CHAVÕES & CLICHÊS
Entrevista de Claudio Julio Tognolli a Luiz Egypto
A sociedade dos chavões, de Claudio Tognolli, 247 pp., Escrituras Editora, São Paulo, 2001. E-mail <escrituras@escrituras.com.br>
O jornalista Claudio Julio Tognolli propôs-se a desfazer a ponta do nó dos mistérios para, em seguida, aquecer as turbinas e alçar vôo em busca de um porto seguro de onde pudesse assestar suas baterias e olhar percuciente sobre a linguagem utilizada pela mídia e, nesta, estudar a fundo seus clichês e chavões ? os quais, aliás, abundam neste parágrafo.
A sociedade dos chavões ? com o subtítulo "Presença e função do lugar-comum na comunicação" ? é resultado de pesquisa iniciada em 1984 e depois transformada em dissertação de mestrado defendida na Escola de Comunicações e Artes da USP. No decorrer da investigação, e no entremeio de sua atividade jornalística, Tognolli conquistou a atenção do psiquiatra e papa da contracultura Timothy Leary, que, em entrevistas pessoais e correspondências trocadas com o autor, operou como orientador informal do trabalho acadêmico até morrer, em 1997.
Sobre o tema de seu livro, Claudio Tognolli concedeu ao Observatório da Imprensa a entrevista a seguir. (L.E.)
Pergunta para o autor de livros: por que a opção de escrever A sociedade dos chavões na primeira pessoa?
Claudio Julio Tognolli ? Porque como o livro é originário de uma tese, e, antes disso, de estudos de música, quis enfatizar a circunstância de uma pessoa inquieta buscando respostas. Assim, a primeira pessoa me passou a melhor idéia disso: quando comecei a busca, ainda adolescente, não tinha de nada, nem teoria nem escolas de pensamento. Acho também que fica mais elegante você mostrar que foi trilhando caminhos, descobrindo conceitos, entrando em contradição. Dessa forma, acho, passaria a idéia do "busco", não do "sei", que de resto para mim retrata alguma arrogância. Lembre-se que quando o Niels Bohr, o Max Planck e o Werner Heisemberg, no primeiro lustro do século 20, enveredaram em física sobre o "conceito de incerteza", postulavam que, ao relatar suas experiências, os físicos deveriam descrever com detalhes,como parte do experimento, o aparelho que usavam para as experiências… Então fica melhor escrever na primeira pessoa, porque você, a meu ver, adota essa postura do Bohr: usei tal conceito, mas se usasse o outro a "verdade" poderia ser diferente.
Pergunta para o jornalista: o que se lê, se vê e se ouve no jornalismo industrial? Grassa o chavão? Por quê?
C. J. T. ? Você já reparou que no jornalismo impresso as frases entre aspas se parecem com o resto do texto? Parece que a pessoa que fala ao repórter escreveu o texto também. Nas aspas não entram as hesitações do entrevistado. Nos anos 20, Gertrude Stein escreveu um belíssimo livro ? Three Lives ? em que relatava as falas de uma escrava negra, de nome Melanchta, que mais ou menos falava assim "eu disse que ia mas quando disse que ia sabia que eu não ia porque eu ia mesmo sem saber que ia, e assim ia indo". Ela escreveu cinco páginas com a Melanchta falando assim, e os editores quiseram suprimir. Stein não deixou, porque aquilo era um nível de fala, no conceito do professor Dino Pretti. Depois, a Stein desenvolveu com base nisso os conceitos psicanalíticos de ecolalia, sobre a fala repetitiva. Pois bem: o jornalismo industrial, seja na TV ou nas revistas e jornais, suprime na edição as hesitações dos falantes. Sem dúvida a forma fala mais que o conteúdo. Nossa imprensa, ao tratar das aspas, suprime a forma.
Agora, falando sobre os chavões, não postulo a assepsia hospitalar deles. Mostro os chavões como espírito de época ? lembre-se que, depois que o Karl Marx usou pela primeira vez aquelas metáforas geológicas como "a crosta terrestre vai se romper para que a lava do proletariado suba" etc. etc. etc., esssa imagens começaram a ir para a literatura e, depois, para a imprensa. O Oscar Wilde é o maior gênio para analisar isso: em 1901, portanto há cem anos, ele disparou: "Aristóteles estava errado. Ele dizia que a arte imita a vida, mas é o contrário: a vida imita a arte. Onde estavam as névoas de Londres antes que Turner as pintasse? Não existiam. Ele teve de vê-las pela arte, primeiro, para que depois elas passassem a fazer parte da vida, para que as pessoas começassem a vê-las".
