ELEIÇÃO NA CALIFÓRNIA
José Antonio Palhano (*)
Só faltava essa. A candidatura de um ator americano de terceira classe ao governo da Califórnia impregnou-se no nosso noticiário com virulência idêntica àquela com que um grão de semente transgênica encistou-se na consciência da ministra Marina Silva, devastando-a em nome da governabilidade lulista (entenda-se a preservação do seu desmoralizado cargo); ou àquela com que uma passagem aérea fez estragos bíblicos na reputação da sua surpreendentemente deslumbrada colega Benedita, já de nascença desestabilizada na Esplanada a despeito da sua inabalável fé.
E tudo por conta de supostas investidas sexuais por parte do tal Arnold. A bem da verdade, um exemplo a mais do insuportável besteirol que emana dos manuais de condutas politicamente corretas que tanto contribuem para tornar chatíssima a sociedade americana. Tudo coisa inconsistente, sem pé nem cabeça, até aqui incapaz de preencher um B.O. da mais decadente e interiorana das delegacias tupiniquins.
Dia desses, uma das nossas belas e competentes apresentadoras repercutiu, em pleno horário nobre, a queixa de uma das vítimas do Exterminador. A fulana lamuriava-se, pura e miseravelmente, que o sujeito havia apalpado-a (sic), em tempos idos. Todos os outros episódios caracterizados como assédio seguem neste diapasão. Repare-se a mixórdia moralista que aflora daí: mulheres americanas mantêm hermeticamente incubadas agressões sexuais (ou, mais provável, prosaicos relas-coxas) que sofreram vida afora até o exato momento em que o agressor se lança a um cargo eletivo. Aí botam a boca no mundo (e o mundo, pelo menos o nosso, estarrece-se em frente à TV). Detestável.
Não demora e surge por lá ? seguindo-se instantânea e online reprodução por aqui ? a última denúncia: a senhora Smith, pacata cidadã do Arkansas, casada, oito filhos, padecente das hemorróidas e portadora de um colesterol altíssimo, foi aos repórteres e, aos prantos, relatou que o mesmo Arnold, nos tempos em que era ainda uma mocinha bem atraente, meteu-lhe as mãos por dentro do sutiã durante uma ida ao drive-in.
O tal american way of life, como bem o sabemos, é célebre por pendurar sem mais nem menos, em qualquer texto, seja na literatura ou no jornalismo, detalhes clínicos, anatômicos ou patológicos do personagem descrito: Mr. Dulles, 48, executivo de Wall Street, divorciado, residente em NY, priápico e torcedor do Bulls… E vai por aí. O saudoso Paulo Francis, ou por gozação ou por aculturação, era pródigo no estilo.
A primeira pedra
E nós aqui, recentemente avaliados como um dos povos mais antiamericanos do planeta, vamos nos escandalizar com as aventuras do Arnold e delas tomar partido? Como se estas se configurassem em valiosas lições de conduta e de decoro? Vamos mesmo chorar as pitangas e prantear essas gringas abusadas e traumatizadas, conforme a mensagem subliminar do noticiário de todo dia?
Convenhamos, é o fim da picada. Primeiro, em razão de que uma eleição da Califórnia ou de qualquer outro estado americano absolutamente não tem essa bola toda entre nós. É tudo macaquice de colonizado (o que era aquela foto de capa do Estado de S.Paulo de 7/10, com todo o respeito?). Segundo, por se tratar de, digamos, pauta na qual somos imbatíveis. Pipocam em profusão Brasil afora denúncias de abuso sexual promovidas não por artistas chinfrins, mas por políticos de praticamente todo o arco ideológico. E não se trata de apalpadelas, xumbregações e beliscões que tanto assanham as americanas, mas de atos mais que consumados. Curras, estupros, prostituição etc. Nos quais as vítimas são meninas de 10, 12 anos de idade. E vida (e mandato) que segue. Nem nos coçamos. No máximo, fingimos.
A propósito, as americanas, assediadas ou não, são exemplos mais que dispensáveis para as gentes tropicais. Afinal, somos ou não respeitados no mundo inteiro por nossa sensualidade? Aqui as coisas rolam (e como rolam) bem mais derramadas para que nos estatelemos, galvanizados, em frente á telinha por conta de relatos de americanas histéricas que mais parecem contos de ninar.
Estamos carecas de saber, por exemplo, que moças de fino trato lançam mão de certas salvaguardas quando se dispõem a sair com um cavalheiro recém-conhecido. As primeiras são de conteúdo moral, de caráter. Um simples olhar, firme e resoluto, pode arrefecer o mais fogoso dos garanhões. Se não for suficiente, um afastar de mãos mais vigoroso pode recolocar as coisas em seu devido lugar. Não raro, sobrevém um engalfinhamento e tudo se resolve. E aí, antes que sejamos todos irremediavelmente hipnotizados pelas caretices da Califórnia, vale perguntar: há, entre nós, algum bardo que, não tendo caído em pecado, ou avançado o sinal, pelo menos durante a juventude, possa atirar a primeira pedra?
Salvados da mesmice
Então que história mais besta é essa de curtir assédio americano monitorando sexualmente a candidatura de Schwarzenegger como uma boa enfermeira de UTI vigia seus pacientes? É realmente assombroso que suas estripulias aportem por aqui com intensidade tal que embutam conceitos morais e regras de conduta masculina, tipo "Tá vendo? Aqui se faz e aqui se paga…esse cara não presta…" Tamanha (e hipócrita) fúria moralista induz à suspeita de que agora, com o homem eleito, sucursais nossas serão abertas na Califórnia com a exclusiva missão de patrulhar o novo governador.
A se importar mais este modelo americano, vamos lá: é cláusula pétrea dos nossos costumes, usada e abusada por nossa premiada publicidade, que o bumbum feminino é consagrada preferência nacional. Tanto que já há calças jeans especialmente fabricadas para empinar glúteos assim meio derrubados, o que se constitui em pleno e soberano reconhecimento, por parte das meninas, da dramática necessidade de se turbinar os atributos calipígios. Se assim é, deduz-se que bumbuns são adorados pelo simples motivo de que são olhados, contemplados, mirados, desejados. Enfim, explícito e assimilado voyeurismo verde a amarelo. Muito bem, se é para se horrorizar com americanas queixosas e mal-amadas (que provavelmente calariam a boca por uns trocados, lá tudo é passível de processo), estaríamos todos condenados. Na primeira, e naturalmente voluptuosa, olhada para o traseiro da moça que passa, a moral americana, que ora tanto nos encanta, nos remeteria ao fogo dos infernos. Ou a um paredão comandado pelo Arnold. Devidamente paramentado como nos filmes que tanto assistimos.
Salvaram-se, em meio a essa festa pobre, Tereza Cruvinel (O Globo) e Otávio Frias Filho (Folha de S. Paulo). Ambos se ocuparam do tema analisando o processo de espetacularização da política em curso e seus conseqüentes estragos. A Folha também, depois do resultado das eleições, saiu com editorial idêntico.
(*) Médico e jornalista