SOCIEDADE MULTIMÍDIA
Marco Antonio Rodrigues Dias (*)
Artigo em versão provisória. Este texto foi elaborado para servir de base e roteiro à apresentação oral feita em 8/11/2002 no 2? Seminário Internacional de Comunicação de Brasília (DF), reunido entre 7 a 9 de novembro sob o tema central "Jornalismo e cidadania na internet: a notícia em mão dupla". As referências contidas nesta versão serão mencionadas mais claramente por ocasião da revisão para publicação definitiva. Grifos em vermelho da redação do OI.
INTRODUÇÃO
Um dia, junto a um brejo, diversas rãs se deram conta da proximidade de um predador. A única solução para escaparem do ataque seria a de subirem em umas árvores ali localizadas. Ato contínuo, os animais se dirigiram às árvores, mas, logo, as lamúrias se multiplicaram, várias rãs, desesperadas, lamentavam o fato de que a tarefa seria impossível de ser executada. Mais se lamuriavam, mais dificuldades todas encontravam para subir nas árvores. Mas, houve uma exceção. Uma das rãs, sem pestanejar, entregou-se à tarefa e, em poucos minutos, estava no topo de uma árvore, livre do predador. No dia seguinte, passado o perigo, todas manifestavam surpresa com a "performance" da colega e buscavam explicações. Foi quando se deram conta de que esta rã era surda.
Esta história eu a ouvi de uma reitora (Anne Marrec) do Quebec, Canadá, numa reunião na Ilha Maurício, duas semanas atrás [meados de outubro/2002]. Há quatro dias, eu a contei em Cuiabá e afirmei que, face ao momento que vive o Brasil, e diante de comentários que se espalham na imprensa nacional e internacional, dando conta das dificuldades que enfrentarão Lula e sua equipe, eu dizia esperar que Lula fizesse como a rã, não desse ouvido aos maus augúrios e transformasse em realidade o sonho de construção de uma sociedade melhor em nosso país.
Na fase dos debates, um cientista alemão presente, profissionalmente muito competente, mas tomando a história no primeiro grau, como costumam fazer os alemães para quem as palavras e os conceitos são interpretados literalmente, fez uma intervenção dizendo que a história não podia ser real, porque se a rã fosse surda, não teria ouvido a informação sobre a presença do predador. O comentário provocou risos e debates e uma pedagoga, também tomando a história no primeiro grau, declarou enfática ? e com razão evidentemente ? que ser surdo não significa ser incapaz. Tive de dizer que aceitava os comentários, mas lhes pedia, por favor, que se ativessem ao significado que pretendi dar à fábula. Vivemos um momento importante, é necessário que todos sejam otimistas e colaborem para que a utopia da construção de uma nova nação se realize.
No entanto, este episódio me fez refletir. Em primeiro lugar, como oradores ou palestrantes, devemos sempre tomar cuidado com as histórias que contamos, com as referências que fazemos. E o princípio é válido para todos os que comunicam. Há que se recordar que a comunicação não é um ato unilateral. É bom insistir no velho princípio tão caro aos que estudaram, em profundidade, o processo da comunicação, de que, na comunicação mais importante que a intenção do comunicador é a forma como recebe a mensagem seu destinatário. Por ignorarem este princípio, muitos publicitários viram perder-se todo seu esforço em campanhas caras que tiveram resultados opostos aos que se procurava alcançar.
Aliás, este princípio não foi descoberto pelos teóricos da comunicação, nem pelos publicitários. Na Idade Média, os filósofos escolásticos já diziam que quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur, ou seja tudo o que se recebe é recebido à maneira do receptor.
As mudanças operadas na área de comunicação nas últimas décadas são enormes, mas há certos princípios que são permanentes. Um deles é o da importância do receptor. Podemos ir adiante e dizer que, em realidade, hoje mais que nunca, o processo de comunicação somente se executará plenamente se os dois polos participarem em condições de igualdade do processo, se houver interação, se um dos polos não se restringir a uma posição passiva. Em outras palavras, apesar de toda a modernidade, informação pode existir unilateralmente, comunicação, para ser válida, deve ser entre iguais, deve ser feita num processo de ida e de volta. . E aos estudantes de comunicação aqui presentes, permito dar um conselho: entusiasmem-se com a modernidade, utilizem as novas tecnologias, mas, durante os cursos, não pensem que os clássicos perderam o sentido, não deixem de verificar a importância dos estudos sobre os princípios básicos da comunicação. Eles são permanentes, ainda que os meios utilizados sejam diferentes, tgenham maior amplitude, sejam mais universais. E, por favor, não se esqueçam: comunicação não pode funcionar em sentido único?.
