SESSÕES DE VASSALAGEM
Dioclécio Luz (*)
A guerra acabou. E o jornalismo também. Deus morreu, conclui um Nietzsche pós-moderno, com a cabeça crivada de balas e os olhos buscando em vão um pouco de sabedoria nos jornais, no rádio e na TV pós-guerra. A guerra vomita sangue e os heróis morreram todos. Nada de novo no front, a não ser a morte do jornalismo. Nietzsche interroga no deserto: pode uma câmara existir sem imagens?
Os heróis não existem numa batalha como esta. O soldado esboça um sorriso para a câmara e atira em quem passa ? a Câmara não mostra a cena. Como todo soldado ele está pronto para morrer por uma causa inútil. Treme de medo: e se uma bala de verdade lhe acerta o corpo de Robocop?
Mas a câmara não flagra o medo do soldado, nem os corpos decepados por ele, nem as crianças que morrem, nem as mulheres que são agredidas, nem mesmo os mortos aparecem. Dizem pra gente que eles procuram as armas de destruição em massa, Branca de Neve e os sete anões. E querem que a gente acredite nisso.
O jornal, a TV, oficial, oficiais, nos deixam sabendo: os repórteres enviados são cegos. Pior, aceitaram beber da mão do poder. Daí, alguém disse antes de mim: numa guerra a primeira baixa é a verdade. A verdade é que não era um guerra, mas um assalto. Mataram dois mil iraquianos para lhes roubar o petróleo. E só uns poucos jornalistas ousaram dizer isso. O resto se calou ? por conforto, por covardia ou porque é do seu estilo lamber as botas de quem manda.
Essa guerra no Iraque mostrou que o jornalismo acabou. Ou melhor, mostrou que esse modelo de jornalismo ensinado nas escolas de Comunicação do país, e praticado por milhares de profissionais no Brasil e no exterior, não nos serve. É ficção sem ser arte; é a verdade que cheira a mentira; é o espetáculo feito de purpurinas e paetês. Um Big Brother fajuto ? se é que existe Big Brother que não seja fajuto.
Agora que estamos na primeira semana de junho, estes mesmos jornais e jornalistas que alimentaram a guerra como um espetáculo para animar as noites vazias disseram que Bush não sabe como explicar a guerra. Fizeram a guerra dele, o assalto dele, propagaram a mentira que ele quis, e agora simulam a busca da verdade. Esta mesma imprensa que ocultou o que muitos diziam ? que era um roubo do petróleo e que não existem armas de destruição em massa ? agora diz que Bush não achou as armas. E nós, cara-pálida? E nós que fomos enganados por vocês? E nós que acreditamos que era somente uma guerra contra um ditador sanguinário, como vocês disseram? O que sentem depois de tentarem nos fazer de idiotas?
Mais mentira e farsa
Diante de uma catástrofe, o massacre do país mais rico do mundo contra um bando de miseráveis dominados pelo antigo aliado, o jornalismo se escondeu atrás de uma máscara de imparcialidade para retransmitir a mentira oficial. A isenção oportunista fez com que um nazista moderno anunciasse o domínio do planeta e esses repórteres e suas empresas continuaram tratando-o com o respeito devido a uma pessoa decente. O cara mostrou seus planos de dominar o mundo, mas, como é presidente da nação mais rica do planeta (eleito numa farsa que não se diz), os repórteres babam diante de suas palavras sanguinárias.
Guardei algumas cenas de sangue dessa guerra, quando o jornalismo foi morto:
Um "míssil inteligente", numa "operação cirúrgica" cai sobre um hospital; um outro mata gente no mercado público… E o repórter da TV Globo, Marcos Uchôa, festeja: "Felizmente só morreram 15 pessoas".Os Estados Unidos atiram sobre os nossos coleguinhas que trabalham num centro de imprensa, matam dois ou três, e fica por isso mesmo. Correspondentes da TV árabe al-Jazira são metralhados, e fica por isso mesmo. Enquanto isso, a CNN, estatal americana, contrata pistoleiros, desculpe, seguranças, para cuidar de seus repórteres. Um deles deu o recado à história: descobriu três iraquianos e delatou-os aos marines, que fuzilaram os caras na hora. As imagens dessa ação patriótica não foram mostradas. Aliás, continuamos sem ver as imagens da guerra.