O chavão funciona assim: são formas geniais de se ver as coisas, mas que depois se desgastam. Caem em desuso, e voltam. Os chavões eram recomendados na Retórica, do Tertuliano. Repito: não postulo a retirada dos chavões, nada mais chato do que textos sem eles. Mas na música acontece o mesmo, por exemplo. Toco desde os 7 anos de idade, venho de uma família de músicos (minha irmã, hoje psicanalista, chegou a ser concertista). Para você começar a ser alfabetizado musicalmente, precisa, é óbvio, decorar as frases musicais. Então eu passei por aquele processo de decorar frases musicais. E notei que a música também tem seus chavões ? em 1877, o crítico inglês Pater escreveu que "todas as artes aspiram à música, que não é outra coisa senão forma". Quis provar que essa frase era uma falácia e comecei a catalogar os clichês musicais. Veja que eles funcionam como na linguagem, e vou contar algo: nos anos 20, nos EUA, um negão genial chamado W.C. Handy inventou o acorde com duas notas, aqui chamado de bicorde. Os acordes são feitos basicamente com o primeiro, terceiro e quinto graus da escala musical. O terceiro grau define o modo, se o acorde é maior (alegre) ou menor, triste. O Handy suprimiu o terceiro grau e depois disso, ou seja, nos proximos 60 anos a partir dos anos 20, todos os guitarristas de rock e blues usam o bicorde. Até que em 1978 um guitarrista inglês chamado Andy Summers, do The Police, acrescentou o nono grau da escala ao bicorde. O nono grau te transmite a sensação de estar levantando vôo, ou pular numa piscina. Depois do Summers, a nona virou um chavão. Sumiu, caiu em desuso e agora volta com toda a força nas músicas do Limp Biskit e nas vinhetas de violão flamenco da novela O Clone. A música e os clichês musicais, como se vê, me inspiraram a tudo. Os chavões grassam porque são belíssimos espíritos de época.
O jornalismo é também pedagógico, pois não? Então, não deve amalgamar-se com chavões. Na imprensa, a linguagem (tradução do mundo) é limitada por que o pensamento (conhecimento do mundo) é limitado?
C. J. T. ? Sim, mas a imprensa é um espelho desse processo, portanto uma ótima seara de estudo. Veja que não critico a imprensa: critico a linguagem, e convido as pessoas à reflexão.
Quando um jornalista recebe a incumbência de ocupar determinado espaço (tantas linhas, ou tantos centímetros de coluna), em função de uma pauta cujo sentido geral no mais das vezes ele não terá tido intervenção alguma, não estará este jornalista (por hábito, conveniência ou sobrevivência) propenso a reproduzir os "chavões" e "lugares-comuns" correntes em seu veículo? E o que dizer do "administrador do espaço", do editor, do gerente do conteúdo, do gatekeeper? Não estará este também a reproduzir clichês inteligentes, a utilizar-se de "palavras de passe" e a periodicamente "armar conhecimentos e fingir verdades" para cumprir a regra do jogo?
C. J. T. ? O problema não está na forma, na estética dos chavões: está no conteúdo da pauta. Porque a mídia compra tanto as versões do Departamento de Estado americano, por exemplo? Por preguiça mental, porque os editores não querem raciocinar e levar a discussao mais a fundo. Qualquer jornal que se julgasse importante mandou um correspondente para o Kosovo, a partir de abril de 1999. Todos queriam ter um representante para ver de perto como Slobodan Milosevic promovia, faute de mieux, a limpeza étnica contra 10 mil kosovares albanases. Final do ano 2000, a maior página de geopolítica do mundo (www.stratfor.com ) dá uma porrada na mídia: obtiveram documento do todo-poderoso FBI americano mostrando que menos de 100 corpos foram encontrados nas valas. E nenhum mostrava-se vítima de limpeza étnica. Ofereci o documento ao editor de assuntos internacionais de um grande jornal brasileiro. Sua resposta: "Nossa linha é a do Departamento de Estado americano, isso não nos interessa".
A julgar pelos experts da Stratfor, ligada à Universidade do Texas, em Austin, as Nações Unidas serviram aos interesses do Departamento de Estado dos EUA ao potencializarem a noção dos " novos inimigos da humanidade". Quereriam os gringos no Kosovo, na verdade, apenas a posse do oleoduto do Mar Cáspio, a abastecer China e Rússia, hoje os maiores inimigos geopolíticos dos EUA. Compramos, todos, a versão oficial. O escritor Renato Pompeu mandou um artigo sobre isso para um jornal. Colocaram em cima da matéria dele um chapéu "Versão Sérvia"!!!
Pensemos o negócio da mídia, em crise global latente, ainda que controlada, mas mostrando forte tendência à concentração da propriedade e do controle. Não faz parte da função do jornal diário e da revista semanal, por exemplo, limitar o alcance da linguagem de modo a serem compreendidos por quem os compra e lê? Você já reparou no número de vezes ao dia que a palavra "emoção" é pronunciada na Rede Globo?
C. J. T. ? Quando comecei fazer esse trabalho, levei para o Celso Kinjô, que era o chefão da Globo em São Paulo. E disse a ele: "Você viu que toda a passagem do repórter no Jornal Nacional começa com a expressão ?para se ter uma idéia???? Ele mandou proibir o "para se ter uma idéia". O problema é que temos poucos espaços para tentar aumentar nosso poder de crítica, como este Observatório ou a revista Caros Amigos. Nos EUA, acontece o mesmo problema: mas a quantidade de midia criticism é muito maior, o que aumenta o poder de fogo do leitor.
Para a retroalimentação da imprensa produzida na sociedade dos chavões de todo tipo e qualidade ? publicitários e propagandísticos, práticos e teóricos, comportamentais e culturais ?, que função é reservada à universidade, em especial aos cursos de Jornalismo?
C. J. T. ? Os cursos de Jornalismo estão errados. Tenho cerca de 1,2 mil alunos nas Faculdades Integradas Alcântara Machado (Fiam) [de São Paulo]. E digo para eles que leiam muitos livros, porque essa profissão privilegia o técnico, e isso não pode continuar. O curso deveria privilegiar em, digamos, 3 anos, a reflexão, e deixar um ano para a prática. Veja os melhores jornalistas brasileiros: veja a quantidade de coisas que leram para ser o que são. A faculdade não pode privilegiar tanto a técnica.
Esta é uma época de banalização do chip e disseminação de sistemas interativos de reconhecimento de fala e de processamento de voz no atendimento a clientes ou usuários de serviços, por exemplo. As ações de telemarketing, cada vez mais assanhadas com a massificação relativa das telecomunicações, criou no Brasil uma nova sintaxe que reza na cartilha do gerúndio e das expressões do tipo "vou estar podendo encaminhar sua solicitação e estarei entrando em contato em seguida". As pessoas "aprendem" com isso. O fim da linguagem é o clichê?
C. J. T. ? Sim, o fim da linguagem é o clichê. A psicanálise prova que diminuir a linguagem é diminuir até a esfera emocional da pessoa ? portanto diminuir a linguagem é aumentar a intolerância. Por que os radicais islâmicos criam toda uma linguagem repetitiva para programar suas crianças contra o "satã" americano? Por que a imprensa crítica dos EUA pediu para que se parasse de repetir aquela imagem das torres gêmeas sendo explodidas? Porque somos programados pelas retinas. Repetir aquela imagem é programar as pessoas a aceitarem o muçulmano mediano como um satã, uma extensão de tudo aquilo. É pura memética, a ciência que estuda os efeitos da repetição. Temos de falar aqui do conceito de imprinting. O imprinting é um conceito criado pelo etólogo alemão Konrad Lorenz, ganhador do Nobel de 1962. Ele pegou pombos que haviam perdido os pais e provou que eles adotavam a mão dele, que os alimentava, como pais. E que as bolinhas de pingue-pongue que a mão dele jogava eram vistas como irmãozinhos pelos pombos. Imprinting quer dizer aprendizado imediato. Numa situação extrema, você se reprograma imediatamente. E, quanto menor o teu universo simbólico, isto é, de linguagem, maior o imprinting. Veja a explosão das torres gêmeas. Um imprinting terrível. Se você repete aquilo várias vezes vai ter sua retina programada para acreditar em tudo o que os americanos falam contra os muçulmanos. Saiba que em Washington o governo mantém um zilhão de assessores spin doctors, nome dado aos assessores formados em psicanálise e comportamento. Precisamos ler sempre muito mais que a mídia para escaparmos dessa corja que nos programa sem que saibamos.
Jornalismo é "intrinsecamente crítico",
escreve Alberto Dines no prefácio de "A sociedade dos
chavões". "Jornalismo é oposição,
o resto é secos e molhados", Millôr Fernandes
dixt. Ao mimetizar sujeito e objeto, a linguagem dos clichês
e dos chavões incorporada à prática social
é capaz de obscurecer o viés crítico inerente
ao jornalismo, e deste definitivamente apropriar-se?
C. J. T. ? Não há dúvida. Encolher a linguagem é encolher indivíduos.