CASO TIM LOPES
Ana Bruno (*)
Seriam "Elias Maluco", "Ratinho" e "André Capeta" tumores do tecido social ou resultantes daquilo que a ciência já havia aventado possibilidade de existir, a geração espontânea? Ou, ainda, atores do novo modelo de Estado e da nova mídia?
Pois a noção original desta teoria implicaria que organismos complexos pudessem surgir repentinamente de matéria bruta. Pois é exatamente o que vemos hoje: ratazanas brotando a esmo, cerceando nossos passos e nossas mais humildes liberdades, nos levando a viver aos sobressaltos.
Houve um tempo em que "maluco" era o Profeta Gentileza e Arthur Bispo do Rosário, pacifistas e artistas natos, assim como o poeta do maluquismo, Raul Seixas.
Mas agora, o ato covarde ? chega a ser eufemismo chamar assim tamanha brutalidade ? com o qual afrontaram a mídia, na pessoa de Tim Lopes, só pode ter sido desferido por "coisificações" ainda inexplicáveis pela sociologia, tão inaceitáveis quanto um tiro, uma doença ou outro malefício qualquer. Segundo o sociólogo Michel Mafesolli, "a hipótese da socialidade e suas expressões podem ser muito diferenciadas, apesar da norma constante: partilham hábitos, ideologias e um ideal determina esse estar-junto, como uma proteção contra a imposição".
Hildebrando chegou
É que temos ojeriza ao medonho rosto destes andróides criados no pó e na pólvora. Ninguém entende quando "um desses" com miolo vazio e sem nenhum nexo causal humanamente sugerível, chega de tênis Nike, meias Reebock e camiseta "I love New York" e lhe ceifa a vida cinicamente.
Pois são "esses que marcham incessantemente para cima da beleza humana que tanto buscamos salvaguardar em nossos corações. São "esses" ausentes de alma que só fazem o que o "seu mestre mandou": e seu mestre mandou matar, aniquilar, exterminar e depois morrer como sociopatas que são, sem céu nenhum para abrigá-los no além, nem virgens para lhes satisfazer os caprichos doentios, assim como julgam haver os talibãs. Entre o não ser e o ser de Hamlet, optaram pela interseção e pelo nonsense.
Seriam esses estrupícios crias de desordenamentos das mídias sociais, resultantes das violências políticas tão praticadas no país desde o Descobrimento? Seriam "culminâncias" de ditaduras tão veementes como a que tivemos por toda a América Latina? Ou "conseqüências respirantes" do longo governo social de FHC ? não apenas e tão somente, mas inclusive e principalmente?
Quando o Estado não produz estofo para sociedade, desestruturam-se as famílias, primeiro núcleo social, posto que os pais não mais se sustentam sobre o chão que pisam. Rompem-se os tetos, desabam-se os lares, as mães abandonam seus filhos em virtude da alimentação voraz do capital ? e em nome de suas frágeis sobrevivências. As crianças, desamparadas, acabam cuidadas pela modernidade crua e sem graça do asfalto, embaladas no colo áspero da sarjeta e acariciadas pelos porretes das instituições de "amparo" ao menor.
O Estado, quando incompetente, abre filiais nos presídios, lugar que deveria ser de aprimoramento humano, não um depositário de ratazanas anti-sociais. Se hoje temos "Estados" do Alemão, da Rocinha, também temos Estados paralelos mais consistentes, como as famílias que governam o país das cadeiras de seus estados ? Maranhão, Acre, Amazonas etc.
Se hoje temos cemitérios clandestinos nos morros e nas favelas, já os tivemos durante o período de chumbo, cala-bocas eficientes para uma gente que pensava certo demais e desejava com toda a força de seus brilhantes ideais um país oposto ao que vivemos, hoje. Foi uma época em que a mídia mais se calou, as onde as pessoas mais sabiam do valor deste silêncio.
E isso não pode ter sido em vão. Nenhum deles abdicou de suas vidas para que o desmando e o desgoverno pudessem imperar. Nenhum deles ofertou a própria vida para que chefes de quadrilhas pudessem chegar ao Congresso, como chegou Hildebrando Paschoal.
A evolução virá
Não haveria de ser o dinheiro o fomentador de toda essa desgraça? Vimos que o milionário Edmond Safra morreu asfixiado, trancado num banheiro, blindado exatamente para protegê-lo. Morreu como um empresário realizado, enriquecido, reconhecido mundialmente nas mesas onde o dinheiro é o ator principal: morreu regozijando de pleno poder.
Desta forma, faço aqui um breve parêntese para refletir sobre o papel da economia, desta que aí está, a governar os governantes, a lhes atarrachar os umbigos de vaidades, esvaziando-lhes os sentimentos. Então, é essa a vantagem que o mundo moderno nos trouxe? E qual a relação que poderia haver entre Edmond Safra, bin Laden e o homem pré-histórico? Que se enjaularam em suas cavernas, enquanto estavam atacando ou sendo atacados pelo perigo iminente que os rondava.
Temos sim direito ao Direito, base essencial para que as nações se harmonizem e concorram para a saúde interna de seus Estados. Só que, neste mundo tão ironicamente globalizado, o que vemos são vidas severinas, como as de João Cabral de Melo Netto, gente que acorda praticamente para morrer, enquanto outros, tão enriquecidamente, desfrutam de seus banheiros blindados ? inclusive para morrer sem ar, infelizmente. Vidas pairando entre as senzalas e as casas grandes, como tão bem proferiu Gilberto Freire, súditos à mercê de seus "príncipes", como nos revelou Maquiavel. Paradoxos e contrapontos tão eqüidistantes e tão semelhantes no que tange em nossa frágil humanidade.
É o caso de se ponderar sobre o que pensaria agora John Maynard Keynes sobre o FMI, coveiro-mor deste milênio. Haveria cartesianismo suficiente para quantificar estatísticas aberrantes como a de centenas de milhões de partículas da humanidades que morrem por dia, de fome, de ódio, de vingança, de bala perdida, de guerrilha ou e até mesmo "à toa"?
A paz deveria ser o celeiro da economia, estofo das geopolíticas. As nações hoje, ou caminham para a alienação religiosa completa baseadas em dor e expiações ou caminham para a plausibilidade, assim como, de uma terra renovada pelo sangue como em Timor Loro Sae, brotará certamente uma gente desanimada demais para a economia selvagem que tanto se pratica em nome do "progresso". Desta forma, haveríamos de ter um novo modelo econômico para a divisão do trabalho, controlado moralmente pelo Estado ? para Anthony Giddens, um Estado onde "houvesse uma nova conduta, um culto ao individualismo oposto ao egoísmo, uma fonte do sentimento de compaixão em relação ao sofrimento humano, um desejo de igualdade e justiça".
A evolução virá sim, mas da progressão da ciência, dos pensadores e dos poetas, tão necessários durante o desenvolver da nossa história.
(*) Jornalista