LÍNGUA & LINGUAGEM
Luís Edgar de Andrade (*)
Não é só na América do Sul que acontecem golpes de estado. Há 40 anos, quase houve um na França, embora os franceses façam o possível para esquecê-lo. Na noite de 21 para 22 de abril de 1961 a Quinta República, fundada por De Gaulle, tremeu nas bases. Faltava um mês para começarem as negociações de paz na Argélia, depois de uma guerra sangrenta, quando quatro generais, Challe, Salan, Jouhaud e Zeller, rebelaram-se, em Argel, para derrubar o govermo. O episódio ficou na história como o putsch de abril.
Em face da crise, os ministros pediram ao presidente que fizesse um pronunciamento contra o golpe, antes que os pára-quedistas desembarcassem em Paris. Discursar na TV era uma arma que De Gaulle só usava em último recurso. Nessa noite ele concordou em falar, mas havia pressa: "General, é urgente". O texto não estava pronto. Por mais longos que fossem os discursos, o grande Charles tinha o hábito de decorá-los. O primeiro-ministro insistiu: "Mas, meu general…" Ele disse aí uma frase que ficou no anedotário: "Não é porque a situação é grave que eu deva fazer um mau discurso."
Foi nessa noite que usou contra os gorilas a expressão "quarteron de généraux". Se não estou enganado, "quarteron" é uma palavra pejorativa, a que os franceses recorriam, séculos atrás, para designar tanto um quarteto como uma quartelada. No dia seguinte o France-Soir publicou um box ? ou "encadré" como dizem os franceses ? explicando a origem e o significado de "quarteron".
O uso de termos obsoletos e também de expressões populares, quase chulas, era freqüente no estilo do general. Lembro-me de que, ao receber Kruschev, de braços abertos, no aeroporto de Orly, começou o discurso com uma exclamação: "Eh bien, vous voilà!" ? equivalente a "oba, o senhor aqui!". Doutra vez, numa solene entrevista, no palácio presidencial, referiu-se à ONU, debochado, como "ce machin-là". Quer dizer, "esse troço aí".
O mais famoso dos termos medievais, ressuscitados por De Gaulle, é "chienlit" que usou, ao voltar de Bucareste, quando os estudantes dominavam Paris, em maio de 1968: "La réforme, oui! La chienlit, non!" Isto é, sim à reforma, não à bagunça. "Chienlit" significa grande desordem. Deriva de "chier en lit". Ao pé da letra, cagar na cama.
Conto isso a propósito do reboliço que o adjetivo "soez", dito por Fernando Henrique, em Tabatinga, no Amazonas, provocou na imprensa paulista. "Precisamos fazer um esforço grande para combater o terrorismo, que é um inimigo soez", declarou o presidente no dia 2 de outubro. Só que "soez", com o significado de baixo, desprezível, grosseiro, indigno, reles, torpe, vil, não é uma palavra tão difícil. Assim mesmo, a repórter da Folha que cobriu a viagem nunca havia, ao que parece, ouvido ou lido o adjetivo, pois o jornal deu, a 3 de outubro, entre colchetes, esta explicação estapafúrdia: "FHC se referia aos combatentes egípcios que lutaram contra os israelenses na região de Suez, em 1973, e atacavam seus oponentes, por meio de túneis subterrâneos, abandonados de surpresa".
Lugares-comuns
Ao debruçar-me sobre esse incidente sem importância, prefiro ver o lado positivo. O fato de a jovem repórter e o editor nacional da Folha ignorarem, no ano de 2001, o adjetivo "soez" indica que a palavra caiu em desuso. Logo ela que foi campeã de audiência nos anos de chumbo da ditadura militar, quando as ordens do dia, lidas nos quartéis, e os comunicados oficiais, distribuídos à imprensa, sempre chamaram de "inimigos soezes" os adversários do regime.
Graças a Deus, o tempo passa. Nos últimos cinco anos, conforme uma pesquisa no arquivo da Folha, pela internet, desde 1994 a palavra "soez" só apareceu três vezes, antes da frase de FHC. A 2 de junho de 1999, no artigo "Pamela, a criminosa" de Clóvis Rossi: "os eventuais inspiradores de seu soez ataque aos vereadores". A 30 de novembro de 1997, na coluna "Tempos difíceis para os tigres" de Luís Gonzaga Belluzzo: "um soez e insidioso déficit de transações correntes". E outra vez, no mesmo dia, por coincidência, numa resenha de livro, assinada por Benjamim Abdala Júnior, que citava este verso do poeta português Ruy Cinatti: "Vem ver a terra talhada pela incúria, pela soez mistura do falso e do real".
Antes de que me esqueça, "inimigo soez" e "ataque soez" são dois lugares-comuns. Pelo menos eram até 15 anos atrás. Portanto, para evitar chavões, sugiro que o presidente da República, na próxima crítica aos baderneiros, use o sonoro substantivo "soezice": ação ou qualidade de pessoa ou coisa soez. Aproveito para reclamar que "soezice" não está no Houaiss e muito menos no Aurélio. Por quê?
(*) Correspondente do Jornal do Brasil em Paris, no período 1960-65.
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