Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O escritor e o não-mito

P. P. Jr.

Engana-se quem se deixa levar pelo olhar tímido e pelas palavras que se atropelam na boca de Miguel Sanches Neto. Este crítico literário, por ora convertido a escritor, é dono de um estilo rancoroso e virulento não só de fazer prosa, mas também de conceder entrevistas, como esta, na qual fala sobre seu novo livro, Chove sobre a minha infância (Ed. Record), sobre a perseguição literária que vem sofrendo e a aparente impossibilidade de um crítico ser, de uma vez por todas, analisado à parte do crítico.

Por que esta fascinação pela infância, já presente no seu livro de poesias?

Miguel Sanches Neto – Primeiro, é bom dizer que não há propriamente fascínio, porque não vejo a infância de um ponto de vista lírico, e sim crítico. Toda grande literatura dispõe de romances de formação. Chove sobre minha infância foi pensado como tal. Já o livro de poemas é uma espécie de subproduto do romance, porque muitos poemas foram escritos no mesmo período. Mas declaro aqui que meus próximos dois romances nada têm a ver com infância, um é sobre mulheres do século passado e outro sobre anarquistas.

José Paulo Paes dizia que a linguagem poética se aproximava da linguagem da infância. Percebo uma intenção sua de fazer do cotidiano infantil, quase sempre banal, algo de uma beleza crônica.

Miguel Sanches Neto – Pensei sempre o livro como uma soma de partes e de linguagens, desde a crônica até a poesia. O último capítulo, por exemplo, foi pensado como poema. A linguagem acompanha o narrador e vai evoluindo com ele, mas é uma linguagem que não quer chegar a ser totalmente adulta. O momento de passagem mais visível desta evolução é o capítulo Pátria Minha, em que há um embravecimento do narrador, que passa a escrever num estilo rápido e irritado. Falar que toda a linguagem do livro é infantil e, conseqüentemente, poética talvez seja arriscado. Acredito que há uma evolução. O banal entra neste universo porque reflete um dado ambiente. Uma vez definido o recorte seria impossível fugir da realidade que o configura.

Seu livro tem recebido duras críticas, o senhor acha que essa receptividade vem do fato de o senhor ser também um crítico?

Miguel Sanches Neto – Isso sempre pesa, porque eu passei 10 anos comentando livros e alguns encontraram o momento preciso para atacar o livro e atingir o autor – já tinham me preparado sobre isso antes de sair o livro. Eu só não esperava que o romance fosse gerar a histeria. Ninguém, em sã consciência, fica indiferente a uma crítica desfavorável, eu também me posicionei, nem sei se da melhor maneira. Agora, acho que o principal motivo destas críticas talvez seja o fato de, em sendo um livro narrado por um menino que vive num mundo semi-rural, alguns moradores convictos de um universo urbano mais pervertido não conseguirem se encontrar nele ou se sentirem negados por ele. Domingos Pellegrini disse sobre o livro algo que é exato: não é um livro para dândis. Felizmente, nada agrada a todos. Se isso acontecesse seria monótono demais. Mas tenho recebido muitos depoimentos de leitura favoráveis, de gente com mais cultura e coturno.

Chove sobre a minha infância se aproxima bastante, a meu ver, do livro do Cony, Quase Memória. Houve intenção de fazer uma espécie de quase-memória paranaense?

Miguel Sanches Neto – Eu gostei muito do livro do Cony, pois sou um leitor de textos autobiográficos. Mas li tanta coisa do gênero que seria reduzir demais dizer que meu livro descende diretamente do de Cony, inclusive porque a estrutura é outra e a intenção é bem diferente. Ele está muito mais próximo de um livro como Espelho de príncipe, de Alberto da Costa e Silva, por exemplo, em que a figura do menino se faz presente na própria linguagem – isso não acontece no livro do Cony.

O senhor não acha provinciano o fato de colocar a carta da editora aceitando seu livro na orelha dele?

Miguel Sanches Neto – Antes de ser minha editora, a Luciana Villas-Boas é uma leitora. E como leitora ela pode aparecer em qualquer lugar e com o texto que ela quiser. Agora, a carta funciona dentro da estrutura do livro, que ficcionaliza a própria construção do autor/narrador e do romance/autobiografia. Há a carta da irmã do narrador, totalmente fictícia, e há a carta da editora, que tem um sentido que não é meramente publicitário. E uma coisa que se deve lembrar é que não fui eu que editei o livro – eu apenas o escrevi.

Algumas referências me soaram por demais comuns, como a que aparece logo na segunda página do romance: o que é a chuva senão nossos olhos turvados de lágrimas.

Miguel Sanches Neto – Se você colocar a frase no contexto vai perceber que ela não soa assim tão banal, sendo uma referência implícita ao título. Este livro busca uma identificação entre narrador/leitor, num desejo de comover. Toda a resistência a ele vem do fato de que vivemos numa sociedade de simulacros (inclusive os de identidade) e descrença no eu. Para mim, não faz sentido reforçar este mundo, busco um desvelamento do autor/narrador, uma entrega. É claro que haverá momentos mais elevados e outros mais banais – sinto informar, mas a vida é assim. A não ser que se viva num conto de fadas, em que tudo vem sublimado.

O jornalista José Castello disse que se seu livro for lido como romance não é bom. Se for lido como memórias, é. O que o senhor acha da afirmação?

Miguel Sanches Neto – Acho José Castello um excelente jornalista de cultura, e já disse isso publicamente. Agora, ele quer sempre encontrar nos autores que analisa o Mundo Literário (assim com maiúscula) por vir de uma tradição de mitificação – leia as biografias que ele escreveu e você perceberá isso. Ele vê nos escritores o mito literário e não consegue enxergar o homem. Na crítica ao meu livro, ele se recusou a ver em mim o escritor, porque minha literatura desmistifica esta figura, tentando mostrar como o escritor nasce em um mundo banal, tem misérias e grandezas, pode ser ingênuo e romântico, mas também mostra a força necessária para assumir esta trajetória e construir a sua imagem. É aí que está a grandeza do meu livro, que decididamente não é uma autobiografia pura, embora seja altamente autobiográfico, porque busco uma verdade psicológica e não a factual, porque existe um trabalho de estrutura e de linguagem que se sobrepõe à linearidade da vida apenas relembrada.

Para um crítico a aceitação de sua ficção é mais difícil. Quando Paulo Francis lançou Cabeça de papel também sofreu ataques, alguns pessoais, claro. Tem a ver com sua profissão isso?

Miguel Sanches Neto – O crítico é uma figura polêmica por natureza. E cada vez que ele faz uma matéria negativa arruma mais algumas dezenas de inimigos. Portador de verdades impopulares, ele acaba colecionando uma certa má-vontade com relação ao que ele produz. E quando entra na criação pela porta da frente, como foi o meu caso, acaba sendo tomado como intruso. Agora, é bom não esquecer que Machado de Assis antes de ser um autor reconhecido foi crítico. O Paulo Francis era um romancista sofrível, mas não por exercer a crítica. Qualquer ilação nesse sentido corre o risco de ser simplificadora e preconceituosa.

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