MINISTÉRIO PÚBLICO
"O risco que corre o machado", editorial, copyright O Estado de S. Paulo, 1/05/02
"É descabida a reação corporativa dos integrantes do Ministério Público Federal, e dos Ministérios Públicos Estaduais, ante o fato de muitas pessoas, que se sentem por eles lesadas, recorrerem à Justiça. Para início de questão, reivindicar direitos ou pretender reparação – material ou moral – em juízo jamais poderá ser considerado ato de intimidação ou ameaça. É prerrogativa essencial da cidadania, independentemente do mérito da questão, a ser, judicialmente, aferido. Eis por que não ficam nada bem, perante a opinião pública – para dizer o menos -, posições assumidas por lideranças de entidades de classe de procuradores ou de promotores de Justiça, contestando esse direito dos cidadãos e, pior, pleiteando regras especiais para proteger-se ou diminuir o ônus de tais processos – conforme vimos em matéria de nossa edição de domingo.
A matéria nos dá conta de que os procuradores e promotores estão muito apreensivos com a quantidade de ações contra eles movidas por administradores públicos, políticos, empresários e advogados, que se sentem vítimas de procedimentos arbitrários, de abuso de poder ou de difamatórios ?vazamentos de informações? em processos sigilosos, por parte do Ministério Público. Na verdade, considerando-se a abrangência de atuação dos que exercem o nobre papel constitucional de fiscais da lei e defensores dos interesses difusos da coletividade, tanto quanto o volume global de processos em que, nesse mister, o MP é o dominus litis, não nos parecem um número desproposital as 38 ações em curso contra 50 procuradores da República, como mostram os dados dos Distribuidores da Justiça Federal e a Justiça nos Estados. Vale o mesmo para as dezenas de promotores, citados em representações nas Corregedorias dos Ministérios Públicos, ou réus em ações que buscam sua condenação por supostos abusos. É o caso de se dizer que, nesse embate, prevalece aquele velho ditado popular: ?O risco que corre o pau, corre o machado.? Quem acusa pode ser acusado, independentemente da razão ?prévia? de que se sinta o exclusivo detentor. E este é o princípio que rege, por exemplo, o instituto da reconvenção, em nosso ordenamento jurídico: na própria contestação o demandado pode iniciar nova ação contra o demandante.
Afirma o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, Carlos Frederico Santos: ?Os procuradores não podem ficar à mercê desse tipo de pressão porque estão atuando rigorosamente no exercício de suas funções, pelo bem da sociedade.? E mais: ?Não há um único episódio em que tenha ficado caracterizada intenção deliberada de atingir a honra de alguém.? Ora, há ?pressões? de todo o tipo – políticas, econômicas, sociais, e até ameaças físicas, propriamente ditas – que membros do Ministério Público podem sofrer, no exercício de suas funções, especialmente quando se batem contra poderosos interesses. Não só eles, mas também magistrados, agentes do Fisco, parlamentares e até jornalistas sabem que faz parte de seus ?ossos do ofício? a reação de denunciados, acusados, processados ou condenados por irregularidades. Nesse contexto, o ?tipo de pressão? mais civilizado e democrático é, justamente, o que se exerce dentro da lei, por meio de uma demanda judicial. Por outro lado, se ainda não foi ?caracterizada intenção deliberada de atingir a honra de alguém?, não consta que tenha havido muitas condenações de procuradores e promotores, em crimes contra a honra – apesar de muitas honras já terem sido seriamente atingidas, em razão de notórios ?vazamentos?.
Sem dúvida há um custo para quem se defende numa ação judicial, proposta ou não pelo Ministério Público. Deste não escapam autoridades nem cidadãos comuns – e é justo que não haja disparidades de tratamento, por categoria funcional, quanto a verbas honorárias, custos de sucumbência ou custas processuais. Mas existe uma defensoria pública, para os que não têm condições financeiras de arcar com aqueles custos. E, demonstrando que os membros do Ministério Público não estão excluídos desse benefício, não faz muito tempo um procurador aposentado (também ex-secretário de Segurança e ex-governador de Estado) dele lançou mão, para defender-se de processos relacionados a sua gestão. Reconheça-se também que, na prática, procuradores e promotores podem ajudar seus defensores, informalmente, com subsídios de conhecimento jurídico (mal seria se não o conseguissem…). Por tudo isso, não faz sentido a reivindicação do presidente da entidade de classe, pela ?urgente criação de mecanismo de defesa institucional dos procuradores?.