Em compensação, o impensável acontece, a TV Globo consegue fazer da guerra uma brincadeira e uma sessão explícita de vassalagem ao vencedor. Depois que Bagdá foi ocupada pelos Estados Unidos, o repórter Marcos Uchôa foi entrevistar famílias que teriam sofrido com a guerra. O clima é de felicidade. Marcos Uchôa informa que, agora sim, com a queda de Saddam, vai ser tudo melhor. E, como se trata de uma matéria de entretenimento, sem nada pra fazer, ele doa uma camisa da seleção brasileira de futebol à família iraquiana! Sim, o caso deve ficar registrado na história do jornalismo brasileiro: com as balas ainda pipocando na arrasada Bagdá, o jornalismo da Globo distribui camisas da seleção brasileira entre os entrevistados! Deve ser algum tipo de ajuda humanitária. Vai demorar 500 anos para a gente entender isso como jornalismo. Deve ser o padrão global: cada vez que um repórter atravessa a fronteira brasileira, para criar uma relação amistosa com o outro, pergunta-se pela seleção brasileira.
Outro exemplo de cenas do fim do jornalismo:
O mesmo Marcos Uchôa fazendo dezenas de matérias para mostrar o fausto do ditador Saddam Hussein. Mostra ruínas. E sempre alertando que agora vai ficar tudo bem, porque Saddam Hussein se foi. O mundo inteiro critica a ação armada, e o jornalismo se fantasia de imparcial, mas festeja a vitória dos americanos. Pior que isso, se submete a humilhantes sessões de vassalagem. Alguém viu a matéria que ele fez sobre o hotel 5 estrelas da "alta cúpula" de Saddam? Ouviu ele confirmar que usou o jeitinho brasileiro para entrar no hotel, barganhando uma ligação telefônica com um coronel (ou general?) dos Estados Unidos? Foi uma cena comovente. Segundo o mesmo Marcos Uchoa, o coronel (ou tenente?) não falava com os filhos havia três meses (você acredita nisso?). As cenas finais da "reportagem" mostram os dois, o repórter e o coronel, se abraçando, felizes e comovidos.
Mais exemplo? A central de produção de Hollywood montou um show intitulado "o resgate da soldada Lynch". E todo mundo reproduziu isso. Agora vem a verdade que todo mundo imaginava: era mentira, uma farsa. A soldada não foi resgatada dos inimigos, ela estava num hospital, sim, mas muito bem cuidada, por sinal.
Símbolo do fracasso
A sinceridade me impede, porém, de colocar na Rede Globo todas as misérias do jornalismo atual. Na verdade, as outras exceções, salvo exceções, imitam esse modelo de jornalismo. E o que temos, ao fim, é uma centena de repórteres tentando ser iguais, sonhando ir para Globo. Sim, há exceções. E muitas. Por exemplo, Goulart de Andrade é um dos mais inteligentes repórteres do Brasil.
Mas o problema não é tanto o repórter. É o modelo que vigora. Um modelo que parte do princípio de que o cidadão comum deve ficar de fora porque não tem opinião a dar. Só opina quem tem curso, poder, fama, dinheiro ou sucesso. O modelo de comunicação existente foi criado e aperfeiçoado pelas cinco ou seis famílias que dominam a comunicação no Brasil. Famílias que dominam os canais de rádio e televisão, são donas de jornais, revistas e pontocom.
Elas querem um modelo em que a emissora faça a edição conforme seus interesses, em que o enquadramento da matéria determina antecipadamente a pergunta e a resposta, em que se crie a falsa impressão de imparcialidade.
A imparcialidade, ao que parece, é uma graça do espírito santo. Dizem eles que uma boa matéria não deve usar adjetivos, e deve ter opiniões dos dois lados. Seria o bastante para garantir a imparcialidade. Ora, todo mundo sabe que isso não basta para conseguir isenção. Na verdade, é só um jeito de camuflar (e mentir para o leitor ou telespectador) as verdadeiras intenções da empresa jornalística. A verdade é que só eles falam. Só fala a turma deles. Existe democracia quando só eles falam?
O que há é manipulação de informações. As cinco ou seis famílias estão determinando ao restante da população brasileira o que é e o que não é notícia, o que é cultura, o que é importante. Esse jornalismo nas mãos de meia dúzia de donos dá a medida do que é o país. Por isso é assim. Por isso há tanto espaço para o sangue nas telas e no rádio.
Para conseguir audiência a forma mais fácil (e medíocre) de fazer jornalismo é usar a violência. Daí esta série de programas sanguinolentos. O sangue é diversão. Aí brotam Ratinho, Cidade Alerta, Brasil Urgente, Sabadaço… São programas policiais, como se fazia há 50 anos, onde o B.O. (boletim de ocorrência) da polícia pauta o repórter e a edição.
Os jornais televisivos se lambuzam de sangue, principalmente nas produções locais. E o apresentador esganiçado se junta ao policial para berrar: "Canalha!", "bandido!" "porrada nele!" E, por fim, criticam os defensores dos direitos humanos. Tudo isso representa pelo menos 100 anos de atraso ao país. Estimula-se o ódio às leis e à Justiça, e, pior, às conquistas da sociedade com relação aos direitos humanos. As pessoas são levadas a acreditar que defender direitos humanos significa conceder liberdade a bandido, e regalias a quem roubou ou matou. Por ignorância, má-fé ou porque a grossura é da natureza do apresentador, ensina-se tudo isso diariamente nos meios de comunicação.
É mais um símbolo do fracasso do jornalismo nacional. E se a gente perde tempo discutindo essas grossuras é somente porque, afinal, isso tem que acabar.
Para deflagrar o processo
Em, contrapartida, deve existir um jornalismo com novas regras, novas formas. É preciso refletir sobre isso.
Para iniciar o debate, proponho alguns princípios:
1) A empresa jornalística deve claramente se posicionar com relação a cada tema. Principalmente quanto aos temas mais polêmicos. A opinião do órgão deve ser clara.
2) Os repórteres estão desobrigados de usar adjetivos. A opinião do repórter não pode ficar escondida atrás de falsa imparcialidade, principalmente com relação aos temas mais polêmicos.
3) As matérias devem ter tempos maiores de duração. Ao contrário do que pensam alguns colegas, três minutos é pouco para uma matéria no rádio ou na TV. Como, por exemplo, tratar de Previdência em 3 minutos?
4) Não apenas os especialistas, os ricos e poderosos, devem opinar. Também a gente comum. Hoje, o especialista, escolhido porque tem a opinião que interessa à empresa, fala por 3 minutos e determina a opinião do jornal para todo país.
5) Menos edição e mais ao vivo.
6) Mais debates, como uma forma de se ampliar a cultura e a inteligência, desenvolvendo o senso crítico de cada um. Nenhuma TV comercial do Brasil faz debates.
7) Mais profundidade e contextualização das matérias. Jornalismo não pode ser confundido com entretenimento, como ocorre hoje.
8) O sotaque regional é fala nacional. Deve ser valorizado.
O fim do jornalismo mora na Veja, que chama de idiota quem compara Hitler a Bush. Passa pela Superinteressante, que trata a guerra e seus artefatos bélicos como brinquedinhos tecnológicos, buscando uma isenção mentirosa. Veja ou Super tem em comum o mercado: por isso a chamada da capa é propaganda do filme do momento, camuflada em matéria.
A Folha de S.Paulo é das que mais pregam o jornalismo "isento". Fictício, portanto. É nas entrelinhas que a gente percebe seus interesses. As vezes é escancarado. E aí não tem isenção. É porrada mesmo. Marta Suplicy sabe o que é isso. O pitoresco é que publicações como Veja, Época, O Estado de S.Paulo, O Globo insistem em posar de imparciais. Fazem isso porque este modelo de jornalismo assim o permite.
As emissoras estatais podem ir mais longe porque não estão atreladas ao mercado. E vão. As programações das TVs e rádios Câmara e Senado, mesmo contaminadas por este modelo de jornalismo, dão um banho de inteligência. Porque se permitem o diferente. Um pouco mais de ousadia e daí pode brotar o novo modelo de jornalismo. Mas para tanto o presidente Lula vai ter que botar o dedo no câncer nacional: acabar com esse latifúndio das comunicações e investir nas emissoras públicas estatais. Lula tem coragem pra fazer isso?
Com a morte do jornalismo, o que se propõe aqui, evidentemente, não é o modelo último, mas algumas propostas para ele. São rasas, ainda. Tudo bem, o que se quer é apenas deflagrar o processo uma vez que o antigo modelo está morto. E os mortos que enterrem seus mortos. Eu olho pra frente. Um olho cego procura por mim, diria o poeta.
(*) Jornalista, escritor, integrante da Comissão de Acompanhamento da Mídia da Câmara dos Deputados
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