Matéria para estudos de arqueologia
Mas, evidentemente, há o outro lado da moeda. Não receio em declarar que duvidei muito sobre se deveria aceitar o convite para participar deste seminário. Há pouco mais de trinta anos, em 1970, fui nomeado pelo então reitor da UnB, Caio Benjamin Dias, para, como chefe de departamento, reformular o curso de comunicação da UnB, tanto no que diz respeito à sua organização, incluindo busca e nomeação de novos professores, como na preparação de um novo curriculum que respondesse, ao mesmo tempo, às exigências da legislação e que desse à UnB uma posição de vanguarda nos estudos e na formação na área de comunicação, incluídos aí o jornalismo, rádio, televisão e cinema, relações públicas e publicidade, campos aos quais, logo acrescentamos o de comunicação para o desenvolvimento.
Naquela época, recém saido de uma série de experiências no campo do jornalismo impresso e no da radiodifusão e tendo concluído, pouco antes, em 1968, um curso de pós-graduação, no nível de terceiro ciclo, na França, enfrentei o desafio pensando que dominava completamente todos os temas que estariam circunscritos a esta tarefa. Evidentemente, olhando, hoje, com recuo, vejo que havia muito de presunção nesta atitude, mas a verdade é que o entusiasmo da juventude, a reunião de um grupo de professores competentes, a sorte de contar com um número de estudantes altamente motivados, fez com que a experiência fosse considerada exitosa, que a UnB passasse a se destacar nacional e internacionalmente por seus programas no campo da comunicação.
Hoje, caso fosse convidado para organizar um curso de comunicação, seguramente não aceitaria ou pelo menos teria sérias dúvidas.
Recentemente, um especialista francês da área, Jean-Marie Charon, afirmou que, no início dos anos 80, na França, as escolas de jornalismo passavam uma grande parte de seu tempo a formar seus alunos para o jornalismo telemático ?a compor na tela gráficos com a ajuda de pequenos quadros de cor. E ele acrescentava: "isto pode parecer hoje um trabalho de arqueologia".
Se isto era arqueologia, que dizer da experiência que tive no jornalismo nos anos 60? Em 1959, participei de um curso prático de jornalismo, organizado pelo jornal O Diário, conhecido como o "Diário Católico", em Belo Horizonte, e pela então Universidade Católica de Minas Gerais. Ao final do curso, o jornal decidiu aproveitar três alunos em sua redação. Era um deles. Que tem a ver a produção de um jornal, hoje, com a do final dos anos 50 e início dos anos 60? Naquela época, era comum solicitar ao "foca", o jornalista que se iniciava na carreira, que fosse buscar na oficina uma calandra. Qual estudante de comunicação, hoje, terá informação do que era uma calandra, um linotipo, uma rotativa Marinoni?
Na época, para que os jornais fossem bem escritos e usassem a técnica importada dos Estados Unidos, após a abolição do nariz de cera, havia redatores, os copidesques [copy desks], que resumiam matérias de diversos jornalistas para compor um texto integrado que, dentro do espaço determinado pelo redator-secretário, usasse as ténicas do lead, sublead e corpo da matéria. Que foi feito dos copidesques nos jornais de hoje? Dentro do jornal, a classe mais forte eram os gráficos. Com o fim dos linotipos e início da impressão em off set, que foi feito dos gráficos?
A verdade é que o setor da comunicação foi um daqueles em que mais se constatou o fenômeno do desaparecimento de profissões e do surgimento de outras, em particular no campo da documentação, onde hoje, empresas organizadas, devem, necessariamente, dispor de especialistas de banco de dados, de conceptores de sistemas e de produtos. Exige-se também dos jornalistas muito mais do que se requeria 30 anos atrás. Os comunicadores, agora, enfrentam desafios enormes, pois, caso decidam exercer a profissão de maneira independente e socialmente útil, deverão, necessariamente, além de dominar o conteúdo e de manter uma atitude ética, acompanhar a evolução das técnicas, sem o que serão superados pelos fatos e pelos concorrentes.
