EDUCAÇÃO PARA A MÍDIA
Paulo José Cunha (*)
Já experimentou dar uma olhadinha pra saber o que está por trás da televisão? Isso mesmo, levante-se do sofá, dê a volta e vá espiar lá no "fiofó" dela (1). Achou? Pois é, você deve ter encontrado uma porção de fios, uns pininhos que servem pra ligar a antena, o videocassete, o DVD, o seu provedor de canais a cabo, essas coisas. Nada que você já não conheça, não é?
Desculpe a brincadeira, mas lhe pedi pra ir bisbilhotar lá no "velho quincas" (2) da dita cuja exatamente para que você comece a observar não apenas o que se esconde atrás da caixa, mas, sim, o que pode estar por trás do que a caixa transmite. O nome disso é educação para a mídia. Se quiser, pode chamar também de desconfiômetro. Os mais exagerados chamam também de produto da teoria da conspiração. Pois que seja.
Tenha o nome que tenha, o fundamental é jamais perder de vista que ninguém deve se entregar passivamente às mensagens da televisão. Quer conhecer o truque que eu uso em casa? É bem simplesinho. Toda vez que assisto televisão com minha filha de 10 anos por perto costumo discutir com o apresentador, com o repórter, com o animador de auditório. Questiono. Xingo. Concordo. Sugiro aspectos que podiam ter sido tratados. Aí pergunto à minha filha o que está achando. Quando ela simplesmente não me chama de chato ou de maluco por conversar com quem não me ouve, faz observações bastante pertinentes. Isso me alegra. Adoro quando ela chama de burro um apresentador de sucesso.
E aí percebo que estou ajudando a criar uma espécie de anteparo crítico, uma defesa básica que, no futuro, acredito que vá servir de alguma forma para que ela seja uma telespectadora questionadora. E isso inclui até o aprendizado mais fundamental e o mais difícil de todos: o de saber a hora em que é melhor desligar a tevê e ir cuidar de uma planta ou ler um livro. A rigor, nem sei se esse truque vai mesmo funcionar no futuro. Mas estou lutando com as armas de que disponho. Se alguém conhecer outras, me ensine. Acho que estou ajudando a formar uma telespectadora exigente, pavor dos programadores de televisão.
Esta exigência ? ou desconfiança ? passa também pelo questionamento de alguns fatos aparentemente normais. Quer ver um? Outro dia o Lula estranhou estar sendo convidado para debates na Globo, na Record, na Band, no SBT. "Eu às vezes fico pensando: será que é porque eu estou em primeiro lugar que tem tanto debate?"
Capaz que seja. Fui revirar papel velho e achei uma revista Imprensa de 1999, com a síntese dos debates do 6? Seminário Internacional de Telejornalismo. No encontro, o próprio Lula contava que Fernando Henrique, na eleição do ano anterior, fora se queixar a Roberto Marinho de que se a Globo continuasse a falar de seca, fome e desemprego ele terminaria perdendo a eleição. Franklin Martins, presente ao encontro, rebateu dizendo que não sentiu essa pressão. Pode ser. Mas só isso já serve para a gente pensar um pouquinho em como é que se constrói a tal de "agenda setting".
No mesmo seminário, o então editor-chefe do Jornal Nacional, Mário Marona, justificando a ausência quase completa de cobertura das eleições de 98, explicava: "Não gostamos de horário eleitoral. Nós consideramos isso autoritário, não aceitamos o horário eleitoral gratuito com a facilidade que os políticos gostam de usá-lo, os candidatos tinham duas horas por dia para dizer o que quisessem, nós chegamos à conclusão de que quem tem duas horas por dia está muito bem servido. Quem quiser, que veja".
Ora, de quatro anos pra cá o mundo mudou tanto assim para a Globo já não dar mais bola para o horário gratuito e abrir espaços generosos à cobertura da campanha? Ou será que não é hora de ir olhar lá no "fiofó" da tevê pra saber o que de fato anda acontecendo? Memória é pra se usar, senão enferruja: alguém se lembra que FHC não participou de debate algum na campanha da reeleição? Todo mundo sabe o por quê. Quem está à frente nas pesquisas não ganha nada com debate, só tem a perder. Como o desgaste pela ausência é menor, então é melhor não ir. Só pra lembrar: José Serra, candidato oficial do sistema, está mal das pernas nas pesquisas, e ameaça não decolar. Aí vale a pena até mesmo abrir espaço para Lula, desde que Serra também ganhe o seu, não é mesmo?
Olha, pode até ser que não seja nada disso. Mas que dá pra desconfiar, dá. E justiça seja feita: jamais a Globo e as demais emissoras cobriram tanto um processo eleitoral como agora. Ora, nada neste mundo é de graça. Os donos das emissoras fazem parte da elite empresarial comprometida com a manutenção do establishment, não é mesmo? Então, é sempre bom ligar o desconfiômetro. Jamais vou esquecer o dia do lançamento da nova moeda, o real. A ordem, na Globo, era falar dela em todos os telejornais. Falar muito. Até sobre o desenho daquele camponês (ou camponesa?) das moedas tinha-se que falar. Não se explicava por que, mas restava clara a existência de um acordo com a finalidade de solidificar a moeda que chegava. Agenda setting, lembra? Nome pomposo para o velho "falem mal, mas falem de mim".
Por tudo isso, embora o cheiro em grande parte das vezes não seja dos melhores, recomendo, como parte da educação para a mídia, mandar o pessoal ir dar uma espiadinha lá no "velho quincas" da tevê, pra saber o que, de fato, está acontecendo.
Notas
"Fiofó" ? S.m. Bras. Pop. V. ânus (Dicionário Aurélio, 1986, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, RJ);
"Velho Quincas" ? Idem (Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês, Paulo José Cunha, 2001, Ed. Corisco, Teresina, PI).
(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>