Monday, 18 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O dia em que Juruna denunciou o galinheiro

TELEJORNALISMO

Paulo José Cunha (*)

Quando o repórter Márcio Braga entrou na sucursal do Jornal do Brasil em Brasília, no fim dos anos 70, conduzindo aquele índio, todos nós ficamos curiosos. Eu mesmo não entendi nada. O quadro era surrealista demais. Num canto da redação, o índio e seu gravador. Ao lado, Márcio Braga e outro gravador. Márcio Braga perguntava em português. Juruna respondia numa língua que queria ser português mas, misturada com xavante, dava num troço parecido com sânscrito ou ídiche. Mas os dois se entendiam, sabe lá Deus como. No domingo seguinte lá estava a entrevista. Uma página inteira, ilustrada com uma bela foto do fotógrafo Zé Alberto: Mario Juruna, o índio do gravador, o cacique que se transformaria, na eleição seguinte, no primeiro índio brasileiro a conquistar uma cadeira de deputado federal pelo PDT do Rio de Janeiro.

"Onde o Márcio arranjou esse índio?" "Sei lá, o Márcio apareceu com ele aqui. Parece que achou ele lá no Palácio do Planalto. O índio queria porque queria falar com o presidente. Não deixaram, claro. Ele anda com esse gravador porque diz que branco fala e depois nega o que falou. Gravando ele garante o cumprimento das promessas. Lá no palácio o pessoal não deu muita bola, mas o Márcio gostou dele, adotou o índio. Anda dizendo que este índio ainda vai ser a sensação do Brasil".

Corta para Juruna em pleno exercício do mandato de deputado pelo PDT do Rio de Janeiro, início da década de 80. O Juruna deputado foi uma invenção de Leonel Brizola, que percebeu ali um filão de ouro inexplorado. Inteligente o índio era. Analfabeto em português, Juruna pedia a amigos como Sebastião Néry que lessem os jornais para ele e marcassem as partes em que era citado. Entregava a papelada aos assessores, como se tivesse lido tudo, aí encomendava um discurso. "Como se estivesse lendo, Juruna ia falando e pondo as folhas ao lado, uma a uma. Não lia nenhuma. Mas ia falando mais ou menos o que estava em cada uma delas", conta Néry. E falava mais ou menos o que estava escrito, já que era analfabeto. Um dia, na Itália, Néry contou a história a Ulysses Guimarães: "Que índio filho da p… Me enganou quatro anos!"

Ficamos amigos. Eu já estava na Globo, nessa época. Juruna fazia festa quando me encontrava, porque adorava sair na televisão. Na maioria das vezes não havia como colocá-lo no ar, porque não se entendia patavina do que dizia. Mas rendia imagem. E que imagem! Depois, foi melhorando a pronúncia, embora só freqüentasse o noticiário sob a ótica do folclore. De vez em quando, no meio daquele engrolado com que tentava se comunicar, saíam pérolas de pura sabedoria como esta, que soltou enquanto olhava a fila enorme de oradores desfilando pela tribuna: "Eles fala, fala, fala, fala e não vota. Aí, pára. Aí, vota. Mas não resolve nada. Aí, fala, fala, fala tudo de novo. Juruna num entende. Branco munto compricado, Parujusé" (Parujusé, tradução: Paulo José).

1985, corredor de comissões da Câmara. Minha pauta matinal já estava pronta mas, quase na hora de ir pra redação, encontro com Mário Juruna. Cumprimentamo-nos. Naquela sua voz complicada que a muito custo eu conseguia traduzir, fez uma revelação bombástica: "Galinhero" (tradução: Calim Eid, coordenador de campanha de Paulo Maluf) tinha pedido seu voto e mandara depositar uma quantia em dinheiro em sua conta. Estávamos há poucos dias da eleição indireta que elegeu Tancredo Neves. Perguntei, atarantado: ? Mas você gravaria isso para minha câmera? "Gavo, sim, Parujusé. Tudo vedade!". Liguei pra redação, expliquei que tinha um petardo de vários megatons na mão e gravei a entrevista. Foi uma dificuldade fazer aquele engrolado de voz fazer algum sentido. Fiz mil perguntas, e as respostas vinham aos pedaços, uma confusão medonha. Mas estava tudo ali: Calim Eid havia tentado comprar o voto do índio em favor de Maluf. Voei pra redação. A editora Célia Ladeira, num meticuloso trabalho, conseguiu fazer com que aquela maçaroca de fragmentos de frases fizesse sentido. Teve de botar várias perguntas minhas, gravadas em contraplano (contraplano é quando o repórter é enquadrado de frente, e o entrevistado é que fica de costas). As perguntas tinham exatamente a função de facilitar a edição.

Fui pra casa, almocei assistindo ao meu furo no Jornal Hoje e fui dormir, pois acordara, como sempre, às 4 da manhã pra fazer o Bom Dia, Brasil com Carlos Monforte. Mal adormeci, o telefone tocou. Era a Célia. "Vem pra cá agora que tá a maior confusão. O pessoal do Rio acha que você induziu o índio a dizer aquelas coisas." Preocupado, piquei a mula pra redação, expliquei tudo, mas a irritação do pessoal do Rio era grande. Disseram que, naqueles casos, por precaução, o melhor era ter usado o gerador de caracteres, ou seja, escrever as palavras da entrevista, para que as pessoas entendessem o que o índio dissera. Voltei pra casa chateado. O furo estava virando um problema. Mas a salvação viria naquela mesma tarde. Juruna subiu à tribuna e fez um discurso confirmando tudo. Discurso recheado de apartes que tiveram a mesma função das minhas perguntas: esclarecer a fala do índio, tornar as declarações compreensíveis. Nem precisou de gerador de caracteres na edição do Jornal Nacional, que abriu manchete para a denúncia.

Como não tinha cauim em casa, o jeito foi tomar um uísque pra comemorar

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>