Desafios e busca de novos caminhos
Há dois dias, ao chegar a Brasília, quis saber do resultado das eleições intermediárias nos Estados Unidos. Nada mais simples. Liguei o computador e conectei-me com internet. Como assinante da edição impressa do Le Monde, tenho direito, toda manhã, a uma síntese do que virá mais tarde na edição impressa. Em poucos instantes, fiquei sabendo que os eleitores americanos, em nome dos cidadãos do mundo inteiro, decidiram que esperanças de solução para o problema do Oriente Médio se tornassem ainda mais fracas e que a iminência de uma guerra estúpida no Iraque ficassem mais fortes. Não é difícil de concluir também que a tarefa da nova equipe governamental brasileira será ainda mais difícil do que todos pensaram inicialmente.
O fato é que, estando longe de casa, sou informado do essencial pelo jornal de minha escolha. Mas, os jornais enfrentam uma forte concorrência. No momento em que uma conexão se estabelece, o provedor, seja Wanadoo na França, seja Yahoo, Altavista, Terra, seja qualquer outro do mesmo gênero, abre uma página onde estão as notícias principais do dia e muita publicidade é apresentada. Para resistir a esta concorrência, um jornal como o Le Monde põe à disposição de seus assinantes dossiês, arquivos completos, sobre os mais variados temas. O mesmo faz a revista inglesa The Economist. Para seus leitores que viajam, um jornal como o New York Times anuncia a colocação à disposição de verdadeiros fac-símiles em que, qualquer assinante, em qualquer parte do mundo, poderá acessar o jornal e ter, em sua tela e numa impressora, uma cópia completa de qualquer página do jornal, ou se quiser, do jornal inteiro.
Já não se trata daquele procedimento que não deu certo, inclusive no Brasil, quando os jornais selecionavam algumas matérias e as colocavam em internet, com uma apresentação padronizada. Hoje, segundo li em um jornal há pouco tempo, um dos chamados motores de pesquisa, Google creio, utilizando a inteligência artificial, prepara-se para lançar, ou talvez já tenha lançado, um jornal eletrônico elaborado mecanicamente. Através da busca de várias fontes, jornais e agências de notícias em particular, o computador montaria, de maneira automática, um texto imediatamente colocado à disposição de qualquer internauta, em qualquer parte do mundo. Que tipo de objetividade terão estas notícias? Como impedir a reprodução de notícias falsas? Como ficam os direitos autorais dos jornalistas? De outra parte, para as empresas jornalísticas, como concorrer? Que linguagem adotar? Que métodos utilizar além daqueles que publicações como Le Monde e The Economist já se servem há algum tempo?
Hoje, todos os diagnósticos são concordes. Se as primeiras edições eletrônicas dos jornais diários decepcionaram, a razão estava em que se contentaram em adaptar a página escrita à imagem do computador. Além do mais, os jornais se limitavam a dar notícias que, depois, eram encontradas, com o mesmo tratamento, nas edições impressas. Hoje, os jornais propõem serviços exclusivos, dão ou vendem acesso a seus arquivos, tentam fazer como o New York Times e começam a colocar em linha suas edições locais visando o público cativo que se encontra ausente de sua cidade, estabelecem links com outras fontes, como faz o resumo diário do Le Monde. . Alguns tentam uma ação interativa, dando a seus leitores a possibilidade de participar de debates entre eles e com a redação.
A verdade é que a evolução das novas tecnologias está pondo em questão os fundamentos da atividade jornalística, deixando sem rumo muitos editores, sem falar, evidentemente, dos professores de comunicação que devem se perguntar que tipo de profissional devem preparar. As mudanças dizem respeito às técnicas de pesquisa e de apresentação da informação, da relação entre o jornalista e o leitor, da reestruturação industrial e comercial das empresas. Quem ousar prever o futuro em todos estes campos, pode saber que cometerá, com toda certeza, erros monumentais. As modificações na pesquisa, na produção e na difusão da informação são, pois enormes. Nesta matéria, hoje, há mais perguntas que respostas.
Hoje, os líderes sem contestação da difusão de informações por internet são estes motores de pesquisa. Na França, pelo menos, desde 1999, eles suplantam os sítios de informação em linha criados pelos jornais franceses. Dados de 1999 indicavam que eram acessados por mais de dois milhões de internautas contra 200 mil de jornais como Le Monde e Libération e 700 mil para Les Echos. Nas estatísticas de utilização de internet, o primeiro lugar cabia aos e-mails, o segundo à busca de informações.
