COBERTURA DA GUERRA
Gilson Caroni Filho (*)
Nassíria, Najaf e Basra não constavam do "tour" idealizado pelos falcões de Washington. Não como locais de resistência. Muito menos a coragem suicida dos fedayeens e de outras milícias fiéis ao regime de Saddam Hussein estavam previstas na propaganda ideológica que pretendia transformar a invasão de um país destroçado em "guerra de libertação". Dos xiitas se esperava apoio, mas, para desgraça dos senhores da guerra, eles não lêem o Washington Post e se consideram árabes ? acima de qualquer projeção logística dos plantonistas de Harvard.
Mísseis caindo em território turco, tempestades de areia que desnorteiam tropas, além de bombas inteligentes matando população civil no centro de Bagdá, não estavam no roteiro original. Ou estavam e foram ignoradas pela premência da ação? A imprensa americana tem dedicado espaço a desentendimentos prévios entre o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, e estrategistas do Pentágono. Mas se nada disso põe em risco a vitória militar, esta é uma ofensiva perdida no campo político. Como mencionado no artigo "Limites do espetáculo" [remissão abaixo], publicado na edição passada deste Observatório, faltou aos Estados Unidos conseguirem da sociedade civil mundial uma legitimação prévia para a ação bélica. Não se sabe se por falta de espaço para manobra ou presunção imperial, o fato é que as tropas americanas partiram para o Oriente Médio ignorando resoluções da ONU e manifestações pacifistas em escala planetária.
Ao subestimar a arena política, a potência hegemônica apostou nos meios mais letais de que dispõe: a tecnologia bélica de última geração e o formidável conglomerado midiático. Cometeu dois erros: ignorou a margem de erro da primeira e as contradições do segundo. Embora disposta a atuar como força-tarefa, narradora de uma cruzada ao mesmo tempo épica e asséptica, a imprensa americana tem um limite: se os fatos não podem ser mediados ao seu livre arbítrio (e de fato não podem), há que se manter um mínimo de verossimilhança com o que acontece. Caso contrário, Forrest Gump desliga a televisão e vai à rua protestar.
Invasão imperialista
Quem leu Guy Debord sabe que o espetáculo assegura integridade a uma sociedade atravessada por suas próprias contradições. Garante ao indivíduo a permanente sensação de aventura como recompensa por um projeto social que o exclui como elemento ativo. Quando o ruído da história concreta se faz ouvir, as imagens se transformam no oposto do que pretendiam. São, à velocidade da luz, a mais formidável fábrica de ausência de sentido: os corpos dilacerados de marines, os restos calcinados de tanques e helicópteros rompem a barreira do fetiche da mercadoria. O imperialismo, sem a discreta roupagem da CNN, mostra-se em sua nudez obscena. Homens estúpidos e máquinas inteligentes marcham para a barbárie. As emissoras árabes al-Jazira, Abu Dabi e al-Arabya quebram o encantamento. Rambo não existe. Ao menos, como algo desejável eticamente.
O antiespetáculo cobra a fatura. No briefing diário, o porta-voz da Casa Branca, Ari Fleischer, demonstra irritação com perguntas de jornalistas sobre uma possível guerra prolongada. A BBC, em Londres, começa a se irritar com o "fogo amigo" e questiona o projeto americano para a " reconstrução" do Iraque. Parece reproduzir a inquietação de Tony Blair com a rapinagem dos amigos de Dick Cheney . A CNN tem que negar, com insistência, que esteja fazendo uma "cobertura asséptica". Simuladamente ou não, pouco vem ao caso, o descredenciamento da al-Jazira pela Bolsa de Valores de Nova York provoca o repúdio dos principais meios de comunicação americanos. Entropia braba e das boas. Exemplar demonstração de fissuras indesejáveis.
O que gostaria de reiterar é que não foi algo intrínseco à produção do espetáculo que o inviabilizou. Foi o processo que precedeu sua elaboração. Da truculência imperial que dispensou o consenso derivam os tropeços militares e a hegemonia irreversivelmente arranhada. O antiamericanismo nunca foi tão exacerbado como hoje. O arrazoado dos invasores não convence a ninguém. Em condições tão inóspitas, pedir à mídia americana que colonize corações e mentes equivale a solicitar que um drama nórdico tenha como cenário as colinas de Golã. Em algum momento, a razão cobra pedágio ao clichê. É quando a mídia, para sobreviver, tem que se reinventar.
O império tem sede (e a antiga Mesopotâmia oferece água em abundância), necessita repor as energias (as jazidas petrolíferas são generosas em terras iraquianas) e precisa pagar pouco por isso (evitando a depreciação do dólar frente ao euro). Esses são os três vetores que movem a máquina de guerra anglo-americana. Não compreender isso, como têm feito alguns de nossos articulistas, é perder o fio da meada e escorregar do bonde da história. O pacifismo, ao contrário do que muitos supõem, não deve ser "neutro". Se pretende denunciar as ambições de uma superpotência, que tem como norte exclusivo interesses de suas corporações, requer posicionamento claro. Militarmente não estamos diante de uma guerra nos moldes clássicos. Mas de uma invasão imperialista. A paz não pode ser a expressão pueril de boas consciências, mas a invenção de uma alternativa à lógica expansionista.
Nova ordem informativa
Elio Gaspari, um dos nomes mais conceituados da imprensa brasileira, em artigo na Folha de S.Paulo republicado no Observatório [ver remissão abaixo], dá um exemplo do que pode surgir quando se confunde o meramente episódico com o que é estrutural. Vejam esse trecho:
"Para glória da civilização americana, há manifestações contra a guerra em quase todas as grandes cidades dos Estados Unidos. Se Cacá Diegues está certo e Deus é brasileiro, Bush não se reelege. Para amargura dos antiamericanos, não há manifestantes em Bagdá nem oposicionista iraquiano vivo dentro do país. Mesmo se Deus fosse brasileiro, Saddam Hussein se reelegeria, com 110% dos votos."
Longe estamos de uma bravata de Bush. O que se assiste é à efetivação de um plano gerado há mais de uma década no meio acadêmico neoconservador estadunidense. Como destaca Merval Pereira em seu artigo "E se faltar água?", no jornal O Globo de 30/3, "Paul Wolfowitz, atual subsecretário de Defesa, foi co-autor de estudo intitulado ?Projeto para um novo século americano?, que imaginava os Estados Unidos comandando o mundo, interpondo seus princípios através da força econômica e militar". A não-reeleição de Bush seria um bom começo, mas longe está de ser a solução definitiva. Não parece que a questão substantiva seja a inegável tirania de Saddam. E ao afirmar isso não me parece que estou assinando um termo de adesão ao regime de Bagdá. Ou será que os efeitos persuasivos de Thomas L. Friedman são mais eficazes do que imaginávamos?
No mesmo jornal, Ali Kamel demonstra impaciência com o "simplismo" dos que vêem na ofensiva americana o desejo por petróleo. Chega a invocar "marxistas esclarecidos" para exorcizar o economicismo desta análise. O mais interessante é que, após longos e, factualmente, robustos artigos, o jornalista do Globo desvenda o que seria uma razão sensata para a invasão do Iraque: neutralizar o radicalismo islâmico que emana da Arábia Saudita e que, depois do Afeganistão, tentaria se instalar em Bagdá. Essa é a explicação elaborada: os militares americanos, em nome dos nobres princípios da civilização ocidental, estariam, como bons cruzados, defendendo o mundo da insanidade dos fundamentalistas de Maomé. Diante disso, Rumsfeld, Cheney, Condoleezza Rice e o próprio Bush, um tanto quanto encabulados, confidenciam: "Yes, the book is on the table."
Espetáculo fraturado por uma crise hegemônica, é hora de repensar a narrativa. A imprensa brasileira tem se saído com razoável êxito do controle de textos e imagens. Sente, tal como os franceses que já adiantaram a pretensão de criar um canal internacional de notícias, o prenúncio de uma nova ordem informativa. Talvez, mais cedo do que muitos supõem, esteja sendo redesenhada uma nova configuração geopolítica em que o livre fluxo informativo seja o pressuposto básico. É uma questão de tempo. E fé democrática.
(*) Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro