ALFABETTO
Deonísio da Silva (*)
O presidente eleito vai tendo a vida mais vasculhada. A imprensa aprofunda as bisbilhotices. Qualquer detalhe ganha relevância extraordinária. Mas para um homem que pouco freqüentou a escola, os livros que lê recebem aquela aura comum às raridades.
Declarou que seu escritor preferido é Frei Betto. Ainda disse pouco do amigo. Frei Betto é muito mais que seu escritor predileto. O tempo dirá o quanto o escritor e frade vem iluminando a vida de Mr. da Silva, como o chamou o respeitoso e formal New York Times. Consultor do MST, conselheiro do PT, artífice de contatos decisivos, nacional e internacionalmente, Frei Betto é um homem inteiramente dedicado às lutas que demandam a palavra como ferramenta de trabalho e meio de expressão literária. A disciplina do convento e uma freqüente participação na imprensa com artigos lidos e entendidos por todos ? ainda que polêmicos e por diversas vezes suscitadores de iras e imprecações ? fizeram dele um dos mais conhecidos escritores brasileiros, no Brasil e no exterior. Pela quantidade e pela qualidade do que faz.
E acaba de lançar novo livro. É Alfabetto, autobiografia escolar. Os anos e o traquejo do verbo fizeram de Frei Betto um escritor preocupado com o leitor. Não se submete a eventuais rebaixamentos de estilo, como fazem outros que buscam atingir maior número de leitores com um texto facilitário. Antes, toma os leitores pela mão, convida-os a subirem onde ele está. Onde está Frei Betto? Está junto ao verbo, à força que a palavra tem.
Livros a tiracolo
No Brasil, arremedos de críticos e resenhistas fazem-se aparecer por esculachos a desafetos, quase sempre gratuitos. Se não podem espinafrar, o brinde é o silêncio, o apagamento. Assim, sobram rabecões, funerais e enterros em nossas letras espelhadas pela imprensa e faltam parteiros, obstetras do novo, avisos seguros acerca de talentos literários que brotam nos mais diversos lugares, nos mais variados gêneros. Na universidade, a coisa piora: é mais cômodo escrever sobre o já conhecido, o já lido, o já examinado e comentado. Anexam-se as chamadas citações bibliográficas, obtém-se o dignificante título e o "pesquisador" abandona a sala de aula, ou lá vai pouco, e fica num entretenimento que pode durar a vida inteira, ou ao menos até a aposentadoria, que em geral vem cedo demais.
Há excelentes pesquisas sobre autores novos, mas elas são raríssimas! Não se espera que o novo cresça apenas, aguarda-se que ele amadureça, envelheça, morra, seja enterrado e apodreça. O novo, na universidade, é dos anos 1920 em diante. O cadáver insepulto do Modernismo é velado em todos os territórios universitários, que orientam os circuitos escolares fundamental e médio, onde é repetida a metodologia. Como se nada de novo ou bom tivesse acontecido depois do Modernismo, nem sequer o Romance de 30, a bordo, aliás, da Revolução de 1930! Nem sequer a geração de 1975, que, tendo marcado o passo inicial em famoso evento no Teatro Casa Grande no Rio, em julho daquele ano, fez a ditadura militar interessar-se por livros, proibindo 508 autores, muitos dos quais Escola e Universidade ainda não descobriram.
Frei Betto não sofre tais restrições. Nem ele e nem sua obra. Mas continua mal lido e pouco entendido. Chamam-no para conferências em universidades, mas na maioria delas aonde vai, seus livros chegam lá porque ele humildemente os leva a tiracolo. Nem suas editoras e nem os anfitriões providenciam os livros.
Fé nas mudanças
Alfabetto é dividido num tom docente. Docente e não didático. Começa com doze relatos curtos sobre a infância. A morte é tratada com naturalidade na memória que o ex-menino faz do Jardim da Infância Bruno Brandão, em Belo Horizonte. O moço morto por atropelamento: sangue e outras essências de cores fortes a serem evitadas pela diligente babá que o conduz à escolinha. Do velório da tia Diva brotam na memória do escritor fundas lembranças e reflexões leves, moldadas em tom surrealista, pois compara o caixão da morta à travessa de peixe servida no jantar.
Assombrações. Há que merecê-las. O menino verá um dia a mula-sem-cabeça? "Só se ocê for obediente e respeitar os mais velhos." Sempre escrevi que Frei Betto nasceu escritor e tornou-se frade depois. Seu Alfabetto confirma a tese. Em todas as páginas, os vestígios da sua mais antiga vocação. Ao comentar a história de Rapunzel com os pais, leva à escola a sua conclusão: "O pai de Rapunzel era um homem mau, pois aceitou dar a filha para a feiticeira. Papai e mamãe juraram que nunca seriam capazes de me dar para uma outra pessoa". E a criança recrimina o fato de Rapunzel ter abandonado o marido no deserto para fugir com o príncipe, levando os dois filhos do pai plebeu.
Alfabetto é livro delicioso. Vai da infância de Frei Betto às lutas que o levaram à prisão, já frade dominicano em São Paulo. De leitura imperdível e improrrogável, não porque seja o escritor preferido do presidente, mas para comprovar que Lula fez uma boa escolha. Frei Betto é o nosso Campanella. Sonha com uma sociedade brasileira utópica, mas faz mais do que escrever para trabalhar em sua edificação. Conselheiro de políticos de esquerda, escreve livros e artigos em profusão, mas também encontra tempo para quem precisa conversar com ele ou apenas quer sentir o prazer do gosto de uma boa prosa, temperada com aquele solerte ar de mineiro docemente desconfiado. Não recusa convites para conferências. Esclarece que sua agenda está lotada por muitos meses.
O papa, estadistas, banqueiros, altas autoridades, intelectuais, escritores, artistas ou jovens pobres de um coral de Osasco: não há nenhuma hierarquia para ele. Marcou o encontro, lá vai o escritor e frade. Com sua fala e com seus livros. Não se trata de rendição diante de seu encanto vocabular, na fala como na escrita. O que cativa o interlocutor é a fé nas mudanças que julga possíveis e nas quais esteve sempre tão empenhado.
(*) Escritor e professor universitário; seus livros mais recentes são A Vida Íntima das Palavras e o romance Os Guerreiros do Campo, ambientado entre os sem-terra