ARMAZÉM LITERÁRIO
Autores, idéias e tudo o que cabe num livro
RESENHA
Leneide Duarte
A revolução virtual: o mercado, o ciberespaço, a consciência, de Pierre Lévy, tradução de Maria Lúcia Homem e Ronaldo Entler, Editora 34, 191 páginas
Interatividade, virtualidade, ciberespaço, cibercultura e a nova sociedade gerada pelas novas tecnologias são objeto constante dos estudos, conferências e livros do filósofo francês Pierre Lévy, professor do Departamento de Hipermídia da Universidade de Paris VIII. Entre suas obras destacam-se A inteligência coletiva (1994), O que é o virtual (1995) e Cibercultura (1998).
O novo livro de Lévy, cuja edição brasileira será lançada em abril, chama-se A revolução virtual: o mercado, o ciberespaço, a consciência. Nele, o professor desenvolve suas idéias sobre virtualidade e o admirável mundo novo que está surgindo com a cibercultura, da qual é um dos maiores entusiastas. Em seu novo livro Lévy, expressa a convicção de que a tecnologia e a cibernética vão levar os homens a um paraíso terrestre onde as ideologias, fronteiras e países serão coisa do passado. Aliás, ele já adverte no prefácio que o livro "é um canto de amor ao mundo contemporâneo e ao futuro que ele traz em seu seio".
Lévy despreza as ideologias e reduz tudo à tecnologia, que por si só criará um mundo ideal do qual ele se faz profeta. Em um trecho do livro, quando fala da aventura da consciência planetária ele é categórico: "Certamente, ainda restam ?países?, ?culturas identitárias?, ?oposições ideológicas?, guerras civis, ditaduras. Mas acreditamos nisso cada vez menos. São apenas signos de retardamento cultural. Em algumas décadas, no máximo um século, tudo isso terá desaparecido".
Ao expor sua visão de futuro, Lévy se mostra simplista e ingênuo, sobretudo quando, ignorando as realidades política e econômica que movem os países desenvolvidos, ele prega a livre movimentação de cidadãos pelo planeta, com a absoluta liberdade de que gozam os capitais financeiros para evoluir de um país a outro. Ele pergunta: "Por que os capitais podem se deslocar sem entraves em direção aos investimentos mais lucrativos enquanto as pessoas não têm o direito de se estabelecer livremente nas zonas mais bem-sucedidas?" E, como um cidadão do mundo rico e desenvolvido, cujos governos estabelecem a cada ano leis mais restritivas à imigração, ele questiona: "Se somos solidários com os pobres verdadeiramente, devemos acolhê-los, mais do que apontar esse ou aquele bode expiatório ou jogar-lhes esmola de longe, sem querer senti-los perto de nós. (… ) Eles querem migrar em direção a terras pacíficas. Acolhamo-los. Esse mundo quer fazer turismo, quer, ele também, conectar-se com as redes, como nós. Quer consumir, como nós. Quer trabalhar. Quer captar os sinais dos satélites. Quer fazer amigos por toda parte. O ato de compaixão, a ajuda real não se mede pelos discursos denunciadores, pela crítica, pela acusação: mede-se pela hospitalidade."
Esse discurso solidário e humanitário parece desprovido de qualquer sentido realista. Se as fronteiras do Primeiro Mundo fossem totalmente abertas, onde morariam todos os milhões de imigrantes, atraídos pelo sonho de prosperidade e acesso à alta tecnologia dos países ricos? Como achariam um emprego digno em países com altas taxas de desemprego? Que escolas seus filhos freqüentariam? Que hospitais os acolheriam? Com que dinheiro se alimentariam os recém-chegados ao paraíso primeiromundista? Nada disso parece preocupar Lévy no seu delírio humanitarista.
Ingênuo e deslumbrado
Lévy prega o que ele chama de "uma nova política planetária", que consistiria em dar a todos os seres humanos o direito de imigrar para onde bem entendesse com a terra transformada em uma única morada, sem fronteiras. Essa nova política planetária brotará, segundo se depreende, como uma conseqüência da cibernética e da tecnologia que encurta as distâncias e faz do planeta uma única morada sem as fronteiras que hoje são "as ruínas, ainda de pé, de um mundo em revolução". Para o filósofo, todo homem deveria ter o direito de escolher sua sociedade. E ele questiona: "Pela política ou pelo deslocamento geográfico? A revolução francesa ou a revolução americana? Mudar de governo ou mudar de país? A tomada de poder ou o êxodo? A solução do futuro é a segunda. O poder está ao lado da emigração. Não se reforma um Estado, deserta-se dele. E é no deserto que se descobre a Lei. Do Êxodo à Conquista do Oeste, a fuga dos povos em direção à outra margem foi mais eficaz e talvez mais significativa que sua revolta".
Quem vai convencer os governos da Alemanha, do Canadá, da França, dos Estados Unidos, da Inglaterra e da Holanda que os curdos, os afegãos, os latino-americanos, os turcos, enfim, todos os cidadãos do mundo devem ser bem-vindos à festa da alta tecnologia e do bem-estar social? "O corpo não tem nacionalidade. Todos os corpos têm uma única humanidade. Não somos de um país, somos de um período do espírito humano", assegura o filósofo.
Em alguns trechos do livro, o leitor não pode deixar de se lembrar de Paulo Coelho e de outros conhecidos best sellers, tal o número de obviedades que o filósofo destila de seu computador. Como essa, por exemplo: "Os humanos aumentam tanto mais rápido e potentemente seu domínio de interação quanto mais eles estão interconectados". Ou outra: "A inteligência humana trabalha na conexão. Conexão com os outros, o longínquo, o além, os mortos, o passado, o futuro. Várias dimensões que não existem enquanto tais nos animais".
O livro, é claro, não é ele todo um apanhado de obviedades e idéias absurdas. Há momentos de interesse, quando Lévy analisa as transformações que a informática vem realizando no mundo. Deve-se destacar a tradução muito bem-feita, que se preocupa em explicar palavras que em francês têm duplo sentido e que, traduzidas, perdem sua riqueza significante. Mas em suas análises da atual configuração político-social do mundo ? e em suas profecias ? Lévy soa ingênuo e excessivamente deslumbrado com o admirável mundo novo que a globalização, o liberalismo e a informática vêm construindo.