Janeiro. A porta giratória foi travada na passagem de um cliente que, obediente à praxe, tirou do bolso o celular, as chaves, mas continuou impedido de entrar, por excesso de meticulosidade do guarda ou…do mecanismo da porta. Irritado, aos berros, pôs-se a tirar a roupa até ficar apenas de cueca.
Quem quiser pesquisar a tentação de se apelar para atitudes tão extremas, pode fazer a experiência de adentrar, por exemplo, a agência do Banco do Brasil no 27? andar do Shopping Rio Sul, também no Rio. O cliente permanece por instantes no interior de uma caixa de vidro, provavelmente blindado, sem qualquer possibilidade de comunicação com o exterior, até que se aproxime um vigilante que depois de uma inspeção, o libera. "Ou não!", como diria o cantor popular. A depender da cara do recém-chegado, o vigilante pode aproximar-se com a mão sobre a coronha do revólver e fazer exigências tais, capazes de suscitar as ditas reações extremas de um cidadão irritado.
Veredicto claro
Esses dois relatos vêm a propósito do imbróglio, alimentado pela imprensa fluminense e paulista, da retaliação empreendida pelas autoridades alfandegárias brasileiras contra os visitantes norte-americanos. Poucas vezes se viu, ao redor de um fato tão miúdo, tamanha agitação ou debate de tal proporção em que tomavam ou tomam parte jornalistas, intelectuais de nomeada, autoridades governamentais, pessoas do povo, entrevistas, leitores com suas cartas e outros.
Um piloto de linha aérea norte-americana acabou dando razão aos nacionalistas mais exaltados, ao traduzir com o dedo médio em riste o desdém com que a arrogância imperial trata os povos abaixo do Equador. Foi detido, multado e mandado de volta com toda a sua equipe. "Muito que bem", diria o coronel Ponciano Azeredo, personagem de José Cândido Carvalho (O Coronel e o Lobisomem) ou possivelmente secundaria a frase recente de alta autoridade: "Ele pensou que aqui fosse a casa da Mãe Joana!"
Os que condenavam a medida detiveram-se geralmente em aspectos de ordem técnica ou econômica. Um conhecido intelectual paulista esgrimiu ponderações lógico-semânticas sobre o significado de reciprocidade, para chegar à conclusão, ainda que sobre premissas nem um pouco claras, de que a atitude recíproca seria uma outra coisa. O prefeito carioca protestou com argumentos de que a medida, por discriminatória, prejudicaria o turismo do Rio. E assim por diante. Na maior parte dos casos, as opiniões simplesmente dividiam-se emocionalmente entre condenações e aplausos.
Não se viu nenhuma argumentação razoável sobre o significado simbólico dessa nova "barreira" alfandegária. Talvez porque não se tenha publicado na íntegra o arrazoado do juiz que sentenciou o fichamento desses visitantes em particular. O fato, porém, é que de uma maneira geral a sentença parece ter "lavado a alma" de um público-leitor cansado de se informar no jornal de cada dia que, uma vez mais, o Estado-Nação tem de se curvar, em questões estratégicas, aos desígnios de organismos financeiros internacionais guiados pelos ventos de um país endividado até a raiz dos cabelos e sujeito aos desatinos do mais absurdo ou caricato chefe de Estado dos tempos modernos.
Ao mesmo tempo, há o que não se sabe por informação direta, mas que se "sente" por indireta experiência de vida: a discriminação visceral do poderoso Norte contra o Sul. E, na verdade, isto é confirmado pela imprensa americana, como acaba de fazer o jornal Los Angeles Times, ao chamar o presidente Lula de "patriota radical" por ter simplesmente pedido a Bush que os EUA dêem aos brasileiros o mesmo tratamento que dispensa aos 27 países isentos do fichamento na entrada.
O que disse mesmo o jornal? "Essas nações, diferentemente do Brasil, têm uma história excelente de cidadãos portando os documentos adequados para entrar nos EUA". O veredicto é claro: não tendo "história excelente", o Brasil "não merece entrar para a lista dos 27". Pior ainda, o texto do Los Angeles Times justifica o insulto do piloto Dale Hersh com seu dedo médio em riste, ressignificado como "dedo travesso de protesto".