Pois a defesa institucional dos fiscais da lei, e dos interesses dos cidadãos, já está nas leis – de defesa de todos os cidadãos."
REDE GLOBO
"O mau gosto e o desgosto", copyright Folha de S. Paulo, 5/5/02
"A coluna de Daniel Castro, na Ilustrada, noticiou há poucos dias que, em uma carta enviada ?aos amigos?, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, negou qualquer possibilidade de reassumir o comando da Rede Globo. A carta teve trechos reproduzidos também em outros jornais, o que é natural. Trata-se de um documento de interesse jornalístico. Boni foi o principal artífice do que acabou ficando conhecido como o ?padrão Globo de qualidade?. Esteve à frente da rede de Roberto Marinho durante 30 anos. Agora, o tal padrão foi para o vinagre. Nas palavras de Boni, citadas por Daniel Castro, ele estaria em ?fase explícita de extinção?.
Do ponto de vista de quem escreve crítica de televisão, e é isso o que procuro fazer aqui neste espaço do TV Folha, os rumores sobre uma possível volta ou ida de Boni ou de qualquer outro executivo para qualquer cargo de qualquer emissora constituem dados irrelevantes. A crítica deve ignorar os movimentos de bastidores. Ela se ocupa daquilo que sai da tela em direção aos olhos do telespectador ou, em outras palavras, dos fios invisíveis que amarram os olhos do telespectador ao que se passa na tela. A crítica de televisão não é a análise de um quadro ou de um programa como se fossem objetos à parte, mas é a crítica do laço social (material, simbólico e imaginário) que se dá por obra da TV, um laço que se tece por meio dos programas, é claro, mas, principalmente, por meio do olhar do telespectador. A carta do Boni só foi lembrada aqui pelo que fala do ?padrão Globo de qualidade?: isso é o que vale comentar, pois aquele era um padrão de socialização do brasileiro pela TV.
Tenho insistido, e volto a insistir, que o ?padrão Globo de qualidade? não era simplesmente uma escolha intencional dos gerentes, mas um padrão ideológico tornado possível pelo regime autoritário. Não é bem que a liderança da Globo se devesse ao seu autodenominado padrão de qualidade; era antes o contrário: o tal padrão é que só foi possível porque dispunha de condições prévias, o monopólio entre elas. O Estado autoritário distribuía as concessões como se fossem capitanias hereditárias, privilegiando certos grupos econômicos em detrimento de outros e inibindo a concorrência. Houve competência da Globo? Sem dúvida, inegável. Houve mais que competência: houve brilho indiscutível. Mas houve, acima disso, a necessidade de dar uma cara unificada para o Brasil. Essa cara unificada, uma necessidade estratégica dos militares no poder, ficou a cargo da Rede Globo.
O que foi o ?padrão Globo de qualidade? senão a face da integração nacional sob a ditadura? Claro que houve aí momentos de mal-estar, houve censura às novelas, houve arestas, mas nada disso foi definidor. O que definiu o ?padrão Globo de qualidade? foi a necessidade imperativa de mostrar ao Brasil qual era a cara do Brasil. Era um Brasil de notícias governistas, de regionalismos de cartão-postal, de ufanismos futebolísticos e, por favor, sem negros nas novelas, sem evangélicos no horário nobre, sem excluídos desdentados no auditório. Um brasilzinho pra mulher de general ver e achar bonito. O ?padrão Globo de qualidade? era a expressão do bom gosto da classe média (bom gosto não é nada além do gosto médio da classe média). E não tinha concorrência, só por isso que reinava, mandão, pacífico e ordeiro. Ainda bem que ele já era.
O que acabou não foi o padrão Globo, mas a sua sustentação histórica. Hoje, ele seria impossível. A concorrência está aí, selvagem, desbocada e furiosa. Está quase atrapalhando o monopólio. E o monopólio está aí, querendo provar que pode ser ainda mais selvagem, mais desbocado e mais furioso. O bom gosto vai virando impostura, vai caindo no que se chama de mau gosto. Para quem gosta de TV, como o próprio Boni, é só desgosto."