Em abril de 1997, o Financial Times fez menção a declarações de Peter Drucker, através de uma tele-conferência à qual assistiam chefes de empresas em Londres. Para este futurista, "cinqüenta anos antes da primeira revolução da informação ? a que foi criada por Gutenberg com a invenção da imprensa ? a literatura se resumia à Bíblia e aos clássicos romanos e gregos. Num átimo de tempo, ela se enriqueceu com Shakespeare e Cervantes. Lendo-se os documentos do século 15, pode-se descobrir que foram os efeitos desta revolução sobre a vida das pessoas os que verdadeiramente tiveram impacto sobre seus contemporâneos. Isto encorajou as pessoas a ler. Puderam oferecer-se textos aos quais somente os nobres endinheirados tinham tido acesso anteriormente. Um manuscrito da Bíblia custava três anos de aluguel de uma propriedade de tamanho respeitável. Aí chegou a Bíblia impressa. Ela custava o equivalente a uma semana de salário.
Hoje, internet é planetário. O telefone portátil encontra-se em toda a parte. No Senegal, país pobre, em qualquer aldeia do interior mais afastado encontra-se um aparelho. Na semana passada, estava em Maurício, uma ilha no meio do Oceano Indico, com uma população pobre mas não miserável, onde a presença deste aparelho nos mercados, nos ônibus, nas ruas já não assusta ninguém.
Informação e conhecimento
Internet dá em princípio aos jornalistas um instrumento poderoso. Antes, tinham acesso apenas a bancos de dados dos quais o jornal era assinante. Agora, o leque é muito mais amplo. Em compensação, obtém-se uma pletora de informações muitas vezes inadequada às necessidades do jornalista.
Além do mais, nem sempre é possível separar o joio do trigo, o que é informaçao, o que é propaganda enganosa, havendo sitios que propagam como informação o que de fato é uma promoção comercial. Isto significa, numa visão deontológica, que os jornalistas não podem ficar fechados no escritório, consultando apenas internet. Tem de sair às ruas, têm de checar os fatos.
Não há que confundir informação com conhecimento. Informação é um conjunto de dados ao qual se tem acesso. O conhecimento presupõe uma capacidade de aprendizagem e uma capacidade cognitiva.
O saber, o conhecimento e a informação tornaram-se, hoje, os elementos motores da sociedade mundial. Na área política, esta distinção é essencial para permitir ao leitor de se situar frente às manipulações de toda ordem. Na área econômica, a distinção fundamental hoje se efetua entre quem concebe os produtos industriais ?o que é o mais importante- e sua produção. A concepção é diretamente ligada à pesquisa e ao desenvolvimento baseado sobre a ciência e a condificação do saber teórico, enquanto que a produção é muito menos.
Recentemente, tive acesso ao discurso do engenheiro Weber Figueiredo, paraninfo da turma de engenharia que se formou na UFRJ, no dia 13 de agosto de 2002. Dizia o paraninfo:
"A banana é um recurso natural, que não sofreu nenhuma transformação. A bananada é = a banana + outros ingredientes + a energia térmica fornecida pelo fogão + o trabalho da vovó e + o conhecimento, ou tecnologia da vovó. A bananada é um produto pronto, que eu vou chamar de riqueza. E a vovó? Bem, a vovó é a dona do conhecimento, uma espécie de engenheira da culinária.
Agora, vamos supor que a banana e a bananada sejam vendidas.Um quilo de banana custa um real. Já um quilo da bananada custa cinco reais. Por que essa diferença de preços? Porque quando nós colhemos um cacho de bananas na bananeira, criamos apenas um emprego: o de colhedor de bananas.
Agora, quando a vovó, ou a indústria, faz a bananada, ela cria empregos na indústria do açúcar, da cana de açúcar, do gás de cozinha, na indústria de fogões, de panelas, de colheres e até na de embalagens, porque tudo isto é necessário para se fabricar a bananada. Resumindo, 1kg de bananada é mais caro do que 1kg de banana porque a bananada é igual banana mais tecnologia agregada, e a sua fabricação criou mais empregos do que simplesmente colher o cacho de banana da bananeira.
Agora vamos falar de outro exemplo que acontece no dia-a-dia no comércio mundial de mercadorias. Em média: 1kg de soja custa US$0,10 (dez centavos de dólar), 1kg de automóvel custa US$10, isto é, 100 vezes mais, 1kg de aparelho eletrônico custa US$ 100, 1kg de avião custa US$1.000 (10mil quilos de soja) e 1kg de satélite custa US$50.000.
Vejam: quanto mais tecnologia agregada tem um produto, maior é o seu preço, mais empregos foram gerados na sua fabricação. Os países ricos sabem disso muito bem. Eles investem na pesquisa científica e tecnológica. Por exemplo: eles nos vendem uma placa de computador que pesa 100g por US$250. Para pagarmos esta plaquinha eletrônica, o Brasil precisa exportar 20 toneladas de minério de ferro. A fabricação de placas de computador criou milhares de bons empregos lá no estrangeiro, enquanto que a extração do minério de ferro cria pouquíssimos e péssimos empregos aqui no Brasil. O Japão é pobre em recursos naturais, mas é um país rico. O Brasil é rico em energia e recursos naturais, mas é um país pobre. Os países ricos, são ricos materialmente porque eles produzem riquezas. Riqueza vem de rico. Pobreza vem de pobre."
País pobre é aquele que não consegue produzir riquezas para seu povo. Se conseguisse, não seria pobre, seria rico .
Mais adiante dizia o paraninfo:
"Creio que agora posso falar do ponto principal. Para que o nosso Brasil torne-se um país rico, com o seu povo vivendo com dignidade, temos que produzir mais riquezas. Para tal, precisamos de conhecimento, ou tecnologia, já que temos abundância de recursos naturais e energia. E quem desenvolve tecnologias são os cientistas e os engenheiros, como estes jovens que estão se formando hoje.
Infelizmente, o Brasil é muito dependente da tecnologia externa. Quando fabricamos bens com alta tecnologia, fazemos apenas a parte final da produção. Por exemplo: o Brasil produz 5 milhões de televisores por ano e nenhum brasileiro projeta televisor. O miolo da TV, do telefone celular e de todos os aparelhos eletrônicos, tudo é importado. Somos meros montadores de kits eletrônicos.
Casos semelhantes também acontecem na indústria mecânica, de remédios e, incrível, até na de alimentos. O Brasil entra com a mão-de-obra barata e os recursos naturais. Os projetos, a tecnologia, o chamado pulo do gato, ficam no estrangeiro, com os verdadeiros donos do negócio. Resta ao Brasil lidar com as chamadas ?caixas pretas?.
É importante compreendermos que os donos dos projetos tecnológicos são os donos das decisões econômicas, são os donos do ?dinheiro?, são os donos das riquezas do mundo.Assim como as águas dos rios correm para o mar, as riquezas do mundo correm em direção ao países detentores das tecnologias avançadas."
Na mesma linha, o embaixador Ricupero, secretário-geral da UNCTAD, a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, costuma dizer que " ?hoje em dia, o que realmente faz a diferença entre o sucesso e o fracasso é a capacidade de competição baseada na tecnologia, na ciência, no conhecimento".
Ricupero cita a Coréia do Sul como exemplo. Enquanto nós exportamos, até hoje, produtos pouco elaborados, a Coréia do Sul exporta computadores, semicondutores, peças para computadores, aparelhos para comunicação, ótica e química. Mas eles fizeram isto graças à educação.
Uma nova civilização
Devemos notar, então, que, hoje mais que nunca, está tudo interligado. Aquela separação comum em muitas universidades entre o que é meu campo e o que é o seu, numa tentativa de transposição para a realidade social que é integrada, de uma divisão burocrática, cada vez tem menos sentido. As mudanças dos últimos trinta anos se referem aos modos de vida, à maneira como se estrutura a governança mundial e nacional e ao desenvolvimento de uma comunicação cada vez mais virtual. Estamos, de fato, vivendo uma nova civilização.
A relação com o trabalho se modifica, as empresas passam a se organizar de maneira diferente, indivíduos tornam-se mais autonomos, as indústrias culturais se transformam.
Mas, isto não se faz sem problemas. Umberto Eco, que não revela nenhum preconceito contra a presença marcante da nova tecnologia, chama a atenção para o crescimento das desigualdades no acesso à informação.
O PNUD ?Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento- dá destaque ao fenômeno que é universal. Em sua versão de 1999 do World Human Report, esta organização debateu, como elemento central, a questão das novas tecnologias e da globalização. O "julgamento final" é rigoroso. Para o PNUD, é evidente a marginalização dos países pobres dentro da economia global dominada pelas tecnologias da informação. Limitemo-nos, por enquanto, a citar apenas um exemplo: com 19% da população mundial, os 29 países da OCDE ?Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico ? o clube dos países ricos, tem 91% dos utilizadores de Internet. Mais de 50% destes utilizadores estão nos Estados Unidos, que representam apenas 5% da população mundial.
Durante a Conferência Mundial do Ensino Superior, em Paris, em 1998, foi a delegação dos Estados Unidos que solicitou a inclusão da referência à necessidade de se eliminar a diferença de acesso dentro dos países, além daquela que era mencionada por todos de diferenças entre as nações. Os dados são conhecidos, não vou inundá-los com dados estatísticos que são encontrados com facilidade nas páginas web do PNUD e de outras organizações. Notemos apenas que, além das diferenças no acesso, há uma concentração enorme na produção. Oitenta por cento da produção de software educativo (logiciel) está nos Estados Unidos. Se alguém quer falar de ética em internet, a primeira preocupação deve ser com a eliminação da discriminação ao acesso, com a supressão da fratura digital.
Além disso, entramos numa fase em que, agora mais que nunca, a informação se transformar em mercadoria. Mas, quais são suas condições de produção? Qual é seu valor?
O comércio mundial das novas tecnologias de informação e comunicação era de 600 bilhões de dólares em 1996. Já havia alcançado a quantia de 2 trilhões de dólares no início do ano passado (2001), volume concentrado essencialmente na área dos países membros da OCDE.
As indústrias do conhecimento que sãatilde;o a educação, a pesquisa e o desenvolvimento, a informática, os media sofrem todas com este processo. Todos sabem, por exemplo, que windows não é o melhor sistema de exploração, mas quase todos o compram porque é o sistema mais difundido. Por isto, não é fácil de passar a utilizar um sistema como o Linux, ainda que seja melhor e gratuito. O desenvolvimento das novas tecnologias veio acompanhado de um reforço dos direitos de propriedade intelectual e, em particular, das patentes. E isto não é acidente. Países industrializados, em particular os anglo-saxônicos e mais especialmente os Estados Unidos, tiveram êxito em suas investidas dentro da OMC para fortalecer regras neste campo que visam a consolidar seu domínio total. Quem trata de ética em internet, tem que analisar questões como esta que estão vinculadas ao domínio das relações internacionais. Tudo está interligado.
Serviço público
Nota-se então que, hoje, no mundo inteiro desenvolve-se uma discussão sobre a questão do serviço público em todas as áreas, em particular nas de educação, saúde e meio ambiente, mas também na área de comunicação, cultura, turismo e outras. O debate é provocado basicamente por dois fatos:
1. Os estabelecimentos encarregados dos serviços públicos passaram a desenvolver produtos em concorrência com operadores e produtores privados e à missão de serviço público substituiu-se pouco a pouco, em particular na Europa, uma noção de serviço universal ou de acesso universal, até agora não muito bem precisa.
2. O outro fato consiste na ação da OMC (Organização Mundial do Comércio), criada em 1995, que, até agora, serviu basicamente para consolidar a posição dos países industrializados.
Hoje, está na moda a volta a Theillard de Chardin a quem se deve a noção de noosfera. Segundo os intérpretes modernos do pensamento de Theillard, não são mais as instituições religiosas e políticas que vão permitir, no futuro, ultrapassar uma nova etapa na evolução da humanidade, mas as novas tecnologias de comunicação. Permitindo desligar os espíritos da materialidade, estas deveriam contribuir a sua coletivização. Chegariamos então a uma espécie de inteligência coletiva, onde, em consequência, o acesso seria universal.
Dirigindo-me, como faço hoje, a uma platéia onde vejo vários filósofos, muitos deles colegas de ordem de Theillard de Chardin, vou abster-me de avançar na exploração de suas idéias. Mas, na esfera prática, no domínio político, numa área com implicações de toda ordem, inclusive na definição, hoje e agora, hic et nunc, de políticas, muitos são os que defendem a idéia de que a comunicação, a exemplo da educação, deve ser considerada como um bem público, com o acesso garantido a todos em condições de igualdade.
Mas, de saída, faz-se a pergunta: o serviço universal diz respeito a tudo na área de comunicação ou apenas a alguns aspectos? Todas as tecnologias ou apenas algumas delas?
Há aí matéria para muito debate e temas diversos para serem explorados pelos pesquisadores. Não é por falta de matéria a discutir e campos a definir que professores de Ciências Sociais e de Comunicação perderão seu emprego. Vejam bem: seguindo a risca as normas da OMC, caso decidam financiar ou caso decidam manter o financiamento aos media públicos, os Estados poderão encontrar-se no banco dos réus, acusados em função da concorrência ilegal com respeito às multinacionais da informação. Que se cuidem, pois, a Radiobrás, como todas as estações de rádio e de televisão públicas do sistema nacional.
