LEITURAS DE VEJA
Marcelo Barcelos (*)
O presidente do grupo Abril e editor da revista Veja, Roberto Civita, na edição de 9 de janeiro, a qual trazia capa com a cantora Cássia Eller, causou uma boa e uma má impressão com seus escritos.
A má impressão é que ele não representou à altura o dono da coluna que usou ? "Ensaio", regularmente assinada por Roberto Pompeu de Toledo. A boa impressão foi o fato de Civita apresentar um país até então desconhecido, mesmo nos mapas, mas que ele insistiu em chamar de Brasil, comprovando seu dom de "Alice". Um país caminhando para a perfeição, resolvendo todos os seus problemas. Buscou uma comparação com a década anterior para provar suas mais fabulosas constatações de democracia e estabilidade econômica e social. Defendeu que esse país, cuja existência definitivamente desconheço, já chegou a um patamar de equilíbrio e tem rumo definido ? agora basta mantê-lo.
Seria menos fantasioso comparar o Brasil à ficção sociológica de George Orwell em seu livro 1984 do que ao país inventado por Civita. Tendo definido Estado como um conjunto de estamentos e instituições que, de certa forma, regulam com seus ordenamentos a relação entre governantes e governados ? sendo os primeiros a classe exploradora, detentora dos bens de produção, inclusive a produção cultural ?, Orwell pode ser classificado como vanguardista e Civita como dadaísta, ou seja, este invalidou com suas palavras qualquer relação entre o pensamento e a expressão, distanciando-se assim da realidade nacional.
É, até certo ponto, difícil de acreditar que alguma pessoa consiga a façanha de identificar o Brasil que o orgulhoso editor da Veja apresentou em seu texto. Ao mesmo tempo, seu ponto de vista fica menos espantoso depois de rever edições anteriores da revista Veja. Para ficar em poucos exemplos, cabe citar a que trazia em destaque a governadora do Maranhão, Roseana Sarney, com o título "Fenômeno Roseana". Menciono o artigo do jornalista Alexander Goulart, no Observatório da Imprensa da segunda semana de dezembro, na qual alertava para a semelhança entre a edição sobre Roseana e a que trazia Collor de Mello, com destaque para os seguintes trechos:
(Veja, 23/03/88) "… Fernando Collor de Mello, 38 anos, sem assinar uma única grande obra em seu estado, conquistou a simpatia dos alagoanos e popularidade no Brasil inteiro num fenômeno tão curioso quanto inesperado. À frente do segundo menor estado brasileiro, Fernando Collor figura hoje entre os governantes mais festejados do país…"
(Veja, 14/11/01) "Ela tinha tudo para não emplacar no time das estrelas nacionais. Sua carreira política começou há apenas onze a nos, quando já beirava os 40, enfrentou eleições pelo PFL, um dos partidos menos populares do país, mas Roseana Sarney é o fenômeno da temporada."
Um fato foi pouco explorado na matéria sobre a governadora, mas de extrema relevância para a população: Roseana governa um estado em que a família Sarney detém há não menos que 35 anos o domínio oligárquico, em que a maioria absoluta da população vive abaixo da linha da pobreza. É um dos mais pobres do país, senão o primeiro, com 62% da população ganhando menos de R$ 80 por mês.
Marx aplicado
Também justifica o posicionamento do editor da Veja uma outra edição, a que continha o título "A reinvenção do mundo", apresentando 14 pensadores de oito países respondendo perguntas acerca dos atentados suicidas de 11 de setembro e suas reais e prováveis conseqüências num século que mal começou. A questão desta vez não está na capa ou no tema principal da revista, mas na escolha de um desses 14 pensadores, Fernando Henrique Cardoso. Se são inegáveis seu talento e inteligência, o fato de aceitar discutir o tema proposto, ainda mais em nível de Brasil, mostra sua incrível capacidade de camuflar discursos. Muda-os de acordo com a necessidade, o interesse e o público. Uma retórica para falar de questões do Brasil à imprensa e ao público nacional, outra para apresentar o país a chefes de Estado e jornais estrangeiros. Claro, vez ou outra exercita seus conhecimentos sociológicos.
A pergunta "O que as mudanças no cenário mundial em 2001 significam para o Brasil?", de início, é respondida com destreza e certa cautela, mas no final FHC comete o mesmo erro de Roberto Civita, defendendo fielmente uma tradição diplomática, uma autoridade moral no exterior, uma solidez de nossas instituições democráticas, ou seja, nada condizente com a realidade. Outro ponto acerca de FHC é sua infeliz capacidade de anular a práxis, separando-a da teoria, com a agravante de ser conhecedor das mazelas sociais, bem como de suas propostas resolutivas. Com isso, qualquer depoimento seu merece ser posto em dúvida mesmo antes de ser lido ? costume parecido com o dele, de assinar sem ler.
Voltando ao artigo de Civita, este escolhe um ponto de partida para provar os avanços políticos alcançados. Menciona a década passada e a dura rotação da economia com os intermináveis pacotes econômicos e as mudanças de moeda, que pareciam ter-se resolvido com a chegada do real. O fim da terrível inflação que assolava o país fez com que o "Pai do Real" ? depois da luta pela paternidade com o atual governador de Minas ? chegasse ao Planalto. O que Civita não mencionou foi o altíssimo preço pago pela população com a paridade real-dólar e a posterior desvalorização da moeda nacional. Altíssimos também foram os benefícios que alguns receberam com a valiosa notícia da desvalorização – escândalo que envolveu nomes de confiança do governo e mesmo do próprio presidente FHC. Enquanto isso, não foram beneficiados os que tinham dívidas em moeda americana e os que faziam da importação de mercadorias sua fonte de renda, influenciando também no preço final de vários produtos.
Civita mencionou a progressão alcançada pelo Brasil em relação à década passada. Cabe recorrer a Marx. Houve mudanças reais e complexas na economia nacional, como troca de moeda, conversões, alterações nas taxas de juros, movimentações financeiras a todo vapor, atrativos para o capital volátil externo, entre outros. Mas todas essas práticas econômicas podem ser classificadas, aplicando Marx, de "economia fictícia". Esse tipo de mudança pode levar a uma estabilidade econômica, mas não social. Para Marx, "economia real" consiste em maior relação do homem com a sociedade e o meio, como trabalho e condições sociais.
Intimação de voto
Civita defendeu "o desmonte de uma economia dominada pelo Estado", justificando que a privatização seria a saída para acabar com a ineficiência, o inchaço e a corrupção das empresas estatais. A defesa rígida da privatização, bem como sua total rejeição, não é a posição correta sobre o tema. É necessária a desestatização de setores estagnados da economia, mas deve-se preservar a todo custo os setores estratégicos e os de necessidades básicas da população.
Dizer também que o desmonte da economia estatal seria a solução para o problema da corrupção é miopia política. E, tendo em vista o alcance social, o capital envolvido torna-se vicioso, já que, sem generalizar, as empresas estatais recebem investimentos mas não os aplicam ou o fazem de forma errada, deixando de cumprir seu papel com a nação.
Civita fala também de uma significativa melhora na educação, com professores bem-remunerados e melhores condições para o aluno estudar. Esse tipo de afirmação bate de frente com as greves dos profissionais da educação.
A revista semanal mais lida no país deixa claro não ter compromisso com o fato de – infelizmente ? ser formadora de opinião. O jornalismo nacional deve ser revisto, mesmo que sob a ótica dos apocalípticos da Escola de Frankfurt.
As idéias do presidente do Grupo Abril são mais do que propaganda do governo: não têm relação alguma com a realidade vivida pelos 100 milhões de brasileiros por ele "intimados" a votar na continuação deste Brasil que só ele vê.
(*) Estudante do 1? ano de Direito da UEMS, Dourados, MS