BBC & DAVID KELLY
Nelson Hoineff (*)
Sempre que afloram tensões entre o governo britânico e a BBC surge um prematuro vencedor: o sistema que permite a existência dessas tensões.
É nesses momentos que a expressão “televisão pública” faz sentido e que o espectador britânico se dá conta do que representa a taxa que paga para ter o seu televisor ? que é o que derrama todos os anos 4 bilhões de dólares para a BBC montar os seus programas e exercer a sua independência.
Programação de qualidade, independência, serviço público. A rede pública de televisão da Grã-Bretanha desmente informação dogmática e possivelmente mentirosa do governo, que serviu como argumento para levar o país à guerra contra o Iraque e alimentou também uma sustentação falsa do governo americano, longe dali. A reportagem de Andrew Gilligan, as acusações a Alastair Campbell, as indicações de que David Kelly tenha sido a fonte, as pressões que recaíram sobre este cientista e as circunstâncias de sua morte, todo mundo sabe. As intrigas maiores que cercam o caso, todo mundo acabará sabendo. Se isso é o início da queda de Tony Blair, é bem possível. Para a sociedade brasileira, no entanto, tudo isso é pinto. O grande ensinamento está, mais uma vez, na importância que a mídia forte e independente tem para o funcionamento das instituições.
Serviço público, independência, programação de qualidade. É bastante complicado reunir e harmonizar esses três atributos. Desgraçadamente, somos obrigados a conviver com o fato de que no Brasil, no caso mais geral, a mídia eletrônica não tem conseguido lidar, mesmo separadamente, com qualquer deles. A televisão não oferece ao espectador uma programação de qualidade, não presta um serviço decente à sociedade (e na maioria das vezes presta um grande desserviço) e ainda por cima é altamente dependente tanto do Estado quanto das grandes corporações.
Com as exceções de praxe, não só a televisão como também a mídia impressa derrama-se em patéticas reverências a prefeitos e governadores capazes de lhes dar algum agrado, quando não sai em defesa de pequenos secretários, corruptos desde criancinha e espelhando isso na testa, na esperança de ver alguns favores em retribuição. Deixa de ir fundo na investigação até mesmo de balas perdidas dentro de universidades, ou de crimes que envolvam os interesses do poder, qualquer que seja a sua natureza ou o seu tamanho. A sordidez da resignação a esse triste papel embrulha estômagos, dentro e fora das redações. Definitivamente, a sociedade não está sendo atendida.
Talvez a BBC não seja capaz de fornecer pistas sobre como lidar com o mau desempenho da televisão privada brasileira, mas seguramente é um bom indicador de como um sólido modelo de televisão pública é peça essencial para o funcionamento de uma sociedade democrática. Evidentemente, não é possível reproduzir esse modelo no Brasil, a começar pela própria gênese da televisão brasileira, que nasceu acompanhando o modelo privado americano e não se afastará dele até o esgotamento técnico da noção de emissoras e redes, o que só deverá acontecer daqui a dez anos ou um pouco mais.
Em nome da sociedade
Há pouco mais de dois anos, quando o governo de São Paulo intentou cobrar um apoio compulsório da população para a TV Cultura por meio das contas de luz, o mundo quase desabou. E não era para menos: pagar por uma boa televisão pública depende do convencimento do usuário, mas sobretudo da formação de uma cultura, que envolve os três vértices: quem paga, quem faz uso do dinheiro e quem garante que essa transação seja não apenas limpa mas eficiente.
Uma televisão paga pela sociedade, administrada por ela e a seu serviço é, na verdade, uma utopia que depende da vontade política (mas não apenas dela) para acontecer. Neste momento, convivem no Brasil muitos modelos de televisão pública ? mantidas pela União, por governos estaduais, por universidades e sob forma de autarquias, fundações, organizações sociais, etc. Muitas outras estão sendo planejadas ou pelo menos anunciadas. Até mesmo o novo presidente da Riofilme, José Wilker, anunciou a montagem de uma nova rede de televisão do município, muito semelhante ao Canal Brasil, privado, que está na UTI; o município do Rio, por sua vez, já tem uma produtora, a Multirio, que desembarca sua programação em emissoras públicas e privadas. Tudo isso na mesma semana em que o Ministério da Cultura voltava a falar da TV Brasil, uma rede projetada para a distribuição de imagens brasileiras no exterior e que contaria com a participação de várias emissoras públicas.
Divagações à parte, o que todas as emissoras ditas públicas existentes tem em comum é a falta de capacidade para atuar econômica e politicamente desatreladas de quem está pagando as suas contas. O mesmo acontece, diga-se de passagem, no modelo privado. Num caso e no outro, a independência é diretamente proporcional à pulverização das fontes de receita. Por isso, aumenta na medida em que cresça a participação da sociedade nessas fontes.
Há uma estranha peculiaridade hoje na televisão brasileira, que permeia tanto o modelo privado quanto público: ela não é auto-suficiente para produzir ou comprar a programação que exibe ? e que vem a ser o único produto que está vendendo ao consumidor. Ressalvando de novo as poucas exceções, a televisão vale-se então de parcerias com modelos de produção que nem sempre guardam com ela a compatibilidade de gênios que se exige para um casamento bom ou pelo menos duradouro. Esta situação pode durar mais algum tempo, alguns anos talvez, mas não há dúvida que sua falência é irreversível. É como a velha história do otimista que está caindo do alto de um prédio e que na metade do caminho pensa: “Até aqui tudo bem”. Se isso é verdade para todo tipo de produção, é bastante claro que cresce exponencialmente e ganha contornos muito especiais para a produção jornalística.
A televisão deixa de ser um comércio ou um instrumento de propaganda para se transformar num serviço público no momento em que o público tem confiança em que isso possa acontecer ? e percebe que esteja acontecendo. O fato é que uma tensão análoga à que existe neste momento entre o governo britânico e a BBC simplesmente não seria viável hoje no Brasil. Saber disso já é um bom início. Fazer com que tal embate seja possível é um excelente objetivo a perseguir. Nem tanto pelos governos, é claro, mas pela sociedade, que é em nome de quem se está legislando.
Tony Blair e Gavyn Davies (o presidente da BBC) passarão. Mas o Estado britânico e a sua televisão pública irão sobreviver por muito tempo. Para alguma coisa a consciência disso há de servir.
(*) Jornalista e diretor de TV