Isso não é brincadeira nem paranóia. A OMC foi criada em 1995 à margem das Nações Unidas e com poderes de que nenhuma organização multilateral dispõe. A OMC, entidade pouco transparente, dispõe de poderes executivo, legislativo e judiciário. Tem um organismo, um verdadeiro tribunal, cujas decisões se impõem aos tribunais nacionais, o que significa que, num país como o Brasil, predominam inclusive sobre decisões do STF. Entre 2000 e 2001, a OMC desenvolveu discussões sobre a liberalização dos serviços de comunicação. O Brasil informou que havia se antecipado às decisões da OMC e que havia liberalizado tudo o que era possível, mas assinalou que havia pontos incontornáveis. Assim, em função da legislação brasileira, não seria possível autorizar a participação de estrangeiros no controle e propriedade dos meios de comunicação.
Segundo um livro recentemente publicado na França (Agnès Bertrand e Laurence Kalafatides ? OMC, le pouvoir invisible, Fayard, 2002), japoneses, norte-americanos e europeus protestaram, abriu-se uma pendência e a OMC decidiu que o Brasil deveria modificar sua legislação. Há pouco, isto foi feito, mas, em lugar nenhum mencionou-se que havia entre esta modificação na Constituição brasileira e a decisão da OMC, uma relação de causa e efeito. Quem quiser acreditar que foi mera coincidência, tem o direito de fazê-lo. Estamos numa democracia. Quem quiser acreditar em Papai Noel também pode seguir vivendo num mundo de fantasia.
Referindo-se, então, à segunda revolução da informação, a que vivemos hoje, graças ao desenvolvimento das novas tecnologias, Drucker é enfático. Para ele, seus maiores efeitos não serão sobre a economia ou o comércio, mas sobre a educação. Em sua opinião ?ele falava em 1997- em trinta ou quartenta anos, a educação terá uma aparência e um conteúdo completamente diferente das dos dias de hoje.
Não é fácil acompanhar Drucker em todas suas especulações. Notemos, no entanto, que, segundo ele, após os câmbios na educação, outras mudanças ocorrerão: a primeira delas fazendo com que os Estados-Nação desapareçam. Em seguida, as grandes cidades como conhecemos hoje, uma invenção do século 19, deixarão de existir. No século 19, as pessoas começaram a mudar, a mover-se. Hoje, são as idéias que se movem. Graças a isso, as empresas vão fundir-se num proceso de concentração antes inimaginável. Em seguida, alianças, acordos, joint-ventures, que os governos não terão como controlar, vão criar novas realidades. Finalmente, em todas as partes, surgirá um imenso exército de pequenos investidores estimulados pelo acesso a uma informção planetária.
Mas, o mais importante nas afirmações de Peter Drucker é aquela segundo a qual a revolução nas comunicações nada tem a ver com a revolução industrial. Esta provocou mudanças materiais. A revolução da informação provoca mudanças de ordem intelectual (ver "Théorie Gutenberg et la révolution informatique", Courrier International, 10-16 abril 1997, baseado em artigo do Financial Times? pág. 32).
Peter Drucker pode ter razão e seguramente está certo em muitos pontos. Há diferenças entre a revolução industrial e a revolução da informação. Mas, há pontos semelhantes, o primeiro deles consistindo na sua utilização para consolidar o poder de minorias e, de outro lado, sua possibilidade nem sempre executada de servir ao desenolvimento social e à construção de uma sociedade mais justa e equitativa. A realidade, aqui como lá, é que as forças econômicas têm capacidade de adaptação bem superior ao dos segumentos sociais para apropriar-se seja dos instrumentos de produção, seja dos mecanismos que geram o saber.
Ética em duas escalas
Prosseguindo, então, no exame deste mundo novo, onde desenvolvem-se reflexões sobre o bem público, a necessidade do acesso de todos ao saber, a necessidade de se defenderem os interesses gerais da humanidade. Aí discute-se a questão ética.
Observemos, desde já, que, de novo, com o impulso dado pelas decisões da OMC ou de acordos do tipo NAFTA (ALENA) entre Estados Unidos, Canadá e México, as regulamentações em curso ou em elaboração atualmente se fazem em benefício dos grandes grupos, com a diminuição visível da capacidade de ação dos Estados. Assiste-se, no mundo inteiro, a uma transferência da capacidade de regular do Estado, da Sociedade, ao mercado. Como resultado disto tudo, pode-se dizer que hoje, mais que nunca, o domínio norte-americano no mundo se implementa mais pelo pensamento que pela economia, o primeiro reforçando a segunda.
Neste panorama, a discussão sobre questões éticas cresce de importância. Não sou especialista na matéria, mas diria, utilizando um jargão economista ou economicista, que o tema pode ser tratado de maneira micro ou macro.
Na própria internet, pode-se encontrar uma pletora de documentos sobre o tema. Na França, por exemplo, um documento foi elaborado recentemente para distribuição entre professores do ensino secundário e, acredito, do primário. Ali mencionam-se práticas não éticas, como a da colocação à disposição do público de sítios pornográficos ou racistas.
A revista Newsweek (28/10/2002) menciona o fato de que, atualmente, a cada semana, cerca de 2 milhões de jogadores acessam mais de 1.800 cassinos virtuais, com a perspectiva de que estes internautas percam, somente este ano, US$ 3,5 bilhões, quantia três vezes superior à renda gerada pelos sítios pornográficos.
Alega-se que as comunicações por internet podem favorecer a coleta de informações pessoais e criar arquivos sobre cada indivíduo que passam, então, em função da utilização que fazem de internet, a ser acossados por publicidades de produtos capazes de motivá-lo. Devo assinalar que os sítios brasileiros, em particular de alguns jornais paulistas e cariocas, são dos mais irritantes no mundo inteiro. Basta você entrar no sítio, para que um anúncio indique que você é o feliz ganhador de um concurso, com direito, então, a comprar um produto que vai resolver seus problemas existenciais e dar satisfação a todas as suas necessidades.
O documento mencionado refere-se também aos deveres dos professores que devem adquirir o recuo necessário para aconselhar e julgar e devem estimular os estudantes a se conscientizarem dos problemas éticos que se colocam na utilização de internet. Os estudantes, por seu lado, devem aprender a avaliar a fiabilidade das informações, devem buscar fontes diversificadas e comparar as informações, devem citar as fontes de suas pesquisas e, em consequência, não copiá-las, apresentando-as como se fossem considerações originais. Devem, além disso, recordar-se de que há outras fontes, além da rede web, onde podem encontrar-se informações. As mediatecas e bibliotecas, os livros em particular, lembra o documento são importantes e devem ser utilizados para se checar a informações disseminada por internet.
Um outro trabalho (Ethique et régulation sur internet, de Isabelle de Lamberterie), publicado no boletim da Associação dos Aposentados e dos Amigos do CNRS (l2 de junho de 1996), já dizia que o fenômeno internet transformou a rede de redes num formidável instrumento de comunicação aberto tanto aos profissionais como ao grande público.
A autora menciona então os riscos de abusos no campo da liberdade de expressão através do novo meio e que se configuraria através de ações que entrem em contradição com valores da sociedade, como a ordem pública e os bons costumes. Um desses valores é o que diz respeito à necessidade da proteção da vida particular dos indivíduos. "A liberdade de fazer circular dados nas redes não pode prejudicar o direito das pessoas de se opor à coleta, ao tratamento ou à circulação de dados que lhe dizem respeito. A Comissão nacional de informática e Liberdades do governo francês decidiu que a colocação em internet de informações nominativas dos pesquisadores deveria ser submetida previamente a seu acordo".
Outro ponto mencionado diz respeito à ordem pública e aos bons costumes. A autora recorda uma decisão do congresso norte-americano, que em 1996, aprovou a lei da decência, prevendo uma multa de mais de 200 mil dólares e de dois anos de prisão pela difusão em internet de textos ou imagens julgadas obscenas. Na China, segundo a mesma autora, uma legislação repressiva prevê a interdição de textos que possam tumultuar a ordem pública. É necessário recordar que nos Estados Unidos, após a decis&atildatilde;o dos congressistas, imediatamente uma organização entrou com um recurso dizendo que esta lei era inconstitucional.
Mas, como regulamentar a questão e como impedir eventuais abusos?
Em primeiro lugar, dever-se-ia aplicar a internet princípios da legislação ordinária e que tratam do tema, por exemplo, aplicados aos meios de comunicação audio-visual. Isto, porém, não é suficiente e, por isto, segundo a autora, parece indispensável "lançar iniciativas internacionais que levem a uma cooperação adequada para evitar que a decentralização dos serviços esvazie as regulamentações nacionais de seu contéudo".
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(*) Consultor da Universidade das Nações Unidas, ex-diretor da Divisão de Ensino Superior da Unesco (1981-1999), ex-vice-reitor da Universidade de Brasília (1976-1980)