Coisa do passado
Isto não é de agora. Não é possível que alguém já tenha varrido da mente a imagem do ministro das Relações Exteriores do governo passado tirando duas vezes os sapatos em alfândegas norte-americanas, para provar que não escondia um artefato explosivo. Ali, foi o Brasil que tirou os sapatos. Há muito de tristemente indigno nisso tudo. Não é difícil perceber que, do ponto de vista da alma popular, pouco importam os detalhes técnicos do fichamento (o que fazer com os dados, o tempo de espera para a identificação, os alegados prejuízos para o turismo etc.) ou as sutis diferenças entre reciprocidade e retaliação. O que importa de fato é um sentimento, ainda que mínimo, de dignidade coletiva ou comunitária.
A pequena barreira alfandegária levantada pela sentença de um juiz interiorano, mesmo que seja fadada a uma vida curta, tem a força de certos pequenos gestos ? desses que, a exemplo do dedo médio em riste, são capazes de provocar reboliço. Não se trata do político, nem do econômico, nem do administrativo, mas do simbólico, ou seja, disto que só se faz escutar quando se partilha ainda de espírito comum, o mesmo que perpassa tanto os pequenos grupos sociais quanto a "comunidade imaginada" chamada Nação.
Agora, o que tem a ver a identificação de americanos com o controle das agências bancárias no Brasil? Recordemos o episódio do cliente que ficou de cueca. É possível associá-lo àqueles que são obrigados a retirar as calças, além dos sapatos, durante a inspeção. Isto já aconteceu com preclaros intelectuais brasileiros, assim como, recentemente, com um sisudo professor-titular da Sorbonne, velho conhecido de acadêmicos brasileiros, na certa vítima de sua nacionalidade francesa, que é atualmente malvista nas alfândegas do novo Império.
Mas a questão ainda não é esta. Os constrangimentos na entrada das agências bancárias nacionais deveriam indicar para uma imprensa mais analítica ou mais cívica que a violência moral das alfândegas é equivalente à das portas dos bancos. Lá, existe o pretexto do terrorismo; aqui, o do assalto. Em nenhum dos dois casos, as barreiras previnem de fato a catástrofe. São incertos os caminhos do terror, assim como os assaltos a bancos acontecem ao arrepio das medidas de segurança. A única certeza que se tem é a de que o correntista do banco, contribuinte de impostos, folha corrida exemplar será posto em suspeita, constrangido, bloqueado. Em outras palavras, a alfândega migrou dos portos de entrada para as portas cotidianas das ruas, confundido o cidadão comum com a comunidade do terror.
O verdadeiro terror, este contra o qual a mídia não nos adverte, é mesmo a concretização cotidiana de um princípio da incerteza, segundo o qual, de acordo com os físicos, é impossível calcular simultaneamente a velocidade e a posição de uma partícula e, segundo Jean Baudrillard, "é a mesma coisa quanto à impossibilidade de avaliar ao mesmo tempo a realidade e a significação do acontecimento na informação, de distinguir as causas e os efeitos em tal processo complexo, o terrorismo e o refém (na síndrome de Estocolmo) ou o vírus e a célula (na patologia viral) ? tão impossível quanto separar sujeito e objeto na experimentação microfísica". A incerteza infiltrou-se em todos os domínios da vida, daí a urgência psicossocial de uma "hiper-segurança", que ao mesmo tempo instaure e exorcize o nosso próprio terror.
Todo esse aparato dissuasivo do terror é, no fundo, uma função inútil. A imprensa contribui para naturalizá-lo ao tornar visíveis apenas os seus aspectos técnico-administrativos. Seu verdadeiro serviço cívico seria mostrar o quanto somos constrangidos no dia-a-dia por toda essa parafernália que de fato não nos protege contra nada ? nem o imprevisto da bala perdida, nem o aleatório dos assaltos e do terror. Por isso, em todo esse imbróglio das barreiras alfandegárias, o que há mesmo de real e de importante (se houver) é a persistência de um sentido de agregação nacional, de comunidade própria ampliada, que os neoliberais nos diziam ser coisa do passado.
De um lado, a comunidade discriminatória e puritana do Império; do outro, a gente de fenótipos escuros, com cara de árabe, destinada a terminar deixando os sapatos e as calças. No meio, o dedo em riste, como em dia de jogo do Fla-Flu no Maracanã. Aqui pra vocês, ó!
(*) Professores da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro