Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O dia em que a ciência virou sabão em pó

LEITURAS DA FOLHA

Tânia Bernucci (*)

Muito se tem dito sobre a guerra neste momento. Fico até culpada por pensar em outra coisa diante da gravidade da hora. Entretanto, vou tratar de outra guerra, a do texto/matéria jornalística que agoniza e busca sobreviver entre os espaços comerciais. Seriam picuinhas minhas, observações caprichosas? Mesquinha ou não, tomei as dores de um prisioneiro (confinado às páginas "de ouro" do jornal), que não pode falar e não tem advogado

Seis de março, com certeza, será um marco na história da ciência, especialmente a que é noticiada pela imprensa brasileira. A progenitora das inovações, a responsável pelos mais incríveis feitos humanos, criou mais esta: transformou-se em anúncio de sabão em pó (Omo ? o grande cientista da área porque inventou a lavagem mais branca de que se tem notícia no país) e Glória condensada (adjetivo que deriva de condensação, fenômeno da química, creio eu) do hipermercado Extra. Além disso, havia a fralda noturna, invenção importantíssima dos tempos modernos para mães, pais e bebês. O encarte "Especial Família", título da matéria do Caderno de Ciência da Folha de S. Paulo, que nesse dia ganhou um superespaço de três páginas, apresentou muitas novidades: impressora colorida, ração para cachorro, panelas tefal, ferro a vapor, TV em cores, computador, leite em pó, margarina, café embalado a vácuo, maionese light.

Primeiro fiquei indignada. Como é que o diagramador se esqueceu de raspar (raspar talvez seja um verbo pouco adequado aos tempos da evolução tecnológica. Correto seria talvez deletar, mas como insisto em ser romântica e me lembrar dos gráficos antigos, sujos de graxa, compondo letra por letra….) a palavra Ciência das páginas de anúncio? Depois pensei: será que o conselho editorial da Folha tem ciência disto? Fui mais longe: mundo vil este nosso, que reduz a ciência a sabão em pó, salame e maionese por causa da crise do papel.

Ditando moda

Aí, também me ocorreu que nenhum daqueles produtos deixava de ter o dedo da ciência. Até a calcinha avulsa de R$ 0,99 e o jeans de R$ 9,90 necessitaram de alguma tecnologia para ser desenvolvidos. Sendo assim, estão todos perdoados. Os responsáveis pela Folha têm suas razões de conceder tanto espaço à ciência diante de tamanhas invenções e descobertas, e o diagramador, mesmo distraído, vendo tanta coisa colorida e prática já incorporada ao nosso dia-a-dia, deve ter pensado que se tratava de algum fenômeno, destes que constrangem os não-físicos, químicos ou astrônomos, porque a ignorância da composição das fórmulas não permite que algo seja questionado. Tanto que uma singela dona de casa que ilustrava a capa era menor do que o óleo de soja. Transgênica ou não, isto não interessa, é caso para a ciência, talvez oculta, de alguns que, hoje, nos alimentam com o arroz e feijão das matérias de jornal, esse mesmo veículo que nunca tem espaço para a ciência pura e exata (será que ainda existe?), para a relevância de uma descoberta verdadeiramente humana, já que "científica" é uma palavra que hoje se usa no varejo.

O Caderno Cotidiano, da mesma Folha, também não deixou por menos e homenageou, no dia 11, o cotidiano da DPaschoal com a "matéria" (o termo anúncio não é pertinente, uma vez que estava também inserido no espaço editorial) de duas páginas. Foi bom, em vez de ler as hard news do momento fiquei conhecendo a Valorização do ser humano, o Compromisso com um mundo melhor e o Respeito ao meio ambiente praticados pela empresa.

A mesma Folha criou, há algum tempo, talvez numa atitude de redenção, a boa notícia, porque o que hoje é notícia ? tragédias familiares, enchentes, rebeliões, greves dos motoristas de ônibus e metroviários etc. ? não é leitura agradável ao leitor.

Acho que comecei a entender o que se passa: como a Folha e toda a imprensa brasileira vivem a crise do papel e da falta de espaço, talvez tenham optado por privilegiar os anúncios porque só através deles ? quem sabe? ? será possível tratar de assuntos mais relevantes. Este caminho avesso deverá construir uma nova tendência na imprensa brasileira, ditando uma moda: a da escrita camuflada pelo anúncio. O texto de máscara não é uma onda pós-carnaval. Ele veio pra ficar e, por trás dele, sempre haverá alguma informação ou algo novo a aprender.

(*) Jornalista